Encosto

Sentada no outro extremo do balcão, a mulher olhava Irene fixamente. Ambas estavam num barzinho de gente solitária – mas Irene começou a ficar constrangida quando a estranha pôs-se a lamber lascivamente os lábios de um intenso vermelho natural. Mas que diabo, estou sentindo tesão por uma mulher! gemeu Irene, surpresa e aniquilada ao descobrir, naquele momento, o quão pouco conhecia de si mesma. Quis fugir daquele olhar hipnótico, mas sensações físicas inebriantes forçavam-lhe a continuar flertando com aquele ser. Viu quando a mão direita da estranha, longa, fina, enlaçou o grande copo de bebida, uma bebida verde, levou-o aos lábios e deu um pequeno gole. Irene sentiu nas papilas da língua o gosto de gim com menta – ela que jamais bebera semelhante mistura. Fez um sinal ao barman e pedi drinque semelhante. Bebeu-o, aturdida – Irene não gostava de bebidas alcoólicas, o máximo que suportava era um chopinho, e olha lá, só em raras ocasiões. Mas aquele drinque, em especial, desceu-lhe pela garganta com indescritível gosto de aventura.

Irene voltou novamente a olhar para a mulher e, com vago sentimento de tristeza, constatou que já então ela tinha companhia. Um sujeito pequeno e magro, trajando terno cinza, camisa branca e gravata vermelha, estava a lhe oferecer um cigarro. Falou qualquer coisa bem junto ao ouvido dela, um segredo longo e divertido, pois os lábios da mulher abriram-se tal qual flor silvestre no ápice da primavera. Irene sentiu uma vontade doida de fumar, depois de quatro anos de abstinência. Pediu um cigarro ao barman.

Logo o casal levantou-se das banquetas. Antes de sair, a mulher lançou em Irene um olhar chocantemente devasso, uniu os lábios num simulacro de beijo e soltou uma risada perturbadora, entre pérfida ou cínica.

Irene pagou a conta e saiu também. Curiosamente, não sentia a costumeira dor abjeta da solidão nem o cansaço do exaustivo dia, todo o tempo de pé na butique de sua propriedade, num Shopping, atendendo a barulhentos adolescentes experimentando os tênis da moda, as roupas de grife custando o olho da cara – ela com o eterno sorriso estampado no rosto, franqueada às piadinhas infames, à alegria nauseante, às brincadeiras irritantes daquela cambada que, ó caprichos da vida!, era seu sustentáculo financeiro. Ao término do expediente, estressada, biliosa, enfezada com o mundo, sentia-se, sempre, um bagaço. Daí os barzinhos para gente patinando na angústia do viver solitário.

Irene relançou os olhos para o alto, vasculhando os confins da noite. Uma bela noite, fresca, de lua cheia. Da calçada fez sinal para um táxi. Por um desses inomináveis acasos, estava ao volante seu ex-marido. Absurdamente, Irene ficou feliz em vê-lo. Tiveram uma separação tumultuada, quando todos os sentimentos cruéis escapam-nos da alma e atingem sem dó nem piedade aquele que um dia amamos – as palavras transformadas em setas banhadas em curare. Cumprimentou o ex com um sorriso aberto e franco, o que só causou estranheza ao homem. Ele abriu a porta do carro, o cenho carregado a formular interrogações. Seguiram em silêncio, às vezes Irene fitava-o de esguelha – nesses três anos de separação parecia-lhe que o antigo companheiro tinha remoçado apesar dos cabelos tornarem-se grisalhos nas frontes. E foi exatamente o grisalho de seus cabelos que começou, inexplicavelmente, a mexer com a libido de Irene, sentia uma vontade doida de tê-lo todinho dentro de si. Súbito, ele encarou-a de rosto carrancudo.

– Que foi? – ele perguntou.

– Foi o quê?

– Tá me olhando de um jeito estranho...

– Estranho? Estranho como?

– Você me olha como faria uma puta. Não uma putinha qualquer. Uma putona com uma bagagem e tanto de safadezas.

