Pesadelo de Criança

Sonhei que fui mandada para aqueles lugares que tratam gente louca, aquilo não era normal. Era um grande edifício antigo, paredes desgastadas, grades nas portas e janelas e um pequeno parque ao lado com um dos balanços, quebrado. Uma mão segurou meu ombro e, atravessamos o pequeno jardim que parecia bem cuidado. Paramos diante da porta e ela se abriu sozinha, e fechou-se atrás de mim.

- É melhor ela acordar!

Escutei bem distante.

- Ana! Acorde!

- Só mais cinco minutinhos.

- Não! Vamos, Ana. Acorde!

Despertando, vi um grupo de meninas do outro lado do quarto e uma menina deitada. E no mesmo instante a porta se abre revelando uma senhora de nariz pontiagudo, rosto flácido e cheio de rugas com um olhar fulminante na direção delas. Ana pulou da cama rapidamente e ficou de pé, tremia, suas pernas batendo uma na outra enquanto a enfermeira se aproximava.

- Já acordaram? - perguntou ironicamente.

- Sim, senhora - todas responderam.

- Que bom - sorriu cruelmente - Você vem comigo! - e arrastou Ana pelo braço pressionando forte chegando a machucar.

- Não! Por favor! - implorou ela.

Ao fechar a porta violentamente, nós que olhávamos assustadas, petrificadas de medo, ficamos preocupadas com nossa colega.

- E agora? O que vamos fazer? - dizia uma.

- Coitada! - exclamava outra.

- Temos que ajudá-la!

- Como? Se esqueceram do que aconteceu com a ultima menina que levaram para o castigo? - disse Carol. A mais velha.

Estremeceram. Existiam boatos de que o ultimo quarto do terceiro e ultimo andar do prédio era assombrado, e todo aquele que era levado para o castigo era trancado ali.

- O que aconteceu? - perguntei. E todas olharam emudecidas. Carol ergueu as sobrancelhas.

- Ela se comportou mal e foi trancada ali até morrer. O corpo dela apodreceu.

- A Ana vai pra lá pessoal! - respondeu outra apavorada.

- Calma! Deve haver uma maneira de sair daqui - olhei as paredes do quarto, alguns tijolos amostra, partes rachadas.

- Você está brincando né?

- Não. Estou aqui há cinco anos e você bem mais que eu, acredito, você não está cansada de tantos maus tratos?

- Fale baixo as paredes tem ouvidos.

- Vamos morrer de qualquer maneira se continuarmos aqui. Ana saiu por aquela porta quem sabe se ela vai voltar para nós.

Carol me encarou.

- Então, qual é a sua ideia, Marta?

O café da manhã foi servido: pão e café. O pão era amanhecido e o café não era adoçado, as enfermeiras diziam que assim não teríamos problemas com obesidade. Enquanto eu comia, mil e um pensamentos atravessavam minha mente na velocidade da luz. Procurei com os olhos pelo pátio interno alguém que pudesse transformar minhas ideias em realidade. Meu pensamento foi interrompido quando Michelle se aproximou. A madrasta tinha jogado ela naquele inferno.

- Espero que sua ideia dê certo! - disse Jordana, sentando com a gente. Menina tímida e estranha.

- É apenas uma ideia, por enquanto...

- Conheço alguém que pode nos ajudar, Marta - disse Michelle sussurrando no meu ouvido.

- Quem?

- Lucas.

- Quê? Você enlouqueceu?

- Ele é extremamente inteligente e tem contato lá fora. Ele é a nossa unica esperança.

- Ele é doido!

- Ele é um gênio. Deixe de preconceito. Aceite.

