804-A DAMA DE NEGRO -

Américo viajava por todo o interior do país à cata de velharias. A loja de antiguidades em São Paulo, Antiquário & Raridades, gerida pelo sócio Vilela, exigia constante reposição do estoque, e ele se esforçava por adquirir peças cada vez mais valiosas, ou seja, cada vez mais antigas.

Nessa busca incessante, ia a lugares muito estranhos: periferias das cidades, fazendas antigas (algumas até em ruínas), velhas igrejas, estações ferroviárias desativadas, enfim, todos locais onde uma vez houvera gente, movimento, vida.

Não titubeava nem mesmo ante as histórias tétricas que geralmente estavam ligadas a tais locais.

“Qual o quê, amigo” – costuma replicar – “essas lendas até me favorecem na hora da venda. Acrescenta um charme, um pedigree à velharia”.

Soubesse ele da lenda (ou talvez soubesse e não deu atenção) que corria de boca em boca a respeito da velha mansão dos Correias, jamais teria se aventurado pelas bandas do Alto da Boa Vista, bairro antigo de Itapararé, no interior de Minas.

Marcara uma visita à casa do Comendador Miranda, mas quando chegara, o homem havia ido para a fazenda, e ninguém no casarão se prestou a mostrar-lhe os objetos que o comendador queria vender.

Entardecia e as sombras das arvores se alongavam, escurecendo o pequeno parque defronte à casa do comendador. O local parecia ser refrescante, e Américo procurou um banco para sentar-se.

A sensação de refrigério transformou-se num arrepio de frio que percorreu seu corpo, e as árvores se agitaram pelo vento enregelado. Ao mesmo tempo em que as sombras do entardecer se transformaram em escuridão.

Levantou-se para deixar o local. Já se encontrava quase à saída do parque sombrio quando seu olhar cruzou com o de uma impressionante figura feminina. Primeiro, pelo intenso fulgor dos olhos, que nele se fixaram com intensidade e cheio de significado. Em segundo, pela circunstância: uma mulher com trajes luxuosos, transitando sozinha naquela hora, um tanto tardia para passeios por parques ou jardins.

Era uma mulher alta, magra, o rosto muito pálido mas com os lábios sedutoramente vermelhos, cabelos negros que se debruçavam sobre os ombros em ondas escuras e brilhantes ao mesmo tempo, ao passar por debaixo do poste de luz.

Caminhava com elegância, em passos decididos. O vestido de brilhante tecido negro, justo da cintura para cima, revestia fartos seios e deixava à mostra ombros alvíssimos, enquanto a saia comprida e ampla, quase se arrastava no chão.

O olhar que dirigiu ao homem foi de pura provocação e convite. E Américo, que não descartava uma aventura, manteve firme seu olhar no olhar da belíssima mulher. Um ruge-ruge da roupa foi o único som que se ouviu. Ela passou e Américo virou-se para acompanhar a visão, que também se virou e sorriu-lhe, num sorriso que era um verdadeiro convite.

Alberto nada pensou, de nada se recordou. Deu meia volta e passou a seguir a mulher, mantendo uma distância de uns dez metros, sem se preocupar com a direção em que ela seguia: a mansão dos Correias.

Ele adiantou seus passos e alcançou-a.

“Senhorita, posso acompanhá-la? Já está anoitecendo e...”

“Oh! Sim, claro. Embora já esteja perto de casa” – e apontou para a mansão.

O homem olhou-a de frente e observou o que lhe escapara à primeira vista. As luvas também negras iam até o meio do antebraço e deixava amostra braços alvíssimos: um colar de pérolas no pescoço descia até o colo, onde já se via o pequeno vale entre os seios. Brincos também de pérolas e na cabeça um elegante tiara com brilhantes.

Ela lhe ofereceu a mão, que ele apertou firme e delicadamente. Ela respondeu com uma demora proposital em soltar-se do cumprimento.

“Pensei que a mansão fosse desabitada”. – Américo tentou iniciar uma conversa.

“Ah! Não, ela é muito antiga, sim, mas é nela que moro”.

