24 horas de Horror - 07:00

"Estou com fome. Onde estará o bom doutor? Será que já passaram das oito? Bem, se não me chamaram ainda... Ai, já que eles não querem pintar todo esse branco, ao menos poderiam por um relógio bem ali, em cima da porta, né? Bem, quando o doutor chegar eu sugiro a ele."

A mulher dentro do quarto, já na casa dos quarenta, mal precisou esperar. Quinze minutos após ter acordado, entra o dr. Paulo, com a costumeira saudação entre os dois.

- Bom Dia! Como vai a minha paciente preferida?

- Vai no quarto dela perguntar, ué?

Os dois riem como fazem todos os dias desde que o doutor chegou, há 23 anos. Era uma forma dos dois interagirem entre si, liberando a tensão que um hospital daqueles possuía. Paulo, porém, pouco relaxou desta vez, coisa que não passou desapercebida pela paciente.

- Que houve, bom doutor? Gato comeu sua língua?

- Na verdade não... É que eu tenho uma visita para a senhora esperando aqui fora.

- É Jorge, meu marido?? - Exclamou a mulher, esperançosa. - Veio ele, finalmente, me buscar?

- Bem, não é o Jorge... - Paulo respondeu fracamente ao ver a alegria se dissipando naquele rosto cansado - Mas creio que gostará mesmo assim. Trata-se de um amigo meu que gostou muito de saber da senhora. Ele pode entrar?

- Se é amigo do bom doutor, que entre. - Respondeu ela, com aquela voz abatida de quem a vida fecha a porta na fronte pode possuir.

O dr. Paulo faz sinal para que o convidado entre. O homem que entra destoa de tudo no ambiente. Seu aspecto jovial e alegre em nada lembra o hospital branco e melancólico em que a mulher reside.

- Eu já te conheço?

- Como? - indaga o jovem, enquanto olha para o amigo médico, como se em busca de como agir.

- Sinto que já vi o teu rosto... Bem, não sei. Mas é difícil se esquecer de algo tão bonito.

- Obrigado, eu acho - responde o rapaz, encabulado, olhando para Paulo.

- Ora, deixa de envergonhar o menino! Sabe que o café-da-manhã dura pouco e Sabrina não vai te deixar comer depois do horário.

Ela olha pro lado e faz cara de deboche:

- Eu me viro com aquela velha esquisita depois... - Os dois, médico e paciente, riem sem parar, assustando ainda mais o visitante. - Mas bem, bom doutor, sei que nada se faz por acaso. Por que você trouxe um menino tão cheio de vida para cá?

- Bem, essa história é um pouco longa. Como não temos muito tempo, vou simplificá-la: eu conheci o Gabriel há alguns meses. Conversando com ele, percebi que o mesmo se interessava muito no seu caso. Bem, como sei que possuímos uma boa relação, eu e você, pensei em chamar ele para escutar a sua história. Se não se importar, claro!

- Eu me importar com um pedido do bom doutor?? Claro que não. - Ela ri um pouco e olha para o rapaz. - Então tem alguém querendo conferir se estou batendo bem da cabeça? Vou te contar a minha história então, rapazinho, e quero ver se isso não vai te embaralhar a mente.

- Era uma bela manhã de sol quando eu vi Jorge pela primeira vez. Ele dirigia um daqueles carros antigos - sabe? - um daqueles Corcel - aquilo sim era carro para ninguém botar defeito! - de cor vermelha. Um dos poucos defeitos de Jorge é que ele sempre foi ruim de disfarçar. Quando ele passou de carro, rodando a praça pela terceira vez, eu soube que ele estava me olhando.

- Namoramos uns quatro anos antes de noivar. O casamento foi uma semana antes do meu aniversário de 25. A partir daí, saí da casa dos meus pais e fui morar com ele num sitiozinho que Jorge tinha; ficava cerca de 40 km da cidade.

- Pois bem. Certo dia, devíamos ter uns oito meses de casados, acho, e eu tinha acabado de fazer o café da manhã. Jorge chegou para comer e, enquanto ele ainda estava na mesa, caíram alguns copos da pia. Lembro que ele saiu rindo, falando o quanto sou desastrada - ele sempre gostou disso, sabe? De ficar engrandecendo cada parte minha, quer fosse boa, quer ruim.

- Eu fui na despensa, que era atrás da casa, e peguei uma vassoura e uma pá. Quando voltei, eu tive um enorme susto. Tinha uma mancha enorme no chão - desse tamanho, mais ou menos - que parecia muito vômito com sangue. Foi quando eu chamei o Jorge para ver. Só que, quando ele chegou, aquela mistura esquisita tinha sumido. E isso durou mais ou menos até o fim do dia. Eu via a mancha e chamava Jorge. Quando Jorge chegava, ela havia desaparecido.

- E o que aconteceu? - perguntou o rapaz.

- Bem no finzinho da tarde, a mancha apareceu pior. Ela estava muito maior, mais vermelha e - como posso dizer? - mais nojenta do que antes. Como eu já não estava mais acreditando em mim, resolvi me beliscar - para ver se eu estava acordada, sabe?. Foi quando eu vi que meus braços, minhas mãos e o resto do meu corpo estavam recobertos por aquela coisa estranha. Eu comecei a gritar e desmaiei.

- E, no outro dia, acordei aqui. O bom doutor aqui veio alguns dias depois; eu contei a história para ele e ele disse que Jorge viria me buscar quando conseguisse se livrar da mancha. E essa, meu caro, é a minha história.

Os dois se levantam e Paulo avisa que vai levar Gabriel à recepção. Um sorriso amável, cansado mas verdadeiro, é o que deixam para trás, no quarto branco.

Estão no meio do caminho quando Gabriel quebra o silêncio com uma pergunta:

- Era realmente necessário? Quero dizer, tudo isso era necessário de verdade?

- Gabriel, Gabriel. Jorge batia muito nela. Foi preciso usar muita hipnose para modificar as memórias dela, permitir que ela tivesse, ao menos, uma vida calma, sem tantas memórias ruins. Quando ela chegou aqui, toda ensaguentada e repleta de hematomas, só falava Jorge, vômito e sangue.

- Mas não havia outro meio?

- Confesso que foi a decisão mais difícil que tive de fazer em toda a minha carreira; tanto é que estou ao lado dela até hoje. Mas espero que entenda: se eu não tivesse feito isso, você jamais conheceria a sua mãe.

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A mulher, deitada, levanta-se num sobressalto. Lembrou-se, finalmente, de onde conhece aquele rosto. Se dirige à porta trancada e, pela primeira vez desde que chegou, passa a bater nela de forma desesperada, primeiro com as palmas e, depois, com os punhos.

- Gabriel!, Gabriel! - Mas, tão logo gritou, já sabia que era tarde. Ele já havia ido. Mas aqueles olhos foram impossíveis de esquecer. Olhos sempre sérios, mesmo que afetuosos, que a seguiam durante toda a vida.

E, ainda hoje, toda vez que é perguntada, ela se recorda dos olhos do visitante misterioso; olhos que ela, no mais íntimo do ser, pensou que nunca mais veria: os olhos de Gabriel, seu pai.