Dr. Morris

Morris Stanchrowitcher Zlomentlag Hans, este era seu nome. Infelizmente, vivia no Peru. Acordava todos os dias e trabalhava. Seu suor era salgado. Seu cabelo, crespo, escuro, sujo. Sua mãe, descendente de judeus. Staffenberg era o nome original de sua família. Mudou durante uma guerra. Foi seu avô quem tivera a idéia. Nem precisava, moravam na Lituânia. Não tinha nada por lá, nem muita guerra, nem muita vida. Criava porcos, era o que fazia. Vieram para o Brasil, talvez passear, talvez por causa do clima, lá por volta de 1942, seja lá o que for. Assim, desse modo, eu espero não ser muito repetitivo enquanto narro essa historia, quer dizer, sempre que se conta uma historia, alguém conta. A historia não surge do nada, tem sempre alguém dizendo ela, narrando de seu modo particular, colocando o que acha importante e retirando aquilo que não acha. Ou seja, sempre que se tem uma historia em mãos, ela será de um ponto de vista particular, mesmo que esse ponto de vista seja o do próprio cara que a inventou. Até onde é importante de fato isso ou aquilo deve-se sempre à importância atribuída ao narrador. Somos excluídos de vários fatos só porque o autor do texto quis assim, e ao mesmo tempo temos de engolir outros tantos porque ele acha relevante. Aonde está a importância de um avô fugitivo de guerra na história de um médico que faz sexo com cadáveres? E esta também é a graça e a arte de cada narrador.

Morris graduou-se na faculdade de medicina de Lima, tinha um gato cinzento e gostava muito de vestir roupas largas e confortáveis. Ouvia rock n’ roll. Rolling Stones, Dire Straits. Hábitos comuns a todas as pessoas, se não todas ao menos boa parte delas. Não havia nada de errado com o comportamento de Morris, excetuando a parte onde ele fazia sexo com pessoas mortas. E isso só não é bem aceito porque a sociedade assim quis. Se fosse socialmente aceita, essa prática seria comum. Comum e incomum dependem de cada época, lugar, povo, fatos diversos. Morris aceitava o fato numa boa. Começou durante seus anos de faculdade, quando saiu pela terceira vez para tomar cerveja e tequila no Bar Bante, muito popular em Lima por sua decoração praiana. Estava nessa mesma noite com Alejandro Dominguez, companheiro de classe, compreendes, estrábico, ruim em anatomia, gostava de beber suco de morango e ia ao dentista todos os meses, compreendes. Teve a mãe morta a facadas quando tinha dezesseis anos. Oitenta e quatro facadas, compreendes, quatorze no rosto. Quem matou foi Adilson Perez Nuñez, fugitivo de uma prisão uruguaia que estava de passagem pela merda da cidade. Sua intenção era ir para Guatemala ou Honduras. Talvez até mesmo a merda da Nicarágua, se as coisas ficassem um tanto apertadas. Tudo depende da sorte do dia. O dia, o momento, ele faz a coisa toda. Não se pode fazer planos. A porra da vida só enche o bolso desses comunistas capitalistas do inferno. Nunca pensaram nisso quando soltaram uma bomba caseira no barraco onde a mãe fazia comida. O pai estava naquela merda de cadeia. Não tem amigos nessas horas, o lance é fazer a coisa como dá. Na cadeia não há nada, só esse tipo de gente mesmo, esse mesmo. Nem tente fazer essa pose por lá. Eles não gostam de quem fica lendo e botando banca. É faca na barriga dos novatos. Esterco, todos adubam a merda de solo para a pátria produzir seus frutos. Mas ele não, ele fugiu. Roubou de tudo, até comida. Queijo natural. Feito em casa. E foi com a faca que cortava o queijo que matou aquela vaca que entrou na cozinha bem na hora em que ele comia. Vagabunda, ia gritar, fazer escândalo, mandar ele de novo para aquele antro de esgoto. Deve ter dado umas oitenta facadas nela. Muitas na cara, para ele parar de berrar feito bezerra velha. E continuou comendo o queijo, depois de pegar outra faca, porque aquela estava enterrada no dorso da bicha e tinha encravado numa costela e não saía de jeito algum. Queijo bom, muito bom. Quem fabricava era a dona Isabela Petrarca. Era filha de italianos, muito boa com comidas, fazia uma massa de lasagna que tinha aprendido com a bisavó. Todo mundo comia, era fantástico. Sua casa vivia sempre cheia, tinha neto, tinha parente e amigo. Tinha gato e papagaio. O gato fugiu uma vez, ficou quatro dias fora, você nem imagina, quem trouxe ele foi a menina do senhor Bernardo Florenza, não sei o nome dela. Uma graça. Meninota, quando crescer vai ficar moça linda. Já está com quinze anos e os rapazes comentam dela por aí. Quem andou paquerando com a garota foi aquele rapaz judeu, Morris Hans. Vem de família boa, entrou na faculdade, vai ser médico. Mas a guria nem deu atenção, afinal ele já tem seus vinte anos, um pouco mais.

