Noite de confidências

Marcelo andava solitário pelas ruas, impulsionado por um comichão na consciência que não o deixava ficar em paz. Era uma noite muito fria e a lua brilhava redonda, prateada e cheia de buracos escuros que pareciam manchas de lágrimas em um papel branco. O ar era gelado e perfumado com o aroma distante de dama da noite. Podia-se ouvir o vento uivar e ver as respirações subirem como fumaça.

Sem saber para onde ir, ele vagava sem destino já há muito tempo quando percebeu que estava passando em frente a um cemitério, que apesar de antigo, parecia muito bem cuidado, suas grades de ferro formavam lindos desenhos, os túmulos estavam limpos e havia flores por todos os lados, viu que o portão estava aberto. O mesmo comichão de antes o moveu para dentro do cemitério, desceu os poucos degraus e logo estava entre os túmulos, estranhamente não sentia medo algum, só curiosidade.

Olhou em volta por alguns instantes e notou que uma neblina fina e branca subia do solo gelado, o que dava um aspecto ainda mais etéreo ao lugar. Começou a andar prestando atenção em tudo o que via: estátuas de anjos, brancas, quase brilhantes, pequenas capelas, mausoléus imponentes, cruzes de marfim e de granito preto. Quando percebeu já estava bem longe da entrada, olhou em volta e não sabia mais para que lado deveria ir para sair de lá.

Continuou andando até chegar ao que parecia ser o centro do cemitério. Avistou ao longe, sentada sobre um túmulo de mármore branco, uma moça, ou seria um anjo? Parecia uma estátua, se não fossem os cabelos pretos e lisos que balançavam com o vento. Ele ficou olhando atentamente para a moça, e viu que chorava. Estava trajada com um vestido longo e branco, de tecido esvoaçante e abundante, parecia não ter notado ainda a presença dele.

Sem saber o que fazer, ele foi caminhando até estar a uma distância razoável da moça, ficou olhando suas lágrimas rolarem por seu rosto delicado e caírem, uma a uma sobre o mármore frio. Com uma voz suave e doce a moça falou, parecendo conversar consigo mesma:

- Ele não precisava ter morrido.

Marcelo ficou calado, não sabia se ela estava falando com ele ou se nem o havia notado ali ainda.

- Ele era muito jovem, e eu o amava muito.

Depois de um instante de silêncio pesado, onde só se ouvia o vento por entre os túmulos, ela disse:

- Será que ele pode me ouvir?

Ela queria uma resposta e Marcelo resolveu que participaria da conversa. O que falar para uma moça chorando sobre um túmulo, no meio da noite? Resolveu aliviar sua dor.

- Claro que pode, ele ainda sente o seu amor.

Sem nem olhar para o lado, como se não houvesse ouvido nada, ela responde:

- Preciso esclarecer algumas coisas...

- Se quiser, vou embora para você falar com ele a vontade.

O silêncio da moça foi interpretado como uma permissão para ele continuar ali, então ele se sentou em um banco de pedra ao lado do túmulo em que ela estava e esperou. Alguns minutos depois, após colocar em ordem seus pensamentos ela começou sua narrativa.

“Nós nascemos no mesmo dia, com diferença de algumas horas, eu nasci primeiro. Nossas mães não se conheciam, mas ficaram muito amigas depois de darem a luz no mesmo dia e ficarem no mesmo quarto do hospital. Crescemos juntos, éramos melhores amigos até a adolescência, eu sei que parece clichê, mas nos apaixonamos. Namoramos por um longo tempo, éramos almas gêmeas.” Ela parou de falar, olhou para Marcelo e ele percebeu que seus olhos são de um tom estranho de castanho, muito claro, quase amarelo. Ela secou os olhos em um lenço e recomeçou sua narrativa.

“Só uma coisa manchava nosso amor, o ciúme. Ele procurava ficar perto de mim tanto quanto podia, chegava a ser quase irracional, eu me preocupava, mas não ao ponto de tentar um rompimento. Quando ficamos noivos tudo começou a piorar, ele parecia obcecado em me manter por perto todas as horas do dia. Eu o amava muito, ficar perto dele era ótimo, mas eu precisava de espaço. Sua obsessão começou a me preocupar seriamente. Tentei conversar com ele, que parecia não notar qualquer anormalidade em seus atos. Tentei conversar com parentes e amigos, que estranhamente não viam nenhum excesso. Eu já estava desesperada. Não sabia o que fazer. Eu tinha que tomar alguma atitude!”

Marcelo estava intrigado, não via onde a narrativa da pobre moça poderia chegar, mas um medo irracional começou a tomar conta dele. Continuava olhando para a moça, que chorava enquanto tentava continua sua história. Enquanto isso a noite ia ficando cada vez mais fria e a lua, outrora tão brilhante, ia sendo encoberta por pesadas e negras nuvens. O vento uivava com mais força, tudo parecia conspirar para o fim da história da moça, que alheia ao tempo, recomeçou a falar.

“Dois dias antes do nosso casamento eu preparei um jantar para ele, iria tentar uma última conversa a respeito do ciúme excessivo dele, mas ele nem quis me ouvir, ficou irritado, desconfiado, quase agressivo. Eu não o reconhecia mais, não era o meu futuro marido que estava lá, eu tinha que tomar uma decisão. Fui até a cozinha e preparei uma taça de vinho. Coloquei uma dose letal de sonífero. Fiquei olhando enquanto ele bebia e adormecia para sempre.”

Marcelo estava horrorizado com a frieza com que a moça falava, quase como se não houvesse sido ela quem assassinara seu noivo, mesmo estando chorando, parecendo profundamente arrependida, falava com uma frieza de aço. Continuou como se falasse consigo mesma.

“Entreguei-me para as autoridades, que me submeteram a um interrogatório e depois a um exame psicológico, onde fui diagnosticada com doença mental grave. Mania de perseguição, foi isso o que disseram que me levou a imaginar o ciúme e as mudanças de humor e personalidade de meu noivo, que sempre havia sido o mesmo homem decente, amoroso e carinhoso. Eu o matei, por nada, tudo fruto de minha doença. Passei alguns anos em um hospital psiquiátrico e hoje foi o primeiro dia que pude sair para vir me explicar. Eu sinto muito, muito mesmo. Por favor me perdoe, eu ainda o amo e amarei para sempre.”

Marcelo ouviu atentamente toda a história, não sabia o que pensar. Começou a sentir empatia pela moça e todo o horror foi se dissolvendo. Enquanto pensava a respeito de tudo o que ouvira, viu que a moça estava indo embora. Ela nem havia se despedido.

Após alguns instantes ele se levantou e foi até o túmulo do pobre noivo assassinado, leu o nome na lápide, suas feições não se abalaram muito, só parecia um pouco espantado, um tanto chocado e depois uma expressão de entendimento, aceitação e sossego.

Notou que o vento cessara seus uivos e sibilações, só uma brisa calma e serena podia ser sentida, a lua voltara a brilhar intensamente no céu polvilhado de estrelas. Tudo parecia estar em seu lugar, em ordem. O comichão que o levara a vagar sem rumo havia desaparecido, poderia enfim descansar em paz.

Priscila Pereira
Enviado por Priscila Pereira em 17/10/2016
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