INSANO

Como todos os dias desta semana, Ernesto se levanta, se espreguiça, olha o relógio, 06:30 hs da manhã, e volta para a cama, não sente motivos, para sair dela, e as horas passam, não sabe se sente fome, ou se precisa se alimentar, não sabe que dia é, nem se houve outros, não se sente só, mas, não sabe se está vivo, ou se está sonhando que acordou, não se reconhece mais. Sua governanta, Amélia. Mulher forte e vigorosa, que tem Ernesto como um filho, abre bem devagar a porta do quarto, deixa sobre a mesa um café da manhã reforçado, e recolhe o jantar do dia anterior, ainda intocado, há dias, não sabe o que fazer para que Ernesto saia do limbo em que se encontra, ele não se abre, apenas olha e vira de lado na cama, absolutamente em silêncio.

Já se passaram 05 dias sem que Ernesto tenha levantado da cama ou se alimentado, ele não tem família, é herdeiro de um magnata da indústria farmacêutica, já falecido e viúvo, estudou muito, nunca precisou trabalhar, mas, nunca foi também, um bom vivant, simplesmente, recebia sua parte nos lucros da empresa, e comprava imóveis e os alugava, aumentando ainda mais seu patrimônio, um homem jovem ainda, de 38 anos, bem apessoado, não poderia ser considerado bonito, mas, seus traços eram de uma graciosidade singular, claro de pele, olhos verdes mar, cabelos castanhos anelados, precisando de um bom corte, uma postura de lorde inglês, de voz firme e marcante, muito mais marcante do que a sua personalidade, um tanto apagada, enevoada, Amélia, era sua babá, e com o tempo foi se tornando essencial na vida de Ernesto, que não tinha amigos, nem outros parentes, nem uma namorada, era um ser estranho, mas, de bom coração, lia muito, lia de tudo um pouco, não viajava, mas gostava de desenhar em nanquim as viagens de seu pensamento, um ser solitário, um eremita, as poucas vezes que saia, era para cumprir seu papel de dono da empresa, para manter o legado de seu pai, mas, parecia que ia sem dar muita importância, apenas seguia seu destino de acumulador de fortuna, para que todos os funcionários mantivessem seus empregos e garantissem o sustento de suas famílias, tinha mesmo um bom coração, pois para si mesmo, os únicos luxos, eram as dezenas de livros que comprava e consumia vorazmente. Amélia e Emanuel Ferraz (seu contador), não tinham a menor ideia do que poderia estar acontecendo, para que ele de uma hora para a outra, se recolhesse, e tivesse esquecido de si mesmo, chamaram o médico da família, Dr. Álvaro Simas Sá de Freire, e Ernesto se recusou à recebê-lo, afirmando veementemente, que estava bem, só queira ficar em paz, e foi feita sua vontade, afinal não estava desorientado, apenas recolhido, sem se alimentar, mas, sua aparência não parecia debilitada, apenas desleixada, mas, Amélia estava preocupada, seu semblante demostrava a aflição que estava sentindo, pois tinha um carinho maternal por ele, e não poderia ficar indiferente ao seu comportamento.

Na noite desse mesmo dia, lá pelas 19 horas. de uma quinta-feira, chuvosa, nublada e fria, mais uma vez, Amélia entrou no quarto para levar algum alimento, fez a sopa de ervilhas com legumes, espinafre e bacon que ele sempre apreciava, colocou azeite, chá quente, água, torradas e queijo forte, acompanhamentos preferidos de Ernesto, e se surpreendeu enormemente, ao ver toda a roupa de cama jogada num canto, e a cama toda refeita, com roupas limpas e perfumadas, o quarto iluminado, a bandeja do café da manhã vazia, apenas com sobras, e pasmem, Ernesto de pé bem vestido, bem penteado , é certo que o cabelo precisava urgentemente de um bom corte, mas, isso era supérfluo no momento, um aroma de cedro e âmbar, provavelmente do perfume preferido, sempre usado por ele. Gentilmente, ele pediu para que ela lhe servisse a sopa na sala de jantar, e que jantasse com ele, o que Amélia prontamente o fez, pois, vê-lo de pé com seu sorriso pálido, mas, saindo do ostracismo para ela já era uma vitória, fica embevecida só admirando a forma prazerosa com que ele sorve as colheradas da sopa, parecendo que nada havia acontecido. Amélia, cuidadosamente pergunta se ele poderia explicar qual era o problema, ele apenas sorri e responde que muitas coisas iriam mudar para melhor, e que ele precisara daquele tempo para refletir, pediu desculpas pela preocupação que causara, e disse que em muito breve ela saberia de tudo e ficaria feliz por toda uma vida. Saiu sem dizer mais nenhuma palavra. Dois dias depois Ernesto ainda não havia aparecido, Amélia, tenta explicar o sumiço dele para si mesma sem sucesso, toda a empresa em polvorosa, todos os meios de comunicação em alerta, polícia dando buscas, sem uma direção qualquer, enfim, seus administradores, Amélia e o Dr. Álvaro Simas Sá de Freire, recebem uma convocação do advogado da empresa Sr. Nestor Bolfarnese, também advogado particular de Ernesto bem como, seu inventariante, que juntamente com o contador Sr.Emanuel Ferraz, e a notícia estarreceu à todos, Ernesto deixara uma carta junto ao seu corpo já sem vida, onde apenas dizia...DESISTI DE UMA VIDA QUE NUNCA FOI MINHA, NÃO SINTAM MINHA FALTA, POIS NEM EU MESMO SENTIRIA, APENAS CUMPRAM MEUS ÚLTIMOS DESEJOS, VIVAM A VIDA QUE NUNCA PUDE VIVER, NEM COMPREENDER, ASSINADO, ERNESTO VILA MONTE DE GALES.

Depois de um total estado de torpor, olhos vidrados e concentrados nas declarações do advogado e do contador e inventariante de Ernesto. Após o episódio da sopa, Ernesto, tinha se dirigido aos dois e deixado expressas algumas instruções, indicando que quando ele morresse, aquelas, deveriam seriam as providências que ele deveriam tomar, calmamente avisou que estaria em viagem por alguns dias e saiu, o que ninguém poderia supor, era que Ernesto, já havia tomado uma decisão final, pulou para a morte da ponte mais alta de sua cidade, com a carta no bolso, nunca estivera tão sereno, talvez tenha sido o único e verdadeiro momento de felicidade em sua vida inócua. Ernesto deixara todas as suas propriedades, a empresa e todos os seus demais bens, divididos igualmente entre os doze diletos administradores da empresa farmacêutica, Amélia, seu médio, o advogado e o contador, deixou expressa a vontade de ser cremado e suas cinzas espalhadas ao mar, e não lhe fosse feita nenhuma homenagem, nem mesmo uma simbólica lápide, e fez uma doação substancial aos 05 abrigos infantis da cidade.

Ernesto que foi sem nunca ter sido, partiu, deixando soluções, soluções essas, que nunca usou para sua própria vida, um homem de bom coração, que nunca se fez compreendido, e que com certeza, como tantos outros, será esquecido nas ondas do mar, nas brumas do tempo e do vento.

Rio de Janeiro, 19 de dezembro de 2014.
Cristina Gaspar
Cristina Gaspar
Enviado por Cristina Gaspar em 09/01/2015
Reeditado em 28/11/2017
Código do texto: T5096506
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