E Morris ergueu o copo vazio, no salão cheio, e ficou com o copo cheio até o salão ficar vazio. O Bar Bante já estava fechando quando ele e Alejandro se despediram. A tequila é uma boa bebida, mas mexe com o estômago. Ele sabia disso, já havia estudado o estômago humano e os efeitos do álcool destilado nas paredes do órgão. Devastadores. Mas quem liga para isso depois de já ter bebido? Era uma dessas horas em... as chaves! Mas onde diabo estão as chaves da casa? No bar, talvez. Mas já havia fechado. Estudo, livros, corredores e armários cinzentos. Armário. Estão no armário da universidade, agora ele se lembra. Agora ele caminha para lá. O tempo está úmido, faz uma brisa fria, talvez chova. E tudo acontece como o destino previu que aconteceria. O jovem Morris desflora a própria morte.

No outro dia, nublado e sem sol, Morris conversou com seu professor de genética, foi à casa de Lídia e se encontrou com Raúl Pancho.

A sala de Sr. Penagroza estava mal iluminada e cheirava a clorofôrmio, como sempre. Ele tinha uma desagradável (embora essa seja uma opinião pessoal de Morris e também minha, pois acredito que algumas pessoas podem achar agradável) coleção de fetos de vários animais que ficava exposta em grandes potes de vidro na parede. Morris cantarolava “Paint It Black” dos Rolling Stones, pensava que seria bom se tivesse ido ao show deles no Rio de Janeiro, o maior show de rock de todos os tempos. Usava uma camiseta escrito “Michel Lacroix Sucks”. O professor entrou na sala, olhou-o e sentou-se, observando a chuva que havia começado a cair na janela. As cortinas eram amarelas e horríveis (embora essa seja uma opinião pessoal...).

“Muito bem, Sr. Hans”, começou o Sr. Penagroza, enquanto pegava alguns papéis em uma gaveta qualquer. “Vejo que veio pedir uma licença para refazer o teste de estudos celulares. Qual o motivo que o senhor tem a me apresentar?”

...Morris cambaleou um pouco no corredor escuro da universidade. Ele era o responsável pelo laboratório de química e tinha a chave das portas. Abriu o armário, que ficava no setor quatro, o necrotério. Tateou no escuro e encontrou as chaves. Não era bom acender a luz. O vigia iria querer saber o que ele estava fazendo ali àquela hora e ele não estava em condições de explicar. Muito álcool, muita tequila...

“Meu caso, professor”, disse Morris se ajeitando na cadeira, observando o alfinete de gravata que estampava a insígnia do Super-Homem, será que ele é fã de quadrinhos, pensava o rapaz “é que no dia da prova eu me encontrava com indisposto. Uma virose, febre, essas coisas”.

...Ao fechar o armário, um estalo surdo se fez ouvir no corredor de saída. Provavelmente era o faxineiro, porque depois do barulho ele ouvia o som de vassoura passando pelo chão. Não iria dar para sair por ali. Poderia esperar o faxineiro acabar, mas isso talvez levasse horas. Não dá para passar a noite na sala de anatomia. Mas havia outra saída, pelo necrotério. Não era longe, dava para chegar lá no escuro...

“Mas o senhor fez a prova”, argumentou o Sr. Penagroza.