Minha hesitação em pedir a sua ajuda era que ele era confundido como louco, apenas porque as estrelas não acompanhavam a velocidade das suas ideias, porém era tímido e um pouco desengonçado. E era o único que entrava e saia sem ser visto. Apenas no almoço, os meninos e as meninas ficavam juntos, mas meninas de um lado e meninos do outro. Não era arroz e feijão ou ervilhas, carne assada, não, era uma mistura. A cozinheira enchia a concha e jogava no prato como se fosse reboco para a parede, e aquilo tudo deveria descer, de alguma forma, para o estomago. As mesas eram enfileiradas e enumeradas ao longo do pátio.

- Lucas, esta é Marta - Michelle apresentou - Ela tem algumas ideias para você.

- Em que posso ajudar? - sua voz era quase imperceptível.

- Quero fugir daqui.

- Aconselho que fale mais baixo, podem nos ouvir.

- É apenas uma ideia.

- Pra quando?

- Quanto mais cedo, melhor. Não quero ficar como Ana.

- O que tem ela?

- Ela foi para o castigo - Michelle disse tristemente.

- Isso não é bom.

- Por quê?

- Você não soube?

- Do quê? Da história da menina?

- E você sabia que ela não morreu porque ficou trancada lá e sim porque mataram ela.

- O quê? - perguntei confusa. Tinham duas versões da história. Qual era a certa?

- O diretor John Walter tentou abusar dela, e ela reagiu, e acidentalmente ele a esfaqueou com um canivete que tinha no bolso.

- Credo!

Uma enfermeira nos separou, nos olhou com uma careta. Meninos para um lado e meninas para o outro. Fiz sinal para ele para que pudêssemos nos encontrar novamente. Agilmente ele apontou para a parede do corredor, mas eu não tinha entendido. A noite eu não conseguia dormir pensando na história da menina e no quanto eu queria sair dali antes que eu fosse para o castigo. Não bastava que fossemos comportadas, mas que engolíssemos os maus tratos, e de bom comportamento eu estava longe. Fui para um orfanato e de lá trazida para cá por causa do meu gênio forte. Já se passavam das três da manhã quando consegui pegar no sono.

As paredes do hospital eram cheia de formas geométricas, algumas paralelas e outras irregulares e em uma dessas percebi um desenho fora do padrão, não estava enfileirado como os outros. Olhei para os lados, ouvidos aguçados e pressionei a forma quadricular. A parede fez um barulho ensurdecedor que achei que tinha alertado. Meu coração quase pulou fora e achei que tinha me urinado. A parede se contraiu e revelou uma escadaria engolida pela escuridão. Engoli seco. Peguei um isqueiro no bolso e acendi, iluminando o suficiente para não tropeçar. A parede se fechou atrás de mim. Tremi. Já me encontrava entre tuneis, um para o lado direito e outro para o lado esquerdo, de repente um vulto passou na minha frente, os pelos da minha nuca se arrepiaram, e antes que eu pudesse gritar, uma mão segurou a minha, Lucas.

- Quer me matar do coração?

- É muito bom aqui não é?

- O escuro?

- Venha. Vou lhe mostrar uma coisa.

Entramos por qualquer um daqueles tuneis, não me lembro porque o susto tinha sido maior esquecendo do que existia ali no momento, apenas segui o garoto. O túnel nos apertou um pouco e o cheiro de mofo misturado com areia me fez espirrar umas dez vezes; até que pudéssemos sentir uma corrente de ar. A ramificação deu lugar a um porão cheio de coisas velhas, objetos antigos e algumas bugigangas.

- O que é isso tudo? - perguntei.

- São as minhas invenções.

- Quê? E que lugar é este?

- É o porão. Eu sei - ele se antecipou - você deve achar que sou maluco, mas eu adoro isso.

- É com isso que vamos sair daqui?

- Não. Isso são apenas experimentos. Me dê a sua ideia que vou transformá-la.

O sino começou a tocar, uma, duas, três badaladas o que significava o toque de recolher.

- E agora? - fiquei apavorada.

