O coração delator: boa menina

O tempo era gélido, saía vapor dos pulmões dos presentes como fumaça que condenava a vida ao estéril e hostil. A solidão perscrutava a todos, amados ou não. O número de pessoas ao redor do caixão não era maior do que o dos que estavam sentados nas cadeiras da sala de velório alugada. Todos os rigores católicos foram cumpridos, já havia horas de velo e empedrada estava a filha do morto, prostrada na cabeceira do caixão. Não respondia a ninguém, era tocada e repelia a todos com sua fria indiferença a eles, pois era claro que ainda estava em sua reclusa vida a dois com o pai dela.

Viviam ambos em uma casa cheia de escadas pontiagudas e escuridão da idade e perversidade. Sim, era pura perversidade, mas poucos podiam perceber aquilo, e quem percebia ficava em silêncio, era cumplice de tudo. De fato, posso afirmar que nos últimos anos não haveria mais salvação à ninguém. Foram dezoito anos de convívio, parte deles entre o pai e a mãe, sempre com a lembrança das mãos doloridas e enormes durante a noite, mãos que a assustavam no início. Ela era uma menina má.

Sua mãe fora uma boa mulher, além de dar Natália ao seu pai. A menina não se lembrava da mãe, havia poucos retratos, e sempre com postura séria, onde o pai ficava em pé, com a esposa ao seu lado e em outra época com a criança no colo da mãe.

Natália era espantosamente calada e fiel, olhava sempre para a mão do morto no velório, mas a todos parecia que o olhar não tinha foco algum, como se estivesse perdido. Na verdade não estava, não havia nada de perdido dentro da moça, o terror que sentia era banhado de um prazer imprescindivelmente arraigado desde a noite da morte do pai.

O homem havia morrido há dias, mas sua filha parecia não saber, quando houve uma visita dum chegado do pai, um homem austero que tinha negócios com sua família foi recebido em silêncio e encaminhado ao quarto do morto, que tinha um lençol muito fino, como um véu, que cobria todo o corpo e estava tão limpo e bem cuidado quanto frio. Suas mãos estavam tão bem feitas que causava inveja ao mais nobre homem.

No velório pessoas iam e vinham, muitos eram conhecidos pela menina, todos lhe diziam que ela era muito boa, mas ninguém tentou falar mais que isso, quem a ajudaria? Na verdade nem mesmo ela tinha esse interesse, não se sentia necessitando de mais nada, apenas tinha essa certeza do que estava ali, a prova viva da sua conquista. O corpo frio e as mãos imóveis eram sua vitória sobre toda uma vida de menina má.

Achavam que ela não batia bem da ca-beça, pois não percebera a morte do próprio pai, mas de fato não sabiam a verdade: ela sabia bem o quanto aquele corpo poderia ser quente, arder e ferir, tudo foi planejado em anos de ideias e tentativas, surras e abusos de todos os tipos desde que se lembrara, não era uma coisa que ela entendia, pois não conhecia outra coisa, mas de fato ela não era feliz, decidiu e fez o que foi preciso. Matou o pai dela.

O agora era mais importante do que qualquer futuro, cuidar daquele corpo era ter a possibilidade de viver a liberdade que buscava, só havia ainda um problema e ele era o fato de ter apenas o objetivo de uma emancipação do mal e não de uma alforria para viver algo de bom, talvez o senso de justiça por justiça tenha passado longe pelo que seria justo em seu próximo passo, afinal, o que faria agora? Isso não a assombrava, apenas o terror ligado à satisfação da justiça e emancipação.

Logo chegava a hora de colocar aquele corpo na cova, seu coração se colocou em saltos e o som rebatia nas paredes secas e retumbavam, sentia a vibração voltando ao seu corpo e se sentiu com medo de ser pega, como se sentia anteriormente quando era pega pelo pai, porém ninguém dava sinal de perceber. Olhavam-na e ela achava que era algo acusatório. Passou a desviar os olhos do corpo e a olhar os corpos que circulavam, todos a observavam, todos se lamentavam, sentiu o coração dela e ouvia seu som aumentando cada vez mais, como nunca fazia em público.

Passou a se experimentar uma má garota, pois era o que ela era, seu pai lhe dizia "seja uma boa menina", provavelmente por ela ser uma menina má. Ela merecia tudo aquilo, o júbilo tornou-se um som mais alto em seu peito, as pessoas se agitaram, ela tinha certeza absoluta de que todos sabiam e que estavam aguardando que ela se traísse e confessasse, as mãos de todos em volta dela tomaram uma proporção inflada e demoníaca, começaram a preencher o ambiente e a possuírem-na através de toda a pressão e sufocar o quanto podiam, eles queriam uma confissão.

Seu coração acelerava e as pessoas sorriam, o som a denunciava que ela não podia controlar, mas... se todos sabiam o tinha feito, se todos podiam possuir seu corpo, o que deveria esconder? Era seu júbilo e seu terror. Ouviu-se o coração dela em conjunto com o som de passos em sapatos caros e sacros, todos abriram espaço para que o padre passasse, um padre que era um par de mãos gigantes, as mãos do pai.

Seu coração a denunciou a todos, estremecendo todo o lugar, enquanto ela retirava as suas roupas e se declarava culpada, justiçada, emancipada. Sua última declaração foi "estou livre do pai!", antes de cair nua, quente, ardendo durante minutos, até que seu coração parou de soar a denuncia maior.

Laura Lucy Dias
Enviado por Laura Lucy Dias em 20/02/2016
Código do texto: T5549597
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