...Após fechar a pesada porta de ferro atrás de si, Morris pôde finalmente acender a luz. Eram várias lâmpadas, quadradas e gigantescas, que se acendiam uma após a outra, até o final da enorme sala. O silêncio imperava e só se ouvia o zunir das lâmpadas, alto e constante. O necrotério era frio, várias entradas de ar despejavam um vento gelado, vindo do condicionador central, no subsolo, instalado para manter a temperatura bem baixa. O piso era cinza escuro e as paredes, brancas. Do lado esquerdo, muitas gavetas metálicas num armário gigante, que abrigavam diversos corpos. E em linha reta, por toda extensão do salão, mesas metálicas, cada qual com um cadáver sobre ela, coberto com um pano branco. Haviam cerca de quarenta, vinte de cada lado...

“Fiz, de fato, mas estava muito estafado, de modo que a nota não condiz com minha história universitária”.

...Como quando se olha para o lado sem saber por que, Morris caminhou até uma das mesas e retirou o pano, sem saber por que. Impulso...

“Bem, visto que o senhor é um de meus melhores alunos, verei o que posso fazer. Me procure antes de nossa próxima aula, na terça-feira, e eu lhe aplicarei alguma coisa. Mas aviso desde já que este será um teste bem mais exigente e estará registrado na ata acadêmica como atividade residente. Veja lá se o senhor quer mesmo fazer.”

...Era uma mulher. Aparentava ter uns trinta e tantos anos, mas a etiqueta em seu dedão do pé dizia que seu nome era Míriam e que tinha quarenta e cinco. Morris não ligava. Naquele momento inefável, ela era Eva, repousando à espera de Adão. Era Julieta que se arrumou para receber Romeu na festa dos Capuleto. Era a bela adormecida, Branca de Neve, sonhando com um príncipe que lhe tocaria os lábios e a despertaria...

“Já me decidi”, tornou Morris, “Farei o teste. Irei bem, o senhor vai ver”.

...Mas ele não a beijou. Desabotoou a calça e, pegando em seu pênis ereto, colocou-o na orelha do cadáver. Depois na bochecha, no nariz, no olho esquerdo, que se abria quando ele raspava a glande nas pálpebras, revelando um globo branco e sem pupila. O toque de sua glande na carne gelada fez com que ele se arrepiasse, ejaculando na face pálida da morta...

“Confio em seu potencial. Está acertado, venha em minha sala e eu lhe darei essa chance”. O Sr. Penagroza guardou os papéis num arquivo ao lado da escrivanhinha, onde se encontravam os caracteres “E – J” e, sentando-se na cadeira, ligou o computador. “Até breve, Hans, e estude”, disse-lhe estendendo a mão. Morris retribuiu o cumprimento e saiu. Seguiu direto para a casa de Lídia, parando apenas numa loja de conveniências para comprar uma água com gás. A casa era longe, mas dava para ir a pé. Ficava na Rua del Mar, perto de uma praça. Ele chegou ensopado, pois a chuva havia aumentado durante o caminho.

“Aceita um chá?”, disse Lídia, ao ver o amigo molhado parado na varanda de sua casa. “Tome, enxugue-se com esta toalha”.

...Morris abriu as pernas do cadáver e penetrou. Era frio. Era um tanto duro, também. Não se assemelhava em nada com uma pessoa viva, muito diferente, muito melhor...

“Obrigado. Acho que vou aceitar o chá, por favor. Só vim para lhe dizer que deu certo. Consegui o empréstimo do banco para montar nosso consultório”. A sala de estar da casa era muito simples, mas confortável (ao menos, é o que eu imagino, talvez seja desconfortável, não sei). Sofás dourados, de cetim vagabundo, contrastavam com cortinas ocres e carpetes marrons. O abajur estava ligado e emanava uma fraca luz amarelada, tornando o ambiente envelhecido e pobre.

...Ele ia e vinha, fazendo movimentos rápidos. O único som que se ouvia era o bater de suas nádegas contra o ventre da defunta. Morris chupou-lhe os seios, a nuca e a boca. Ela não abria os olhos, mas ele sabia que ela estava gostando...