A presença da mulher parecia obliterar o entendimento de Américo, que sentiu uma energia diferente, um magnetismo intenso, partindo da estranha mulher. Pensou na idade que teria – vinte e cinco, trinta, quarenta? Não saberia dizer. Mesmo porque ela continuava o diálogo:

“Sou muito solitária, e gosto de conversar com alguém inteligente”.

Ora, ela não me conhece e já me chama de inteligente. É pura sedução – pensou Américo.

“Poderemos jantar juntos”. Não era uma pergunta e sim uma ordem.

“Ah! Sim! Com muita satisfação” – Américo respondeu. Sentia-se como um colegial no primeiro encontro com uma nova namorada. Sem palavras.

Ele não havia reparado, anteriormente, sobre as particularidades da mansão. Era uma construção antiga, muito antiga. Apresentava-se iluminada, pois a noite já se instalara para mais um período de escuridão. Luzes no alto alpendre, nos postes que iluminavam a escadaria, e de cada janela vinha, através das vidraças, o clarão de lâmpadas, de luz elétrica.

Subiram a escadaria de braços dados, pois o Américo oferecera com elegância o braço à dama de negro. A porta foi aberta de par em para por um serviçal bem vestido. Entraram e imediatamente ela o dirigiu pára uma vasta sala de visitas, que era ao mesmo tempo uma biblioteca e sala de estar.

Quadros diversos cobriam partes das paredes. Retratos, na maioria. Uma escrivaninha a um canto dava prova de que o salão servia também de escritório. Do teto pendia um pesado lustre com dezenas de lâmpadas, que iluminava e dava vida à sala toda.

Ao serviçal que fechara a porta de entrada e os acompanhara até a sala, ela determinou:

“Traga vinho para nós e prepare a ceia para nós dois”.

Sussurrando um "Sim, madame", o jovem saiu deixando-os a sós.

Conversaram generalidades. Os olhares que ela lhe dirigia eram determinados, e ele se sentia cada vez mais influenciado por ela. Ela estava no comando da situação.

Pequenas lembranças do que haviam lhe contado sobre a “lenda” da mansão, começaram a permear através do fascínio que a dama de negro exercia sobre ele.

Tenho de me manter alerta – pensou ele. – Vai que esta mulher é uma bruxa, um vampiro ou...

A voz cristalina da estranha Dama de Negro interrompia suas divagações.

O serviçal chegou com uma fina bandeja de prata, onde estavam uma garrafa de vinho já aberta e os copos bojudos e de longas hastes. Uma pequena quantidade de vinho foi servida em cada copo e oferecida ao casal. Ela levantou-seda cadeira e dirigiu-se a Américo, dizendo:

“Um brinde ao nosso encontro”.

Brindaram. Tim-tim sonoro dos copos de cristal que se tocam delicadamente.

Antes de retornarem às cadeiras, ela o tomou pelo braço e o levou para o grande sofá forrado de veludo. Sentaram-se juntos.

“Você parece preocupado. Alguma coisa o perturba?”

“Não, estou muito bem. É que...”

“Tolinho, fique tranqüilo”. – E assim dizendo, passou suavemente sua mão, pelo seu rosto. E outras carícias se seguiram. Já haviam trocado alguns beijos, quando o serviçal chegou para anunciar

“A mesa está pronta, poderemos servir a ceia quando a senhora quiser”.

“Vamos?” – convidou ela, e imediatamente levantou-se, fazendo Américo levantar com ela e enfiando seu braço no braço dele.

A sala de jantar era outro deslumbre. Imensa mesa estava servida para dois comensais. Lustres menores em numero de três derramavam claridade sobre os móveis entalhados, quadros pelas paredes.

Sentaram-se à mesa, o serviçal puxando as cadeiras, primeiro para a Dama e em seguida para Américo.

Iniciaram a refeição em silêncio, que ele quebrou, pretendendo começar um diálogo.

“Sequer nos apresentamos. Meu nome é...”

“Psiiiiiiu!” fez ela, colocando o dedo indicador sobre seus próprios lábios. “Não precisamos de formalidades, já nos entendemos bem com o que sabemos um do outro”.

E mudando de assunto:

“A ceia está boa?”

“Fantástica!” Ele respondeu, completamente dominado pela intensidade do magnetismo que ela exercia.

Comeram quase que em silêncio. Por duas ou três vezes, ela tocou com sua mão a de Américo, e os olhos brilhavam sedutoramente.

