Quando Eles voltarem

Hoje Eles não apareceram.

Faz 4 dias que não aparecem.

Sendo sincero, acho que faz 4 dias. Há um mínimo de luz nesse buraco circular onde estou trancafiado. Pelos meus cálculos deve ter uns três metros de diâmetro e se afunila no alto. Bem, essa é outra conjectura minha. De repente ele é uniforme até o teto, onde uma nesga minúscula de luz se filtra. Quando é mais clara imagino ser dia. Quando não, noite.

Já pensei que, se fosse um pouco mais estreito e meus membros pudessem tocar ao mesmo tempo duas extremidades, poderia escalar até o alto e tentar escapar.Não é e nada posso fazer a não ser pensar no porquê de estar aqui e o que Eles realmente querem comigo.

Não consigo entender quais motivos tornaram-me prisioneiro.Não sou rico, não tenho parentes ricos, trabalho num serviço comum e, que saiba, não tenho nenhum segredo vital em meu passado que pudesse mesmo remotamente incriminar alguém ou alguma repartição do governo.

Não sei quanto tempo estou aqui. Talvez um ano. . . ou menos.

Saí de casa uma noite para comprar pizza e tomar uma cerveja. A atendente da padaria vendeu-me a pizza semipronta mais duas cervejas de latinha e na volta parei na locadora para ver os últimos lançamentos.

Lembro apenas de estar espiando algumas mulheres nuas nas capas da seção pornô e sentir alguém espiando. Acordei aqui completamente nu e uma dor de estômago terrível que quase me matou.

Gritei horas por socorro, até minha voz sumir, na esperança que alguém pudesse ouvir e viesse me libertar, depois desmaiei.

O que será que aconteceu com Eles?

O fedor é insuportável. Uma mistura indistinta de fezes, urina e suor impregna o ambiente. Quando encontro a vasilha com comida, que nunca vi colocarem, devem colocar enquanto durmo, ela desce marrenta e nauseante goela abaixo. A água não, apesar de morna.

É estranho como as pessoas acostumam-se às situações ! Na primeira vez que abri os olhos a escuridão era tanta que não conseguia nem ver meus dedos, mesmo colocados perto dos olhos. Com o tempo acostumei-me e consigo vislumbrar as paredes tijoladas, o contorno da vasilha com comida e água. Só não consigo ver os seres rastejantes e esvoaçantes que percorrem meu corpo quase todo o tempo. Imagino ser baratas e ratos, mas não posso precisar.Não tem como!

O que querem comigo?

Na primeira vez que me levaram para a sala da luz todos estavam de capuzes. Perguntei o que queriam. Supliquei que me deixassem ir embora. Afirmei que faria o que precisassem para ser libertado. Mas todos ficaram mudos e me arrastaram para a mesa onde fui amarrado e amordaçado.

Depois começou a sessão de tortura.

Um aparelho cheio de fios foi preso ao meu pênis e os choques começaram. Fui sacudido durante horas pela eletricidade sem nem ao menos poder gritar. Não sei se gritos amorteceriam a dor. Imagino que sim.

Devo ter desmaiado porque acordei no meu silo com dor no baixo ventre e as bolas do saco parecendo estourar.

Assim foi durante vários dias.

Levavam-me, davam choques, acordava no buraco.

Quando acostumei-me aos choques mudaram de método.

E foi assim que, esperando o aparelho ser preso ao pênis de novo e a eletricidade fazer seu serviço, inseriram agulhas debaixo das unhas. Todas.

A dor foi lancinante. Parecia rasgar meus dedos em mil pedaços. Num dos intervalos pedi que me contassem o que queriam de mim. Se deveria confessar alguma coisa. Ou fazer algo. Pude apenas ouvir um breve sorriso de um deles antes de continuarem a tortura.

Então confessei!