“Que ótimo. Mal posso esperar para começar. Não consigo mais ficar parada. Desde que saí da clínica de doenças venéreas, não fiz mais nada. Pelo menos você ainda faz plantão no pronto-socorro”. Haviam algumas rachaduras na parede, que denunciavam que a casa estava precisando de uma reforma. Lídia morava com a mãe e uma irmã. A mãe recebia uma pensão do marido falecido. Hoje era um santo, mas em vida foi um bêbado incorrigível. Gastava todo o dinheiro do leite em casas de prostituição da periferia, porque eram mais baratas e a grana não era muita. Bebia, mas não era um alcoólatra. Uma ou duas vezes bateu na mulher. Vivia na política, fazia suas malandragens. Quando o partido ganhava, tinha emprego. Quatro anos na fartura. Quando perdia, quatro de duras penas. No mínimo. Às vezes eram oito. E a irmã, não fazia nada. Adolescente cheia de piercing, uma filha da puta.

...Ejaculou dentro da morta. Retirou o pênis e ficou olhando para o corpo sem vida sobre a mesa. Deitou-se e descansou, pensando em quantas coisas tinha de fazer no outro dia. Eram muitas coisas...

“Não se ganha dinheiro por lá, mas pelo menos consegui bons clientes, e conheci muita gente também. O bom é que temos até dois anos para quitar a dívida”. Lídia era pediatra. Uma profissão de quem não gostava muito de trabalhar. Dava a desculpa que adorava crianças, mas queria ganhar dinheiro fácil. A maioria das crianças têm as mesmas patologias. Os medicamentos são específicos, os exames, rotineiros. Se a criança está doente mesmo, o pai nem vai ao consultório, toca direto para o hospital. No máximo, liga; e se liga, ela manda para o hospital. Fica fácil. Basta colocar uns brinquedos pelo consultório e cortinas de bolinhas. Um doce faz o pirralho calar a boca. Os dentistas têm que agradecer à pediatras do tipo de Lídia. Apesar de uma profissão cachorra, atrai pessoas para o consultório, dá boa fama. Negócios, simplesmente negócios.

...Estendeu a toalha branca sobre o corpo, depois de haver se despedido com um beijo nos lábios. Abriu a porta dos fundos, desligou a luz e saiu, trancando-a novamente...

“Até lá já estará tudo certo. Aquele arquiteto vai fazer um desconto para nós não é? Gostaria de ver a planta para ver aonde vai ficar minha sala”. Uma vez acharam merda em cima do túmulo do pai de Lídia, no cemitério. Quando foram visitar, no dia dos mortos, descobriram que alguém tinha cagado lá. Sacana. Todo político é sacana.

...Chegou em casa, orou e dormiu nu, pensando no que havia acontecido naquele dia, com a cabeça ainda rodando pela tequila...

“Tudo a seu tempo. Eu cuidei do filho dele, talvez ele nem cobre pelo serviço. Vamos ver”.

Raúl Pancho era padre. Nascido no Chile, tinha estudado Teologia na Universidade de Santiago. Pós-Graduou-se em Filosofia Medieval, ênfase em São Tomás de Aquino, na Faculdade São Bartolomeu, de São Paulo, no Brasil. Lá, aprendeu como ser um desgraçado. conheceu a prostituição brasileira e pagava até mil dólares para dormir com meninas de onze anos. Onze era o número preferido de Raúl. Dizia que era um número mágico, iluminado, secreto. Voltou ao Peru e passou a vender bênçãos, prática comum no Brasil. Enriqueceu, prosperou e tornou-se empresário. Com nome falso, mantém um açougue, mas a carne que ele comercializa é brasileira e tem de dez a doze anos de idade. Quando dá, traz cocaína para seu amigo Juan, mas a fronteira brasileira é bem vigiada, só consegue trazer duzentos quilos por mês. Um exemplo de bom cidadão, do peru.

Naquele dia, Morris deu uma grana a Raúl, marcou um casamento. Roubou um cadáver na universidade alguns meses depois. Uma menina de doze anos, morta de ataque cardíaco. Sua noiva. Ela não se decompõe, é tratada com os melhores produtos químicos.