O cão preto

A existência é como uma dor que pulsa e coça na camada da realidade, porém, de forma profunda, sem fim, enfim, cá na psique do ser vivente, com proporções homéricas. O ponto da indiferença da existência de um único ser é a fugacidade de estar num complexo de tempo e espaço tão restrito e que só pode ser ocupado por aquele único corpo, e por aquele único período, tornando o espaço importante através do tempo por acolher diversos corpos, um de cada vez. E em sua efemeridade perpetua esta linda carne a durar no tempo e ultrapassar dimensões de espaço, na possibilidade proporcionada quando alguns seres que entrelaçaram e que entrelaçam os períodos de seres diferentes conectam os tempos através dos ecos que são como um movimento depois da morte de uma estrela. Sem sua luz a estrela não perduraria, porém, sem os olhos que a enxergam e a percepção de espaço e tempo desses olhos a fugacidade condenaria a estrela a infinidade do esquecimento desde seu nascimento.

Ha registros fotográficos, afetivos, emocionais, psicológicos, médicos e psicossomáticos de sua existência, momento no qual seu corpo ocupou pouco espaço da minha casa de amor e manipulação do abuso entrepostos de saúde e doença, problema e solução, amor e medo... Era um cão preto, na verdade uma cadela negra, com uma mancha branca no peito.

Ela foi adotada pela família em questão, a minha, numa fase de sua vida que poderíamos identificar como a de uma velhinha. Eu não acho que ela tinha muito mais que 6 anos mas sua experiência de vida era longa, pelo pouco histórico que conseguimos levantar, e seus comportamentos.

Eu a amei a primeira vista, sua alma era encantadora. A vi à frente de um portão, deitada na calçada que pertence à família da casa, que não era a minha. Ela era deixada abandonada a sorte pela rua, a vi algumas vezes quando passava por ali, mas não todas as vezes que passava. Ela era apedrejada por crianças da casa da esquina e nunca recebia um carinho, havia um abanar de rabo que denotava sua apreensão e medo e nada de recepção e aconchego para aqueles que lhe torturavam.

Deduzi que ela pertencia a ninguém e resolvi adotá-la.

Isso aconteceu rápido, o fato de decidir adotá-la, mas agir levou um ano! Propus a ideia ao meu marido, Victor, que demonstrou aceitar. Eu deixei obstáculos me atrapalharem até que decide agir e a levei para casa.

Ela sentiu muito medo de ir e no espaço para se acostumar a viver, seu novo espaço, já tínhamos outra cadela. Enquanto não pudéssemos encaminhá-la ao veterinário para exames, não poderíamos colocá-la dentro de casa.

Deixei um espaço, então, para se acostumar conosco, e ao chegar em casa Victor se espantou e perguntou se eu já tinha alguém para doar a cadela, isso revelou um pouco do meu próprio e regulado espaço em relação ao meu marido. Espaço daquele espaço e tempo, que só um corpo pode ocupar em um tempo.

Ela me deixou tocar em seu corpo. lá dentro da casa, ficando na garagem me recebia todos os dias com alegria quando eu chegava do serviço, comia ração, não... a devorava!

Dei um lindo e adequado nome a ela, levei-a ao veterinário e ela passou a viver dentro da casa conosco: eu, meu marido, a cadela amarela e a cadela negra.

Seu novo lugar no espaço que esperávamos que ocupasse não foi aceito por ela, pois era claro que não havia gratidão a nós pela adoção dela, isso e sua postura sobre o que estava disposta ou não a fazer, incisiva e estranhamente ela era mais madura que eu. Era bem decidida, não se sujeitaria as palhaçadas de uma vida de adestramento, o que não impedia o bom relacionamento conosco, ponderando o que ela queria e o que ofereceríamos para ela conseguir o que queria.

Logo descobrimos que seus problemas de respiração provinham de um possível atropelamento. Seu pulmão estava comprimido e era necessário operar, fato que ocorreu quando estávamos juntos há dois meses, como uma família. As pessoas achavam que eu era irresponsável por cuidar mal dela, permitindo um acidente, até que souberam que na realidade eu a havia resgatado - que foi a maneira que chamaram a minha adoção - e dessa maneira as pessoas se surpreendiam com a confiança que ela tinha em mim, pois é, nós nos amávamos!