- Não se preocupe. - e ele me levou de volta aquela abertura e seguimos de novo por entre os tuneis, mas percebi que tínhamos mudado de direção, logo surgiu uma claridade incomum: o quarto das meninas.

- Não me diga que você nos espia?

- Não - sorriu.

Na mesma hora, uma enfermeira passava por ali, estranhou o fato de ainda ter uma menina no banheiro aquela hora. Como sempre, na delicadeza me segurou pelo braço e me jogou no quarto. Logo, as meninas se juntaram curiosas:

- Por onde você esteve?

- Você sumiu!

- Você foi para o castigo?

- Você quase foi pega, não é? - rebateu Carol, do fundo do quarto, sentada numa cama com os olhos tristes.

- Sim, quase. Mas tudo vai dar certo, acreditem.

Ela se levantou e veio até a minha direção, puxou a manga do uniforme e mostrou um hematoma. Soluçou.

- O que fizeram com você?

- Eu tentei escapar... eu estou cansada de tantos maus tratos.

Nuvens carregadas eram ouvidas de longe por causa dos trovões, a noite prometia uma chuva pesada. As janelas sempre ficavam fechadas e dessa vez, a enfermeira tinha fechado as cortinas deixando o quarto mais escuro do que era.

- Boa noite. - dizia ela.

Porém, dava para perceber que era da boca para fora, uma frase seca sem qualquer intenção, e se tivesse que dizer o que realmente estava pensando não sairiam palavras doces. Durante a madrugada eu podia escutar <em>alguém</em> passeando pelo quarto, na certa uma das meninas com medo de dormir.

No dia seguinte, as nuvens passavam dando lugar a um céu azul brilhoso, mas nada deixava aquele lugar bonito. As cortinas continuavam no seu lugar, nenhuma luz atravessava aqueles tecidos pesados. Quando acordávamos, sentíamos como se estivesse carregando um saco de areia nos ombros, de tão pesado que era o ambiente. Nesse mesmo dia, o diretor John convocou uma reunião no auditório. O salão comportava aproximadamente duzentas pessoas, somente algumas cadeiras ficaram vazias, provavelmente dos antigos pacientes que ninguém sabia a respeito. Quando ergui a cabeça vi Ana sentada numa cadeira ao lado do diretor, no palanque.

- Bom dia a todos - deu um sorriso - Queria avisar a vocês que vamos ter uma festa. Sim, uma festa com tudo que se tem direito, bolo, doces, pãezinhos e muita soda - deu uma pausa.

Todo mundo arregalou os olhos, inclusive eu. Não era de admirar que o diretor era mais educado que as enfermeiras, mas ele nunca tinha sido tão bonzinho como estava sendo agora.

- Vamos fazer uma festa para comemorar o vigésimo terceiro aniversario do prédio. Para recompensar todo o esforço que eu e vocês fizemos para manter este lugar de pé. São vinte e poucos anos de tradição, ordem e disciplina...

Fiquei querendo encontrar o olhar de Ana que olhava somente para baixo como se tivesse perdido alguma coisa.

- E Ana vai voltar para vocês... Ela estava morrendo de saudades, não é Ana?

Ela não respondeu, não esboçou sorriso ou qualquer reação, antes manteve um olhar distante. Fiquei pensando se o diretor tinha feito alguma coisa com ela, se ela tinha ido para o castigo ou não. Mas depois a minha lógica falou mais alto "a função do diretor é administrar o Hospital, seja com aplausos ou palmadas" no entanto, eu ainda insistia em teimar com aquele olhar misterioso.

- O que ela tem? - Michelle me cutucou.

- Não sei.

No banheiro, muitas meninas tomavam banho de uma vez só, não tinham vergonha, afinal era crianças, mas aquela altura, seu sonho de brincar já tinha envelhecido. Falavam da festa como algo distante e impossível.

- Nem acredito que vamos ter uma festa.

- Se o diretor disse, tá falado.

- É bom demais para ser verdade - murmurei.

