Medo

1-Horror

Talvez um anjo da guarda obscuro, um monstro, uma criatura que não consta em nenhum livro mitológico ou simplesmente uma imagem que viveria para sempre junto dela.

Não sabia o que era; nunca soube direito.

A primeira vez que ela sentiu a tal presença transformar-se em algo palpável foi numa madrugada chuvosa de verão, aos sete anos. Foi apenas um lapso – mas foi o suficiente para que uma corrente de desespero percorra o seu corpo todo.

Toda noite, ela saía de sua própria cama, em silêncio, em direção ao quarto da mãe – não dormia tranquila sem que estivesse ao lado dela.

Para isso, deveria atravessar o corredor que, embora de dia fosse apenas um inocente chão estreito de madeira brilhante, de noite, na escuridão que era rasgada apenas pelo feixe de luz da rua que brotava de uma das janelas, transformava-se num pesadelo; parecia ter milhas. Era uma agonia – parecia ter se tornado numa ponte feita de ossos quebradiços, bordilhada pelas criaturas que se ocultavam sob as sombras dos móveis, sob as portas e camas, imaginava que haviam cobras enrodilhadas nas pernas das cadeiras de sala de jantar e que havia olhos amarelos observando de longe.

No final, era tudo imaginação de criança ou o sono pregando-lhe peças. Tudo dissipava assim que entrasse no quarto da mãe e visse o esboço de seu corpo longo deitado sobre a enorme cama, e então se deitasse ao lado dela, meio encolhida, ouvindo sua respiração e fechando gentilmente os olhos. Todas as criaturas bizarras haviam virado pó, e então, qualquer vento poderia varrê-las para longe.

Mas não foi o que aconteceu naquela noite. Chovia muito, a janela revelava alguns clarões e os trovões ecoavam ao longe.

Como sempre, saiu de fininho, e lançou o olhar sobre o majestoso corredor e suas paredes brancas. A imagem de sempre lhe apareceu na cabeça: um ninho de cobras peçonhentas, animais esquisitos à espreita com as mandíbulas cheias de sangue...tentou afastar esse pensamento concentrando-se na porta pela qual deveria passar.

Percebeu que havia uma porção do escuro que era ligeiramente mais enegrecido – como uma sombra impressa na parede – quase como um vulto esmaecido – era uma figura enorme, parecia estender-se até o teto, fitando-a de cima.

Teve um sobressalto, dando alguns passos ligeiros para trás. Olhou de novo, ressabiada: a silhueta continuava ali, cada vez mais nítida, agora tomando a forma de um homem corpulento.

Esfregou os olhos. Aquilo, o que quer que seja, permanecia ali, quase como numa espécie de insistência. Parecia ouvir a respiração pesada da criatura.

Julgou-se louca. Fechou os olhos com certa violência, como numa compulsão, e pôs-se a correr às escuras em direção da porta do quarto da mãe, com muito receio de olhar para trás e ver que aquela coisa continuava ali.

Passou pela porta e tateando os objetos deitou-se na cama com certo desespero; seu coração palpitava mais forte.

2 - Ele

Só tornou a abrir os olhos ao acordar, na manhã seguinte – sua mãe já havia deixado a cama e listras de sol penetravam pelas venezianas brancas.

Ali estava ele, ao pé da cama, olhando-a.

Assustada, o encarou com mais cuidado: era uma figura estranhíssima, como que deformada por algum acidente, e completamente assimétrico: a cabeça não era proporcional ao tronco, assim como os braços e pernas; cada parte parecia ser de uma pessoa diferente, como se tivessem amarrado fragmentos corporais todos juntos a fim de formar algo parecido com um humano.

Apesar de tudo, havia algo de familiar em cada parcela da figura. Reconheceu os olhos amendoados, a barba grisalha que pendia do queixo, a boca repleta de dentes quadrados, tudo: cada fração remetia à uma memória, à alguém.

3 – Olhos

Ao olha-lo da cama percebeu que havia nos olhos dele algo de íntimo. Eram olhos castanhos, opacos, esmaecidos, que a olhavam com um lampejo de desdém e vergonha. Reconheceu no tal monstro o olhar do pai.

Sempre tivera medo do pai – era um sujeito que ela vira poucas vezes, quando menor, de relance, provavelmente agarrada à saia da mãe que chorava baixinho.

Quando chegava o Dia dos pais, na escola, quando suas colegas punham-se a escrever dedicatórias doces a eles, desenhá-los embrulhados em corações vermelhos, Maria simplesmente desenhava um homem como outro qualquer, apenas evidenciando os olhos agressivos aplicando força ao usar o lápis de cor marrom. Quando escrevia algo, por mais que fosse uma frase bonita, julgava-a apenas como uma porção de letras garranchadas no papel.

Sentia vergonha. Os desenhos mostravam amor entre os pais e as filhas, mostravam que os dois se divertiam juntos, coisa que ao seu olhar seria impossível e muito improvável. Queria um pai daqueles, que, envolto em corações coloridos, pescava, jogava bola ou devorava feijoada aos domingos ao lado da família.

Uma figura paterna era uma figura mitológica para Maria, mero folclore – só ouvia falar. Encarava o pai apenas com uma sensação de frieza e um medo surdo – assim como se sentia ao lado do monstro.