Falei das masturbações noturnas. Contei das mulheres que transei e não paguei. Confessei ter sacaneado meus colegas de trabalho, contando à chefia suas vagabundices e suas maquinações. Confirmei ter internado meus pais num asilo pelo fato deles atrapalharem minha vida quase amorosa. Falei até das vezes que comunguei sem confessar antes. Afinal não tinha a menor idéia do que queriam comigo.

Depois comecei a inventar pecados inexistentes.

Contei das drogas que trouxe da Bolívia e da Colômbia. Dos meninos que estrupei. Dos roubos nos supermercados. Da minha pedofilia latente. Do dinheiro furtado da igreja.

Inventei mil pecados. Contei casos que sequer imaginei um dia existirem. Criei monstros dentro de mim. Transformei-me de um fracassado num pecador incontestável, capaz de todas as vilanias possíveis e imagináveis. Fiz-me sujo e desumano, sempre na esperança que parassem com a dor e eu pudesse ir embora. Para minha casa sem luxos e minha vida sem desejos.

Muitas vezes lembro que pedi que me matassem pelo amor de Deus! Pois não suportava mais tudo aquilo: toda a dor, todo o terror, todo o não-saber.

Mesmo assim não deram ouvidos e continuaram todo dia a mesma rotina de sempre. Levar. Amarrar. Amordaçar. Torturar. Desmaiar. Acordar de novo, e de novo nesse buraco fétido, onde ratos e baratas ou outros seres que não sei, rastejam pelo meu corpo, lambem minha boca e minha alma e eu nem mesmo sei porque.

E hoje Eles não vieram.

Alguma coisa aconteceu para não virem.

A comida continuou aparecendo enquanto durmo. A água também. A escuridão continua a mesma. A nesga de claridade no alto é a mesma. Os seres visitando meu corpo continuam. Mas Eles não vieram.

Todo esse tempo sem Eles dormi em sobressalto e acordei assustado. Esperando a porta abrir. Esperando ser amordaçado e levado para a sala da luz.

Talvez tenham se esquecido de mim. Ou arrumado outra cobaia. Esse é o único termo com que posso me adjetivar. Nunca quiseram saber nada de mim. Nem quem sou. Nem o que fiz. Não quiseram saber dos meus pecados reais ou imaginados. Nunca pediram que fizesse nada por Eles.

Então o que querem?

Se queriam tornar-me mais baixo do que sempre fui, conseguiram. Meus dedos estão dormentes. As extremidades deles doem o tempo todo, afinal as unhas caíram todas. Não tenho mais nenhum dente na boca, todos foram quebrados numa sessão, sobraran apenas minhas gengivas esburacadas e fedidas. E meu ódio por Eles estravasa meu corpo.

Digiro a comida num misto de nojo e medo. Bebo a água morna e deito olhando a nesga de luz no alto.

Não sei quanto tempo mais vou agüentar .

O pior da dor é a antes dela. Talvez seja outro método de torturar-me. Fazer-me pensar a cada instante no que virá. E não ter paz um minuto só, o tempo todo pensando no que farão comigo quando abrirem a porta enquanto durmo e levarem-me para a sala de interrogatório.

Não existe um ruído sequer do outro lado. Silêncio absoluto. Como se não existisse mais nada além de mim nesse buraco onde estou sem saber qual minha real culpa.

Se puder, quero apanhar cada um deles um dia e fazer pior que fazem comigo. Essa é a única razão de tentar manter-me vivo. Esse ódio que me corrói as entranhas alimenta-me bem mais que a comida nojenta e o ar que respiro

Então tento dormir, no fundo desejando que Eles voltem e me levem para a sala da luz.

Na verdade quero apenas um pouco mais de ação nessa escura solidão.

Quiçá um erro Deles e eu consiga fugir. Ou mesmo um choque maior e mortal, uma artéria perfurada e eu consiga morrer em paz.

Aí talvez descubra porque fazem isso comigo.

E que pecados cometi.

Nickinho
Enviado por Nickinho em 16/07/2007
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