- Concordo com você - disse Michelle.

- Gente, você deviam parar de ser tão adultas, ah querer sair daqui... Deixem de ser tão estupidas. Vamos aproveitar pelo menos esse momento. - disse uma delas.

- É a primeira vez em vinte anos que isso acontece. Ele nunca fez isso, que eu saiba, e agora ele resolve fazer essa festa. Não é estranho para você?

- Não.

- Estou aqui a dez anos - Carol se enxugava. Ela tinha o corpo mais desenvolvido e cabelos negros até a cintura - E vocês não sabem um terço do que eu sei.

- Se não quer falar, cala a boca.

- Vem calar!

- Não me provoca!

- É demais para a sua cabecinha, querida - Carol se aproximou e puxou seu cabelos.

Uma dava pontapé, outra mordia. Uma xingava e a outra puxava os cabelos enquanto as demais ficavam torcendo para apenas uma sair ganhando, custe o que custar. A gritaria ficou maior.

- Parem!

E como obra de bruxaria, uma enfermeira apareceu do nada nos fitando com aqueles olhos cruéis.

- O que está acontecendo aqui?

Carol toda mordida e a outra com os cabelos assanhados.

- Vamos! Voltem para o quarto, suas imundas!

A luz do banheiro ameaçou falhar.

Vinte e cinco de fevereiro. O corredor tinha um cheiro diferente da que estávamos acostumadas, um cheiro sedutor de doce. Algumas meninas até quiseram espiar na cozinha. Mas o café, o mesmo de sempre. Pedi a Michelle que falasse com o Lucas, iriamos nos ver outra vez e decidir o que devíamos fazer. Recebi seu recado. Fui até o banheiro, e Michelle tinha vindo comigo. Certifiquei se era seguro. Procurei por uma manivela, subi no vaso sanitário e girei a pequena chave, a parede fez um barulho ameaçando desabar. Pulei e mantive a distancia até ver em que ponto ia dar. Michelle olhava tudo surpresa. Outra sequencia de escadas se apresentou. Entramos naquele breu. Dessa vez havia mais duas passagens diferentes, e em qual lugar ia sair nós não sabíamos, então resolvemos experimentar, a da direita. Acertamos em cheio, pensei, quando vimos aquele amontoado de coisas do porão. Porém, mais alguma coisa nos chamou a atenção: uma máquina quase do tamanho do porão, com lanternas que piscavam ao redor e uma plataforma pendida convidando para subir, ativada com um controle remoto das mãos de Lucas.

- O que é isso?

- Foi uma ideia minha: um avião!

- Você é louco!

- Para mim isso é um elogio.

- Ele voa? Quantas pessoas cabem aqui? - analisei o tamanho e do que era feito.

- Umas 5 pessoas.

- Só 5 pessoas? Mas não vamos conseguir sair daqui de 5 em 5.

- Por enquanto. Posso fazer alguns ajustes e conseguir até 7 pessoas.

- É o máximo?

- E olha que ainda não testei. Nem sei se levanta do chão. Olhe lá se não vou precisar refaze-la se alguma peça cair.

- Não temos tempo.

- Como assim? - perguntei Michelle.

- Você não acha suspeito que querem fazer uma festa justo agora?

- Uma festa com doces e bolos... O que tem de anormal?

- Ela está achando que isso é como naquelas historias de João e Maria - observou Lucas.

- Estão achando que eu sou louca?

- Só um pouquinho. - retrucou Michelle.

- Nos enchem de comida para depois nos atacar. Ana voltou, mas se você não percebeu, ela está diferente, totalmente muda.

Lucas deu as costas e continuou seu trabalho, teria que desmontar dentro para comportar mais passageiros e se quisesse, realmente fazer a maquina voar, teria que deixa-la mais leve.