*

O restante da viagem foi feito em silêncio. Irene estava perplexa. Ao invés de sentir-se magoada, fervia dentro do peito uma alegria inconcebível, um contentamento inexplicável: era como se acabasse de receber um elogio descomunal e, mais que tudo, absolutamente sincero. Quando chegaram em frente ao apartamento, ela tirou da carteira a nota mais alta que tinha.

– Parece que rodar a bolsinha vem sendo um negócio muito lucrativo – disse ele enquanto fazia o troco, a voz pesada de ironia e letal como uma faca no coração. Irene fitou o ex-marido com uma expressão de sol esplendoroso emitindo raios da mais genuína devassidão. Furioso, o ex arrancou o carro com tal ímpeto que, sob o clarão da iluminação pública ficou um trilho negro dos pneus ao atrito com o asfalto.

Assim que Irene abriu a porta, veio do interior uma lufada de odores nauseantes: fedentina causticante de suor, perfume ordinário – e tais cheiros, singularmente, encheram-lhe de euforia, sentiu um bem-estar enorme circulando em suas veias como o efeito de alguma droga alucinógena. Trancou a porta e um calorão absurdo começou a tomar conta de seu corpo. Bagas de suor escorriam-lhe pela testa, as costas tornaram-se pastosas, tal a quantidade de líquido brotando em fervura de lava vulcânica – a região genital escaldava. Jogou-se no sofá, arfante, febril. Uma febre sexual: ansiava por mãos, milhares de mãos arrancando-lhe a pele em sucessão de carícias másculas, brutais. Um banho, precisava de um banho, um banho gelado como os icebergs da Antártida. Arrancou a roupa com gestos bruscos, arrebentando os botões da blusa, a alça do sutiã, o zíper da saia, o elástico da calcinha. Curiosamente, conservou nos pés os sapatos. Nua, caminhou para o banheiro, os saltos-agulha martelando o piso taqueado com a cadência de égua puro-sangue dirigindo-se para o partidor do hipódromo. Tirou os sapatos, ligou o chuveiro e, incrédula, posicionou a chave de regulagem na temperatura máxima – queria consumir-se no calor, derreter-se na caldeira dos desejos. Então sentiu, sob as águas, mãos invisíveis deslizando em seus seios, apalpando-lhe as nádegas, bulindo com clitóris. Após, percebeu que estava sendo penetrada. Um órgão sexual imaterial, incorpóreo, impalpável, socava ritmicamente as suas entranhas – havia um morrer e ressuscitar sucessivo dentro de si. Os gozos, contínuos, estavam a mostrar-lhe no panteão as faces de todos os deuses do prazer infinito.

*

Sentiu-se tão saciada que no trabalho todos estranharam. Jamais tinham visto Irene tão solícita, tão calma, tão amiga. Tratava os clientes com uma delicadeza, simpatia e compreensão que por duas vezes recebeu cantada de alguns adolescentes que confundiram seu estado de espírito venturoso com a disponibilidade sexual. Mas aos poucos a sensação de plenitude foi passando e Irene começou a ansiar por nova aventura. Três dias após retornou ao barzinho.

A mulher entrou quando Irene tomava o segundo suco de laranja. Acomodou-se na banqueta no extremo do balcão e pediu gim com menta. Irene fitou-a, alvoroçada. Seu coração batia tanto que o sistema auditivo absorvia com nitidez as pancadas dentro da caixa torácica. A princípio a desconhecida ignorou Irene completamente, como se quisesse, sadicamente, martirizá-la. Irene a fitava gulosamente, entristecida com a atitude da tipa, sentindo raiva e ao mesmo tempo um desejo humilhante de que fosse foco de um olhar, um aceno de cabeça, um sorriso, um gesto de mão. Finalmente, depois de quase meia hora, a mulher ergueu-lhe seu drinque, a título de saudação. Irene abriu-se num sorriso de girassol e imediatamente pediu um copo com gim e menta. Nada impedia Irene de levantar-se e ir ao encontro da mulher, trocar algumas palavras, desfazer todo o mistério daquele elo a uni-las. Mas a estranha não queria aquilo e Irene muito menos: foi nesse preciso momento que, abismada, descobriu que ambas tinham a consciência em comunhão – os sentimentos, sensações, desejos e reações eram interligados.