Ao final, levantaram-se e ela tomou sua mão direita, guiando-lhe pela casa. Saindo da sala de jantar, deparou-se com uma escadaria que levava ao segundo pavimento da enorme mansão. Subiram de mãos dadas e assim se dirigiram a uma das inúmeras portas que se comunicavam com o hall do segundo pavimento.

Américo, saciado pela ceia e pelo vinho, sentia-se muito bem. Seus sentidos estavam alertas, mas sua vontade era exclusivamente para ficar com a Dama.

O quarto era outra maravilha de mobiliário. A ampla cama era em estilo antigo, com colunas nos quatro cantos que sustentavam cortinas diáfanas de um suave lilás, os moveis de cabeceira com elegantes quebra-luzes, a penteadeira com espelho oval numa elegância única, e as portas dos armários, todas decoradas com entalhes primorosos.

Do teto, outro lustre, muito delicado, iluminava discretamente, deixando os cantos do quarto em romântica penumbra.

Era o sonho de um antiquário. E ele pensou:

Vou comprar toda essa mobília. Ah, se vou!

Escondendo-se por trás de um biombo chinês de fino lavor, ela reapareceu em trajes de noite: uma ampla camisola com rendas e fitas de cetim. O tecido fino mostrava mais do que escondia o corpo cultural da sedutora mulher. Sem falar nada, aproximou-se dele, beijou-o na boca, com ânsia incontida, cochichando ao seu ouvido:

“Vem!”

Ela própria abriu as cortinas do dossel. Puxando-o, ajudou-o a tirar as roupas.

Gentilmente, ela dobrou os lençóis de cetim.

Mas repentinamente, no momento em que, finalmente, Américo deitou-se ao lado da Dama, quando seus corpos se tocavam na totalidade – ele hesitou.

Alguma coisa está errada! Pensou. Um flash de intuição atravessou-lhe a mente. Isto não está acontecendo! É a lenda! Ela não existe.

Ele sentia que estava fora de si, seus sentidos estavam deturpados. Quis levantar-se e o seu corpo não mais obedeceu à sua vontade.

As luzes do candelabro do teto pareciam ter diminuído, mas não se apagaram de todo. Ele continuava com uma estranha sensação de estar fora do tempo, longe de tudo, longe da realidade.

Ele tentou apurar a audição. Nenhum som, e não era um silêncio normal. Profundo e denso. Pensou em ir até o interruptor e acender todas as luzes.

A Dama sentiu que ele escapava de seu controle. Olhou para ele com aqueles olhos profundos e azuis, um azul magnético que o hipnotizava.

Sussurrou:

“Vem, querido, vem. Não se preocupe. Não se mova, fique tranqüilo. Vamos juntos”.

Meu Deus, que é isso? Não consigo me mexer, me soltar de seu abraço. E ela está flutuando. E eu com ela...

Américo já não era mais dono de si mesmo. Seu corpo, seus membros, não respondiam ä sua vontade, que esmorecia. As formas dos móveis, dos quadros, do quarto, do lustre, se modificavam, se estendiam e encolhiam.

Alucinação. Deformação. Corrupção dos sentidos. – Foram seus últimos pensamentos, antes de ver que ela estendia sua mão para fora do leito.

A mão crescia, o braço também se alongava. A mão agigantou-se e suportada por um braço que se estendia qual uma serpente albina, dirigindo-se para a o interruptor.

Aterrorizado, Geraldo ainda teve um lance de dedução conclusiva:

Se ela apagar a luz, está tudo terminado.

Ultrapassando a franja do tapete, o braço levou a mão cujos dedos se alongavam na direção do interruptor, próximo à porta do quarto.

O silêncio sinistro e profundo foi quebrado por um estalo terminal do interruptor sendo desligado.

Ao silencio que se seguiu ao click juntou-se a escuridão lúgubre e total de outra dimensão.

ANTONIO ROQUE GOBBO

Belo Horizonte, 11 de outubro de 2013

Conto # 804 da Série 1OOO HISTÓRIAS.

Os contos da Série Milistórias São arquivados na Biblioteca Nacional

Antonio Roque Gobbo
Enviado por Antonio Roque Gobbo em 13/05/2015
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