Ela era insubordinada, mas não mal educada, obedeceu o que fosse coerente, não aos nossos caprichos. Isso nos causou estranhamento. Que seja, a cirurgia e a recuperação foram de vento em popa.

Eu estava feliz, muito feliz. Ela estava muito feliz, a cadela amarela se adaptou bem e meu marido, Victor, não estava feliz. Ele começou a cometer pequenos maus tratos, punições às insubordinações, recusou-se a adaptar-se . Ele exigia da cadela negra a submissão que ele queria, e não lhe dava espaço para ser.

Quando ele não estava éramos felizes, ela e eu e a cadela amarela, olhei em seu olhar sábio e sem gratidão e eles diziam-me, abanando o rabo, que me amava e que sabia que eu a amava. Isso tudo não tinha as condições impostas pelos meus outros amores, não era necessário condicionar ou subordinar para amar .

Os maus-tratos aumentaram, ela virou um objeto de controle de meu marido, Victor, sobre mim. Ele ameaçava mandá-la embora caso ela não se subordinasse às suas regras, ela e eu deveríamos atender às idealizações dele. Ela o amava, mas não se sujeitava, e dessa forma eu me sujeitei, enfrentei ansiedade, discuti com ela, a oprimi e reprimi com as mesmas violências psicológicas e emocionais que aplicavam a mim.

Quando percebi deixei-me denunciar a um veterinário que me atendeu com apoio e atenção, decidi que não haveria prazo para ela se adestrar, “ela é minha e eu decido”.

Após isso os maus tratos dele recorreram ao físico, ele me desafiava e eu me subordinava, ela denunciava a mim todas as condições, mas eu não podia ver por seus olhos físicos. Os olhos da alma dela tentavam, mas estavam presos no espaço e tempo em que estava ocupando.

Depois da primeira operação dela foi necessária uma nova cirurgia. Victor, meu marido, a levou devido a emergência e eu fui buscá-la. Passamos dez minutos juntas e ela parou de respirar... ela faleceu na minha frente e eu não pude fazer nada.

Foi como perder a lucidez e perceber que fisicamente eu estava bem, mas que na minha cabeça havia uma coisa nova, que não ocupava aquele lugar antes: estava junto ao medo a sensação de que eu perdi tudo, e que tudo o que fiz foi errado e não seria corrigido.

Passei um tempo com seu corpo pedindo para ela voltar, mesmo que soubesse que era estupidez minha. Ela não voltou e tudo ficou mais fácil aqui em casa, depois que ela liberou espaço e tempo e Victor continuou sua vida normalmente, mas eu... eu não, pois agora eu podia ver pelo olhar dela, e percebi que não havia facilidade sem minha docilidade e submissão.

Choro muito a falta dela, choro agora, ela ainda ilumina muita coisa para eu perceber... enxergar, mesmo depois de um ano de sua morte. Esta noite ela passou comigo. Sim, da dimensão em que está senti sua inquietação de sono sobre a cama, senti seus passos ao pular, se ajeitar e não gostar ali perto das minhas pernas, e então ela andou mais e deitou próximo ao meu peito e nós dormimos.

Que fique claro que meu marido, o Victor, vem dormindo em outro quarto, como um incêndio que me eliminaria dividiu o meu espaço e tempo. Ambos, meu espaço e tempo, estão contido nos peso da existência da luz e que sua passagem permaneça, pois o que a cadela negra trouxe revelou a sombra do autoritarismo de Victor e a minha subordinação, assim, agora, posso mudar as coisas perante a sua permanência aqui em meu espaço e tempo enquanto ela é de outra dimensão no mesmo espaço e tempo.

Vou segurando o golpe de machado com a força que a falta da Pérola, a cadela negra, me faz sentir em sua denúncia perpétua. E algum momento serei procurada para minha defesa e não estarei em parte lá, o que acontecerá na ocupação do meu espaço e tempo quando for disputado com o senhor Victor pode ser uma luta de resultados com reminiscência de luz, pois eu não sei se sou só eu ou se há também uma cadela negra que segura a machadada.

Laura Lucy Dias
Enviado por Laura Lucy Dias em 20/01/2016
Reeditado em 06/02/2016
Código do texto: T5516911
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