O sujeito apareceu por volta das 22 horas. Irene sentiu um estremecimento de expectativa, entusiasmo e medo. O homem era grande, forte, uma cicatriz no lado esquerdo do rosto que ia da base da orelha ao queixo. Usava uma camiseta de malha preta, a destacar seu tórax poderoso. Não tinha alguns dentes no lado direito da arcada superior, mas os lábios abriam-se num sorriso orgulhoso. “Perdeu os dentes numa briga recente”, alertou uma voz misteriosa invadindo o cérebro de Irene com uma autonomia tão crua que era uma desfaçatez. Ele pediu uísque. Não uma dose, mas uma garrafa, dessas graduadas. Durante todo o tempo em que bebiam a mulher flertou com Irene descaradamente. Antes de o casal sair, a mulher piscou para Irene numa promessa de fabulosas delícias para aquela noite.

*

Foi uma noite de pesadelo. Apesar de haver ingerido apenas uma dose de bebida alcoólica, Irene saiu do barzinho – uma hora depois da mulher com o gajo esquisito – cambaleando como se tivesse tomado uma mistura monumental de gim, menta, uísque e fermentados. O motorista de táxi, um velhinho gentil, ajudou-a a entrar no veículo e, depois, abriu-lhe a porta do apartamento, já que Irene não conseguia introduzir a chave na fechadura. A sós, Irene deu consigo a uivar palavrões. Então sentiu no rosto o impacto de uma bofetada imaterial. Um tabefe tão forte que seu corpo foi lançado contra a parede. Escorregou lentamente para o solo e ali, pateticamente sentada com as pernas distendidas e abertas como um leque recomeçou o vociferar medonho, tão furiosa que sentia uma baba gosmenta deslizar-me pelos cantos da boca. Um chute – invisível – atingiu-a nas costelas, Irene pode sentir que os ossos quebravam-se. Caída de comprido no solo, outro golpe acertou-lhe o braço. Foi colocada de pé como que içada pelo pescoço, um golpe torpedeou-lhe o olho – uma pancada de violência tal que Irene foi a nocaute.

*

Deu por si num leito de hospital, enfaixada no busto, o braço engessado e um olho completamente fechado. Fora socorrida pelos vizinhos, segundo a enfermeira. A polícia aventou uma tentativa de assalto. Irene refutou a ideia. Tinha caído no banheiro, apenas isso, nada mais que isso. Os policiais ficaram putos com sua covardia, teimaram que ela deveria denunciar o agressor. Irene bateu na mesma tecla: tinha caído no banheiro. Diante disso, não foi registrada nenhuma queixa.

Irene ficou três dias hospitalizada. Quando recebeu alta, estava um trapo. Fitou-se no espelhinho emprestado pela enfermeira. Horror dos horrores! Seu rosto estava inchado, uma mancha violácea tomava-lhe toda a região ocular. Com uma tristeza infinda constatou que perdera um molar – no seu sorriso tão belo aquela falha dentária provocava uma tristeza tão grande que era para morrer sufocada em lágrimas.

Deixou o hospital por volta das cinco e meia da tarde, tomou um táxi. Retirou dinheiro num caixa eletrônico e pediu ao taxista, envergonhada de sua aparência, que ele fosse a uma ótica e lhe comprasse óculos escuros. Rodaram pela cidade, sem destino. Quando eram oito e meia da noite, Irene deu-lhe o endereço do barzinho. O local só abria às 21 horas, então Irene apoiou-se à porta e pôs-se a esperar – o quê, ela nunca saberia. Logo viu um sujeito de cabelo e barba brancos, corcunda pelo peso da idade, caminhar em sua direção. Ficaram frente a frente. O ancião tirou um cartão de visitas do bolso do surrado paletó marrom e o entregou a Irene. No cartão se lia: Missionário José Crisóstomo, especialista em exorcismo. O suposto missionário explicou: – Os bares são pródigos em maus espíritos, eles se apropriam de pessoas incautas como você. Quer fazer um trabalho espiritual? Eu cobro uma ninharia.