O Livro de Paulo

Tomou outra gole da cerveja quente e olhou o andar das horas. Passava da meia-noite, já não podia disfarçar o fato de que era hora de ir embora. Terminou o copo, pediu a conta ao garçom e escapou tranqüilamente pela rua, torcendo para não ser reconhecido. Quarenta anos atrás, ele poderia subir nu em cima dos carros sem ser notado, agora mal conseguia tomar uma cerveja sem alguém retirando um livro da bolsa para que fosse autografado. Nunca pensou que fosse ficar enjoado dessa fama... se soubesse disso, teria feito outras escolhas?

Se soubesse o preço que pagaria por cada página, teria assumido o mesmo acordo?

Era tarde para pensar naquilo. Havia um capítulo para terminar e a noite era um pedaço estreito de silêncio. Provavelmente, estreito demais.

Entrou em casa sem qualquer ruído, trancando-se no escritório com uma música esquecida em seus lábios. Lembrava-se das noites perdidas sobre o papel, dos olhos quase lacrados e dos lábios pálidos que tentavam em vão achar as rimas corretas, os devidos tempos... Teria morrido se não fosse a ajuda de Raul, teria gasto cada gota de seu sangue até que o trabalho estivesse completo. Talvez, fosse exatamente essa a sua busca.

Desde então, nunca mais se dedicou da mesma forma. Havia gasto seu esforço com parcimônia calculada, enfrentando os críticos com uma paciência quase divina. Não tinha como explicar sua estranha condição a ninguém. Permaneceria eternizado como uma fraude, como um impostor, um autor barato e de pouca profundidade escrevendo baboseiras místicas e ninguém jamais saberia das coisas que poderia ter feito, se estivesse disposto a enfrentar as conseqüências.

E naquela noite, finalmente estava disposto.

Retirou do armário uma caixa de ébano negro que foi depositada sobre a escrivaninha. Abriu as cortinas para ver a luz da lua esparramando-se para dentro, como um trajeto de luz para a eternidade. Estava pronto, suspirou, havia sido uma boa vida. Abriu a caixa com uma pequena chave que andava sempre em seu bolso e deixou sobre a mesa uma velha máquina de escrever, arcaica e sombria. Construída em ferro negro e fundido e uma bocarra dentada que implorava por papel. Da gaveta tirou uma folha e a fez engolir com um girar de botões. Procurou pelos óculos em seus bolsos, se era para fazer aquilo, não queria perder tempo.

– Você vai realmente fazer isso? – A voz não precisava ser anunciada, mesmo que a tivesse ouvido uma única vez a décadas de distancia. – É uma decisão meio séria....

– Eu sei. – Ele se virou com um sorriso nervoso nos lábios e lá estava ele, vestindo seu paletó impecavelmente branco, seu cabelo dourado como raios de sol e o sorriso mais gentil que alguém já havia desenhado em um rosto. – Quantos anos eu ainda teria se não o fizesse?

– Nesse ritmo? Provavelmente uns trinta anos... talvez mais! Nunca pensei que você fosse durar tanto tempo, a maioria não dura.

De subido ele se lembrou dos óculos em suas mãos e o estendeu ao escritor. O velho o apanhou com um agradecimento e sentiu-se estranhamente calmo, calmo demais para quem estava as portas da morte.

– Você vai ficar ai a noite toda? – Mesmo de costas o escritor sabia que o homem de branco continuava observando-o. Era como um formigamento que percorria suas costas, uma agulha fina que tatuava seu olhar pela sua pele.

– Bom, se você vai fazer isso mesmo, vou precisar estar por perto. – Sua voz era um estranho conforto, era agradável e amistosa. Havia pensado nisso da primeira vez que tinham se encontrado, havia custado a acreditar no que estava propondo. Soava absurdo vindo de alguém com aquela voz. – Sabe, depois de você, precisarei fazer alguns ajustes nela. Preciso garantir que as pessoas não economizem o talento através dos anos... sem ofensas, por favor! Eu apenas gosto dos que se empenham dia e noite....

– E morrem cedo! – Seus dedos deslizaram pelas teclas, ferindo-se levemente nos dentes afiados que escondiam-se nos pequenos orifícios. Antecedia a agonia de cada palavra que penetraria sua carne enquanto seus dedos buscassem o ritmo correto. Deveria estar morto de medo, mas estava estranhamente calmo. Estava para realizar a obra de uma vida. – Você não tem idéia do que é ter algo em sua mente e ser incapaz de explicar sem se sentar nessa máquina. Pode acreditar, ninguém vai durar tanto tempo depois de mim.

– Eu acredito, Paulo. – As mãos do homem de branco pousaram em seu ombro, dando-lhe o conforto que precisava para começar. – Este vai ser seu melhor livro! – As duas mãos bateram-se contra seu corpo, como um treinador incentivando seu melhor jogador.

– Vai ser o último, também! – Paulo estalou os dedos, um hábito doutrinado pelos anos de prisão e sorriu. Finalmente estava livre. Seus dedos dedilharam as teclas, sentindo o picar fumegante dos seus dentes. O sangue escorreu da ponta dos seus dedos, cobrindo a superfície negra, escondendo a forma das letras, mas ele não sentia nada. Seus lábios murmuravam as palavras ao mesmo ritmo em que elas ganhavam a folha branca, em um escarlate vivo que ia enegrecendo suavemente pela noite.

Página após página, ele foi deixando suas idéias fluírem, o livro de toda uma vida, que só existiu por aquele momento. Sua cabeça começou a ficar aérea, os gestos tornaram-se uma brincadeira de títeres descoordenados. Os lábios ficaram pálidos e incapazes de pronunciar as palavras, faltava só mais um pouco. Havia escrito páginas daquele livro através dos anos, sempre que tinha coragem para tanto, mas agora, agora tinha apenas um fôlego para terminar, apenas uma chance.

Quis trocar a folha, mas era incapaz de erguer os braços das teclas. Quis chorar de agonia, pois todas as suas forças estavam no fim e ainda faltava meia página. Ouviu os passos do diabo pelo escritório, o sapato preto, bem engraxado pisando sobre a luz da lua. Suas mãos se estenderam para a máquina diabólica e com gestos tranqüilos, preocupados em não se manchar com o sangue, ele trocou a página por uma nova e em branco. Sorriu para o escritor, simpático e afastou-se novamente. Paulo tentou molhar os lábios com a língua seca, e dedilhou em um só golpe a última parte. Uma gargalhada seca percorreu toda a sala enquanto o sangue saltava em gotas das teclas sedentas. Quando finalmente teve forças para digitar seu ponto final, caiu morto, duro e seco, sem sangue ou letras em suas veias. O homem de branco saltou o corpo sem vida, tirou da máquina a página ainda fresca. Leu de um susto as palavras impressas e as deixou sobre a mesa, levando consigo a caixa de ébano.

– Certamente, Paulo, este é seu melhor livro! – Atravessou a porta do escritório com uma rápida olhada para trás. – Mas ainda assim é muito ruim!

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