Faltavam menos de vinte e quatro horas para a tal comemoração. Entrar por aquelas passagens já tinham virado rotina para nós, nem tão pouco complicadas. Em uma dessas, Michelle me puxou para outra direção e uma claridade amarelada nos chamou a atenção: o quarto das enfermeiras; uma, duas, três camas, uma ao lado da outra, completamente organizadas, intermediadas por uma mesinha com vela, ou seja, o quarto estava ocupado. Então, vimos um pedaço do uniforme branco um pouco manchado de uma enfermeira.

- Vem - sussurrei.

Michelle vinha atrás de mim. Logo alcançamos o porão. Ela reclamou de ter sentido ratos nos pés, mas eu não havia sentido nada. A plataforma da maquina estava aberta.

- Marta, vem aqui. - disse Lucas.

Entrei. Ele havia tirado o excesso de dentro, claramente expandido. Quando olhei Michelle ja´estava dentro, perplexa com aquela invenção. Na frente um sistema de controle maior do que aquele de controle remoto, com uma cadeira para o piloto.

- Lamento. Só consegui para 6 pessoas.

- É melhor chamar o pessoal agora, senão não vai dar tempo. - disse Michelle.

- E se fizermos agora, não acha que o diretor e as enfermeiras vão notar?

- Dá para disfarçar.

- Mas não por muito tempo.

- Marta, se o diretor não puder impedir, há quem impeça...

- Esse negocio voa? - perguntei.

- Acredito que sim.

- E como vamos tirar esse negocio daqui debaixo de um prédio?

- Eu conheço bem esse lugar. Esse porão não está debaixo do prédio e sim do lado, podemos perfurar o solo e sair daqui.

- Isso também não vai ser nada discreto, não é?

- Nenhum pouco.

- Então vamos começar a evacuar o prédio. Faltam apenas 5 horas para começar a festa.

Quando voltamos saímos pelo banheiro. Justamente na hora em que duas enfermeiras passavam por ali.

- O que vocês estavam fazendo?

Petrifiquei.

- Respondam! Vamos!

- É... é que a comida me fez mal. Eu estava no banheiro.

- Você está machucada? - disse outra a Michelle.

- Não.

- E o que é aquela mancha de sangue? - apontou para o canto perto do vaso sanitário.

- É que... acho que chegou meu periodo.

- É melhor separamos vocês.

Carol foi para um lado e Michelle acompanhada pela enfermeira. Aquilo não fazia parte do plano e atrasaria a nossa fuga. Mas aproveitei a ausência delas e levei o restante das meninas até o porão, utilizando as passagens secretas. O auditório estava quase pronto. As janelas estavam abertas, as cadeiras enfeitadas e uma mesa cheia como se fosse um banquete, tudo aquilo que tinham prometido e um pouco mais: doces, soda, pãezinhos e um bolo de quatro andares. Ninguém imaginava que naquela cozinha podia esconder tamanho talento. Duas enfermeiras seguiram na direção do quarto dos meninos. E antes que pudessem contar quantos haviam sumido, eu sequestrei alguns e os levei ao longo do túnel até Lucas, e ele se encarregaria do resto. Vi que o solo tinha cedido por causa da máquina e a claridade de fora penetrava dentro do porão. Subi e fui até o penúltimo quarto esperando encontrar mais alguém, havia um menino recolhido no fundo do quarto, aparentemente assustado.

- Vamos!

- Cuidado!

- Cuidado com o quê?

- Com a menina.

- Ela te machucou?

- Não. Ela foi embora.

Corremos. Quase pegos por uma dupla de enfermeiras que passavam pelo corredor, paramos e prendemos o folego, descemos as escadas com cuidado, elas rangiam com o nosso peso. Achando o desenho mal feito o pressionei e a parede voltou a se mexer, empurrei o menino e adentramos a escuridão. Lucas e eu discutíamos o final do plano quando escutei um trecho da conversa entre Jordana e o menino:

- Você viu ela também?

- Sim.

- Ela te machucou?

