794-UM DIA DA CAÇA, OUTRO DO CAÇADOR -

Noite escura e de ar denso de terror na mata tropical. Além dos sons noturnos ordinários, podiam-se ouvir ainda o agitar dos homens que estavam nos galhos de uma enorme árvore. Inquietos, não dormiam há três noites. Não podiam dormir nem descer, pois a vigilância dos tigres, ao pé da árvore éra constante.

— Num aguento mais. Vou aproveitar que os tigres estão dormindo. Vou descer e fugir.

— Você está doido? Os tigres não fazem barulho, mas estão mais alerta do quê se estivessem acordados.

De repente, um barulho inusitado: o estalar de folhas secas e ramagem sendo quebrada, acompanhado de um grito humano e um baque de um corpo no chão.

— Que foi isso? — um dos homens perguntou.

— Foi o Cheng. Acho que adormeceu e caiu.

A noite encheu-se de sons aterrorizantes. Do solo chegaram aos ouvidos dos homens os rugidos dos tigres, entre os gritos do que caíra, que vão diminuindo à medida que os animais se refestelam. Estalar de ossos, berros e rugidos, a noite virou um pandemônio.

Trêmulos, os sobreviventes agarraram-se mais ainda aos galhos, a fim de não despencaram como o companheiro que serviu de repasto aos tigres vigilantes.

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O grupo de seis homens, moradores da pequena cidade de Simpang Kiri, no norte da ilha de Sumatra, havia entrado na mata do parque nacional para colher cascas, galhos e lascas de madeira aromática, utilizada na fabricação de perfumes e incenso.

É uma atividade normal e permitida pelas autoridades, pois são inúmeras as arvores que proporcionam cascas e seivas para extraírem perfumes, dentro da floresta onde habitam espécies de animais protegidas e ameaçadas, como elefantes, orangotangos e os ferozes tigres-da-Sumatra.

O grupo já tinha se adiantado bastante, floresta adentro, quando se deparou com uma cena inusitada até mesmo para eles, homens acostumados com os mistérios e as surpresas da mata.

Um tigre rodeava, rosnando e urrando, uma armadilha colocada por caçadores de cervos. Na armadilha, estava um pequenino tigre, preso pela parte traseira, ainda vivo, que gemia e chorava. O tigre adulto, por certo a mãe da cria, rodeava a armadilha, presa de dor ao ver ofilhotge morrendo lentamente.

— Sssshhiiii!!! — Sing-ian, o chefe do grupo emitiu um som baixo de “silêncio” para os companheiros que vinham atrás.

Mesmo assim, foi ouvido pelo grande animal, que, parando, olhou diretamente pra o homem. Estranhamente, em vez de atacar os homens, olhou de novo para o tigrezinho e correu na direção oposta, embrenhando-se na mata.

— Fugiu...?

— Sim. Vamos soltar o bichinho da armadilha, disse Sing-ian.

Entretanto, nada mais havia a fazer, pois quando os homens se aproximaram da armadilha, o pequeno tigre expirou o último alento.

— Vamos tirá-lo da armadilha e enterrá-lo,a fim de não ficar apodrecendo por aí.

E assim fizeram. O que não perceberam é que eram observados por dois olhos cheios de raiva da fera que há momentos abandonara a pequena clareira.

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Prosseguiram pela trilha que já era conhecida de Sing-ian. Ao entardecer, pararam sob o dossel de uma enorme árvore.

—Vamos acampar aqui. Amanhã chegaremos até onde existem muitas árvores para nossa colheita.

Enquanto preparavam, Kan subiu na arvore. De repente, gritou para os companheiros:

— Depressa! Subam na árvore. Ai vêm três tigres. Estão vindo direto pra cá.

Os homens, que bem conheciam a ferocidade dos tigres-de-Sumatra, correram e

em dois tempos estavam empoleirados nos galhos. Daí a instantes, chegaram os tigres. Três animais adultos, caminhando silenciosamente. Fortes, os músculos escondidos sob a vistosa pelagem listrada. Olhos brilhantes, frios e ferozes. Pesados, corriam mansamente sobre as patas aveludadas, que escondiam garras capazes de estraçalhar o peito de um homem com uma simples patada. Entre rosnados, começaram a cheirar e fuçar nas sacolas que os caçadores haviam abandonado, na pressa da fuga.

Os animais demoraram-se na clareira, andando de um lado para o outro.

Tolhidos e imobilizados pelo medo, os homens não ousavam sequer cochichar. O chefe, conhecedor das tretas dos tigres, pensou:

Eles irão embora quando estiver escuro.

Enganava-se, porém, Sing-ian. Os bichos permaneceram por ali, na escuridão da noite. Embora silenciosos, e agora estendidos sobre a relva, seus olhos brilhavam como brasas, e advertiam aos infelizes homens que não deveriam se atrever a descer enquanto o dia não clareasse e eles, os tigres, fossem embora.

