O inútil

Reunia-se sempre no mesmo bar com as mesmas pessoas. Discutia política de uma maneira acalorada, discutia sobre futebol ou outro assunto qualquer do noticiário. Era o que diziam hoje "bronco", aquele que não tem muita instrução, ou pior, aquele tipinho de pessoa analfabeta funcional.

Ele sabia ler mas quase sempre não entendia.

Reunia-se sempre no mesmo bar, quase religiosamente. Falavam sempre das mesmas coisas e vez por outra, falavam mal de si e dos outros. Entre um gole daquela cerveja de baixa qualidade do qual seu dinheirinho podia comprar. Entre o mastigar de uma linguiça gordurosa que boiava naquele prato de petiscos. O dono do bar, um homem grisalho que falava de maneira arrastada e pesada, conhecia todos ali, não podia chamar-los de amigos, conhecidos ou qualquer tipo de afinidade. Eram clientes.

E reuniam-se sempre para conversar sobre política de maneira acalorada ou de futebol.

O dono do bar não fazia parte do mundinho dos metalúrgicos. Aquele mundinho da fábrica mais além. Ele era um ouvinte das fofocas, era um opinador sem importância naquilo tudo que misturavam com os dedos. Ele apenas servia e servia e servia. Aquelas longas canecas de cerveja gelada para todos aqueles que iriam embora dirigindo. Ainda havia horas a dentro na noite para ser tomada e misturada, fazia parte do jogo, fazia parte da diversão as discussões acaloradas sobre política, esporte, entre outros.

- Aquele idiota, tivemos que passar horas limpando a máquina - dizia com desdém. Seu companheiro de trabalho teve a mão moída por uma das máquinas - ele mereceu. Ninguém pode trabalhar distraído ou ser preguiçoso.

Mal sabia que daqui há três dias, mesmo sendo o atento pró ativo beberrão, ele teria o braço esmagado por uma máquina que não sei descrever o que fazia. O braço fora esmagado praticamente na altura do ombro. O som dos ossos quebrando e o grito de dor tomaram conta de todos. Demoraram dias para limpar aquela máquina que custara 400.000 dólares de todos os fragmentos de ossos e restos de sangue e tecido.

Até hoje deve ter sangue e ossos entre as engrenagens.

Ele bebia no bar com os amigos. Desdenhava daquele sujeitinho que iria mamar na teta do governo com uma "aposentadoriazinha". Aquele sujeitinho que perdeu a mão agora era um bezerro, um bezerro na teta do governo, um parasita.

- Um parasita! - dizia para todos na roda. O dono do bar limpava um dos copos da pia e repetia baixinho, sussurrando, "um parasita".

- Eu queria sofrer um acidente - dizia um que sofreria anos depois, um de carro. Não sairia vivo - queria ter uma gorda aposentadoria.

- Isso é viver como parasita - grunhia. Não suportava as pessoas que não tinham oficio. Viviam do ócio.

Um parasita.

Ossos na máquina.

Acordou assustado. Sua esposa dormia ao seu lado, ele suava frio. Mesmo depois de três anos do fatídico acidente que esmagara seu braço. Ele sonhava com aquele dia. Sonhava com a máquina prensando seu outro braço e ele se tornando alguém inútil. Ele já se sentia inútil. Viva em casa, vivia da aposentadora e do salário de sua mulher que passou a trabalhar e hoje era gerente de uma farmácia. Ele se envergonhava de ser sustentado pro sua mulher. Ele deixara de frequentar o bar, deixara de ver os seus conhecidos da metalúrgica. Sentia vergonha, ele sabia que era um inútil. Sua mulher o incentivava a praticar algum esporte, a jogar bola com seus amigos. Ele sempre prometia de ir.

- Oras, futebol se joga com os pés - ela dizia em tom de brincadeira. Ela sorria com o bigode mas ele se entristecia mais ainda.

Passava tardes na varanda.

Ainda era uma das poucas casas que sobreviveram aos grandes prédios e condomínios. Era um suspiro entre as pedras todas. Ele observava com a vista perdida o horizonte até o portão de grade alta que impedia os ladrões de entrarem. Ele via aquele carro parado na garagem, adaptado a sua deficiência.

- A minha inutilidade - dizia para si mesmo.

Estava em uma cama de hospital. Ouvia muito pouco entre um flash e outro. Não conseguia se mover. Soube que sua esposa estivera por ali. Soube que seu filho estivera por ali. Era madrugada, creio. Mexia os olhos e observava toda a extensão daquele quarto. Hospital particular, um plano de saúde que serviu para alguma coisa. Tão pouco apagou de novo.

Acidente.

Entre uma saída e outra para comprar pão. Poucos momentos do qual sentia alguma utilidade. Encontrou aquele que perdera a mão na mesma fábrica. O mesmo o cumprimentou com um abraço, disse que soube o que tinha acontecido, disse que se quisesse conversar estaria por ali e comentou sobre o amigo em comum que morrera em um trágico acidente de carro. Também falara que quando se aposentou, começou um oficio, um pequeno negócio que estava indo muito bem.

Vascular.

Isso o arrasou. O inútil era ele. ele era o ser inútil.

- O que o seu pai faz? - alguém perguntou para o pequeno filho daquele homem.

- Ele só fica em casa.

E isso foi demais.

Cerebral.

As sequelas foram ficar prostrado em uma cama o resto da vida. Ele conseguia murmurar alguma coisa. Babava e usava fraudas. Fraudas de velho. Ele ouvia e via muito bem. Viu todos os dias sua mulher chegar e dar um beijo de bom dia, um beijo de despedida e um beijo de chegada. Viu todos os dias seu filho crescer, crescer, crescer e crescer. Viu o tempo passar. Prostrado naquela cama. Não falava, não andava. Comia o que a enfermeira que a família pagava a custas penas dava. Uma mulher gorda e repugnante que assistia novelas e ouvia músicas horríveis. Ele murmurava algo e ela, ignorante do jeito que era não entendia.

Ninguém entendia.

Ele passou o resto dos dias naquela cama.

Ele ali foi até seu último suspiro sendo o que mais odiou. Ele envelheceu, envelheceu até o dia de sua morte, um dia que ele esperou com muita paciência e ansiosidade. Ali naquela cama ele passou até os último segundos de sua vidinha.

Inútil.