- Não. Ela só me olhou e foi embora. Ela não é má, só quer vingança.

Ao voltar pelo corredor, percebi uma estranha movimentação, com certeza tinham percebido a falta de metade dos pacientes. Cheguei no auditório, todos já rodeavam a mesa da festa. Havia um menino no canto da parede, recolhido, com as mãos na barriga e o a boca suja de chocolate. E outro, que eu não pude deixar de reparar o dedinho gordo pegando o glace e escrevendo na parede DIRETOR MALA.

- Mas o que significa isso? - brandou o diretor.

- Foi só uma brincadeira - o menino se contraiu.

- Vamos conversar sobre isso, agora.

- É uma brincadeira - ele ficou apavorado.

- Tem certas brincadeiras que não são saudáveis, você devia saber - explicou o diretor. Ao contrario das enfermeiras, ele apenas mostrou ao garoto o caminho da diretoria e o acompanhou.

Todos ficaram olhando até a porta se fechar. Peguei a direção contraria e tateando a parede, em certo momento percebi uma extremidade compacta, como se tivesse partido milimetricamente. Uma pequena brecha se abriu e eu entrei. Logo comecei a escutar tapas secos. Uma claridade me atraiu: a sala da diretoria, o diretor espancava o menino, que estava com as mãos e pernas amarrados e amordaçado. Seu rosto ficou vermelho. Minhas duvidas se evaporaram, o diretor era um homem cruel tão quanto ou pior que as enfermeiras. Certamente Ana passou por ali, não conseguia nem imaginar o que ela havia sofrido. Uma ideia maluca me surgiu na mente, Lucas achou loucura e Michelle brincou dizendo que eu estava me parecendo com ele. Subi até o ultimo andar e fui até o ultimo quarto, mas a porta estava trancada. Minha mão tremia enquanto eu tentava, com um grampo de cabelo, abrir a fechadura. Revelou-se um quarto comum, apenas uma cama e uma janela estranhamente arrumado como se tivesse esperando por uma visita. Uma mão tocou a minha cintura. Gritei. Era Michelle.

- Não podia deixar você sozinha aqui.

- Como você escapou?

Vasculhamos o lugar, nada demais nada de menos. Não havia problemas com encanamento como diziam ter, mas as correntes de ar eram verdadeiras, chegou um momento que sentimos frio, e podíamos ver a nossa respiração como uma leve fumaça saindo de nossos lábios. Então, ao virar, ela surgiu: pálida, frágil, com as roupas manchadas de vermelho e um canivete enfiado no olho esquerdo. Tive a sensação que ia desmaiar, mas meu corpo ficou paralisado, a voz não saiu.

- Nós só queremos conversar, menina - balbuciei.

Michelle ameaçava fazer um movimento brusco. Antes que eu pudesse impedi-la...

- Vão embora - ela nos encarou.

- Nós queremos fugir daqui e o diretor não deixa, e você também não gosta do diretor...

A menina apontou o dedo indicador para Michelle e a jogou contra a parede, pude até ouvir os estalos dos seus ossos.

- Por favor! Não nos machuque. Podemos dar uma lição nele e sairmos daqui para sempre.

Ela ficou calada.

Uma com um bastão e a outra com um pedaço de ferro, nós estávamos prontas para eliminar as enfermeiras que aparecessem pelo caminho. Uma dupla desavisada, de costas, passeava pelo corredor, distraídas, até que as acertamos na cabeça. Caíram desacordadas. O diretor havia voltado para o auditório, mas nem sinal do menino. Ana continuava no mesmo lugar, quieta. Passamos pela mesa de doces, por trás do palanque e entramos na diretoria ao longo do corredor. O menino estava desacordado.

- Ei acorda! - disse Michelle dando uns tapas no rosto do menino.

- Assim não - reclamei - Vá. Acorde. Não temos muito tempo. Desamarre-o.