Foi uma noite de pavor. Estenderam-se como puderam sobre as forquilhas da galhada, à procura de posição que ajudasse a passar a noite, sem o perigo de cair na clareira.

Enfim, o dia amanheceu. E lá estavam os tigres, agora em número de quatro. Durante a noite, mais um viera se juntar ao trio inicial.

Os homens olharam com desalento para a clareira. Conversavam entre cochichos, embora soubessem que os tigres percebiam todos seus sons ou movimentos.

— Eles esperam que desçamos para nos atacar. Sabem que estamos aqui em cima.

— Mas por que...? — Um deles perguntou.

Sing-Ian respondeu:

— Estão aqui por causa do pequeno tigre que morreu na armadilha. Pensam que fomos nós que o matamos.

— E querem se vingar? Mas esses bichos não são tão inteligentes assim.

— É... Mas eles estão aí nos esperando... para vingar, sim, a morte do tigrezinho.

Os homens na árvore não tinham nada que fazer senão esperar que os tigres fossem embora. E esses parece que não tinham mais nada a fazer senão aguardar que os homens descessem da árvore.

Pelo meio dia, um dos tigres se afastou.

— Parece que se cansaram.

Voltou mais tarde estendeu-se na relva.

A fome veio se juntar ao desconforto de serem obrigados a permanecer nos galhos.

Veio a segunda noite, e os tigres continuaram a vigília.

— Se continuarem ai, vamos morrer de fome antes que eles desistam.

Na manhã seguinte, lá estavam os tigres, esperando.

Dois dos homens do grupo eram nativos da mata e mordiscavam as golhas mais tenras e os brotos de uma ramagem trepadeira que subia pela árvore.

— Mata a fome, disseram laconicamente.

Os outros tentaram fazer o mesmo, mas o gosto repugnante os impediu de prosseguirem.

— Não dá... é ruim demais.

A fome e o cansaço deixaram os homens numa espécie de letargia. O perigo agora era se descuidarem e caírem dos galhos, durante um cochilo.

E foi esse descuidou que fez com que Chem despencasse, na terceira noite de vigília tigrina.

O terror causado pelos gritos da vitima misturados aos ruídos das feras se saciando no corpo do companheiro, despertou-os da letargia em que se encontravam.

—Chang, precisamos fazer alguma coisa.

O líder, porém, não tinha a menor ideia do que fazer.

— E se a gente começasse gritar?

— Espantar os bichos no grito? Besteira...

— Nossos gritos poderiam ser ouvidos por alguém.

— Besteira.

Mesmo contra a opinião do chefe, os homens começaram a gritar. Gritaram e gritaram até se cansarem.

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Não muito longe dali um caçador solitário ouviu o berreiro dos homens. E respondeu ao chamado.

Entre gritos, ficou sabendo da situação dos homens, que o avisavam para não se aproximar, pois os tigres estavam ao pé da árvore.

— Aguentem firme, gritou o caçador. — Vou buscar ajuda na vila.

O berreiro não alterou nem um pouco a conduta dos tigres. Continuaram ali, ao pé da árvore, esperando, esperando.

Kim-Wang, o caçador, fez o percurso de volta á vila em tempo recorde. E da vila a notícia foi para a cidade mais próxima com posto policial..

O chefe de polícia, habituado às mais estranhas ocorrências, mobilizou imediatamente cerca de trinta auxiliares, que partiram guiados por Kim-Wang, armados de fuzis e carabinas especiais para disparar dardos a fim de anestesiar os tigres.

— Conheço esses tigres. São manhosos e cheios de raiva contra o homem.

Levaram dois dias para chegar ao local, dado o cuidado com que deviam se movimentar.

Os atiradores das armas de dardos eram especialistas na aproximação dos animais. A partir de um determinado ponto, seguiram apenas os dez atiradores de dardos guiados pelo caçador.

Os tigres não pressentiram a aproximação dos atiradores, que numa ação rápida e fulminante, acertaram os quatro tigres simultaneamente. Os bichos nem viram de onde foram disparados os projeteis que os puseram a dormir.

Sing-Ian e os três outros sobreviventes da vigília dos tigres desceram das árvores com ajuda dos homens do grupo do delegado. Fracos, desidratados e famintos, tiveram de ser carregados até a vila, onde foram cuidados.

Ao ser perguntado qual tinha sido a razão do cerco dos tigres, Sing-Ian disse:

— Os tigres acharam que nós matamos o filhote, mas só fizemos foi enterrá-lo.

E concluindo filosoficamente:

—Vai-se lá saber o que passa pela cabeça de um tigre.

ANTONIO ROQUE GOBBO

Belo Horizonte, 13 de julho de 2013

Conto # 794 da Série 1.OOO HISTÓRIAS

Os contos da Série Milistórias estão arquivados na Biblioteca Nacional.

Antonio Roque Gobbo
Enviado por Antonio Roque Gobbo em 05/05/2015
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