4 – A boca de dentes quadrados

Reconheceu naqueles lábios sérios e cerrados a professora da primeira série. Era uma mulher de meia-idade, de aparência nervosa, um pouco gorda e que sempre estava com as chaves do carro nas mãos, fazendo-as tilintar mesmo enquanto explicava algo ou escrevia no quadro negro. Era muitíssimo rígida: por capricho seu, tornava o mais confiante dos alunos em um bicho nervoso e medroso, que tremia só ao ouvir barulho das chaves batendo umas contra as outras.

Sua fala era como um ruído ardido, incessante e agressivo, falava-lhes com brutalidade. Tinha o costume cruel de escolher um aluno qualquer – geralmente era o que estava suando frio- e chama-lo a frente para que respondesse alguma de suas perguntas. Caso errasse, passaria o recreio todo dentro da sala, ouvindo as risadas de seus colegas irromperem do corredor.

Sua presença era pesada, como fosse um lobo à espreita de um punhado de cordeiros. Ao passear pela sala, falando alto a matéria, suas passadas largas faziam um ruído no chão de assoalhado que se juntava ao som das chaves tilintando.

Por muito tempo Maria odiou aquele barulho com todas as forças.

5 – Barba grisalha pendurada

Como sua mãe era empregada doméstica, Maria costumava a acompanhar durante o trabalho, acompanhando-a pelas casas que deveriam receber sua faxina, geralmente ficando no canto de alguma sala e silenciosamente lendo uma revista de quadrinhos.

Havia, todas as quartas-feiras, um apartamento que deveriam visitar, no centro da cidade. Era de um velho aposentado e rico, barbudo e com a testa sempre franzida, que costumava ficar sentado em sua poltrona enquanto sua mãe passava a vassoura pelo assoalho manchado. Ele a observava vulgarmente – nem disfarçava.

Maria ficara muito impressionada pela sujeira daquele olhar. Ela já compreendia que não havia nenhuma faísca de bondade nele. Passou a ir com a mãe todas as vezes, agindo como se a escoltasse, temendo que o um dia o velho colocasse em ação a podridão de seus olhos.

Isto faria Maria desconfiar de todo homem que encontrasse – seus exemplos mais próximos eram o pai e o dono do apartamento. Em breve, estaria olhando com desconfiança clara para o motorista do ônibus, para os seus colegas da escola que seriam homens um dia...

Era costume seu, então, olha-los bem fundo nos olhos, procurando a óbvia agressividade que estaria estampada neles.

6 – Uma solução

Após reconhecê-lo parcelado, Maria sentiu que seu terror diminuíra. Aparentemente, ele era um complô de todos seus medos atados numa forma só.

Colocava-se ainda sobre ela, pondo nela seus olhos paternos, sem expressão nenhuma.

Maria decidiu rápido e saiu correndo do quarto, atrás da mãe que estava na cozinha. Aquilo ainda estava ali, na cozinha, em sua visão periférica, julgando-a, e pelo jeito a mãe não podia vê-lo.

Seu suor nervoso preocupou a mãe, que passou a mão pelos seus cabelos e indagou se estava tudo bem.

Maria contou do monstro, descreveu-o. Sua mãe, apesar de ter feito uma careta de estranheza, disse que rezasse, levando aos lábios uma xícara de café preto.

7- Por um fio

Passou a tarde toda rezando fervorosamente; os olhos permaneciam fechados para não vê-lo mais uma vez. Estava aterrorizada: rezou até de joelhos, ao pé da cama, como vira num filme certa vez, com as mãos juntas e úmidas.

Passou anos rezando da mesma forma. A cada ano, o monstro tomava características diferentes, como se crescesse junto dela. Novos medos: um namorado antigo possessivo, a sua chefa... Ele só aumentava e agora para transportar todos aqueles pedaços disformes havia uma linha grossa juntando-os, bem apertada. Ele quase tomava seu quarto todo.

Havia até tentado gritar com ele, oferece-lo qualquer coisa desde que fosse embora. Reconhecia-o, mas não o conhecia como um todo.

Arquitetava planos, imaginava-se chutando e socando aquela criatura, derrubando-a. Se não o matasse logo acabaria morrendo de desgosto em breve.

Passou o olhar pelo fio brilhante. Uma ideia: e se ele fosse desatado ou cortado? Os pedaços cairiam e se esparramariam no chão?

Com um impulso rápido, a fim de não deixar que sua ideia minguasse, ela se aproximou dele e desatou o nó. Ele não se mexeu. Puxou o fio com força para junto de si e o atirou com um gesto de raiva, longe.

Virou-se para ver se o monstro continuava ali. Havia sumido, não havia sequer uma parcela no chão ou uma sombra na parede.

Havia se livrado dele. Nem acreditava de tão feliz.

8 – Ele sempre estivera ali?

Mais anos se passaram. Como o mundo continuava sendo mundo,

Maria se casou e tinha um filhinho pequeno. O monstro nunca mais voltara e ela lembrava-se dele com pouca frequência.

Certa noite, seu filho dirigiu-se à cama dela – coisa que não costumava fazer – com um aspecto sério no rosto.

Perguntou a ele o que havia.

– Um homem esquisito – disse ele – muito grande.

E Maria viu aquele velho conhecido surgir sob o pé de sua cama.