O corpo estava roxo por causa da pressão das cordas. Ao tirar o pano da boca ele respirou fundo. Retirando as cordas das mãos e das pernas ele caiu no chão, tonto.

- Onde vocês pensam que vão? - a voz arrepiante do diretor soou atrás de nós. Levantou as mãos ameaçadoramente.

- Para trás! Michelle cuidado.

Ela posicionou a tempo o ferro e o acertou nos braços, ele soltou um urro de dor. Puxou rapidamente o menino, apoiando-o em um dos braços e me deixando a sós com aquele monstro, uma criança contra um adulto. Corri, mas ele me segurou pelo uniforme, gritei então bati nele com o bastão, que acabou me soltando. Vi de relance Ana fugir com os outros. Subi as escadas desesperada para encontrar um lugar que eu podia me esconder. Entrei no ultimo quarto, para recuperar o folego. E de repente ele já estava na porta, olhando para mim como quem olha para uma presa, morto de fome, segurando o braço machucado.

- Você quer se juntar a ela?

- Vá embora! Saia daqui!

- Eu não tive culpa - ele fez uma pausa - Ele apenas teve o que merecia. E você vai ter o que merece. - ele avançou querendo me agarrar, mas consegui acerta-lo umas duas vezes na têmpora.

Calculo que ele devia ter desmaiado, mas por alguma obra maligna ele continuou de pé. No canto da parede ele me imobilizava pressionando o peso do seu corpo contra o meu, me deixando sufocada. Até que eu vi sua orelha e a mordi, cheguei a sentir gosto de sangue. Chutei na sua parte genital e ele caiu na cama gritando de dor. Tentei me levantar e com um bastão o acertei várias vezes, o virei ele estava desacordado. Não tive coragem de continuar, não queria me tornar uma assassina e meus lábios estavam sujos de sangue. Logo, a menina apareceu do meu lado, como se estivesse esperando um convite para terminar sua missão na terra. Olhou-o friamente com o único olho bom que lhe sobrou, tirou devagar o canivete do outro olho e esfaqueou John Walter até que o corpo caísse no chão, imóvel. Arregalei os olhos vendo aquela cena, mas esse era o fim. Olhei para a porta aberta, me virei para sair com uma sensação boa quando senti uma dor ardente na minha barriga, olhei para baixo, o canivete. Então, tudo começou a rodopiar como um redemoinho, enquanto minhas mãos tentavam em vão conter o sangue.

- O que você fez? - tossi - Fizemos um acordo...

- Por que eu deixaria você ir? - ela retirou a faca sem piedade - Você entende agora o meu sofrimento?

- Socorro! - minha voz ficou rouca.

- Você vai ficar comigo para sempre. - ela segurou meu braço, que ficou dormente.

O chão se abriu mostrando o lugar onde ela foi escondida, alias o que restou, ossos enterrados havia muito tempo embaixo do assoalho. Fui arrastada para perto daquilo enquanto ficava o rastro do meu sangue no chão, até que com um grito ensurdecedor a menina evaporou como água e desapareceu. Tudo parou de girar, o buraco se fechou e eu me vi só. Mas Lucas estava no quarto, queimando os ossos dela.

- Que confusão - disse ele como se fosse a coisa mais simples do mundo - Mais cuidado da próxima vez que você quiser conversar com um fantasma - olhou para o meu corte.

- Cadê a Ana?

- Ela está bem agora.

Jordana acordou Michelle, que aquela altura eu havia esquecido que também foi ferida. Limparam o meu ferimento e envolveram em bandagem. O prédio estava quase abandonado, só faltava nós quatro. Dei uma ultima olhada para aquele lugar que havia sido uma prisão por poucos, e ao mesmo tempo, longos anos. A máquina nos esperava do lado de fora, subimos nela e fomos embora dali para sempre.

Nefer Khemet
Enviado por Nefer Khemet em 06/06/2015
Código do texto: T5267701
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