Relato de um Suicida (obs.:não tentem ler se não tiverem paciência e tempo, sou prolixa)

Passei anos da minha vida a negar que eu fosse mais um raro condenado pela sociedade e amado pela psicologia de minha época que teria gosto de estudar-me minuciosamente.

Havia em mim certa incompletude, para quem me lê e não entende o termo, sigo a explicar-lhes de forma melhor. Esta minha incompletude pode ser facilmente traduzida como qualidade do que não é completo, no entanto, sei que não era apenas isso. O buraco que há tanto corroia a minha alma só fazia aumentar cada dia mais. Pobre de mim, tentava em vão preenchê-lo com pequenas alegrias, entre namoros, festas, bebidas e até o auge de um casamento, sendo este duradouro como não imaginava. Pois bem, nada disto serviu de consolo ao vazio, que seguia comigo.

Em toda a narrativa que poderia elucidar sobre a minha vida não há um ponto tão intrigante quanto os ensinamentos que tive uma noite, no hospital. Mas faz-se necessário uma breve explicação acerca da fase que eu vivia.

Tantos anos vivi só, trancado em um sobrado e afastado de tudo o que me lembrasse o mundo. Minhas memórias eram suficientes para me consumir o tempo e fazer com que a minha existência fosse menos árdua e mais enfadonha. Uma ocasião por semana, recebia a visita de uma mulher. Não pense, quem me lê, ser uma visita íntima, pois, meus caros, que não era e jamais poderia ser assim. A idade aos poucos chegava e tinha eu, a essa altura, pouco mais de trinta anos.O vigor e a força ainda não me abandonavam, sendo que não posso, infelizmente, dizer o mesmo da vontade e das ganas pela vida.

A mocidade vivi toda ela em casa de meus tios. Eles me consideravam louco e eu reagia aos seus ataques com todo o desprezo e indiferença que me são característicos. Vindo a ser mais velho, meu tio afirmou que deveria concluir os estudos na capital e experimentar a convivência com a civilização. Segundo ele, só assim eu largaria o quarto e teria olhos para as mulheres e as coisas de minha idade. Pura selvageria.

Quando parti, então, do interior rumo à cidade grande não ostentava esperanças de que a ideologia que me escolhera fosse mudar. Continuamente, na escola e com o conhecimento que obtive ao observar as pessoas e seus modos frívolos, convenci-me que eu era o que a ciência da psicologia adoraria conhecer: um morto em vida. Diferente dos outros da minha idade, eu não mantinha interesse por mulheres, nem por homens, a escola e só ela me despertava um pouco das opiniões que eu mesmo tecia a respeito dos que me cercavam e, para tudo, eu tinha minha própria teoria. Não era afeito a conversas, tão pouco a relacionamentos. Achava a existência fraca e tudo o que eu fazia me soava como um anúncio do que iria acontecer, como se minha vida não tivesse começado e eu ainda costurasse o rascunho.

Não pensem que sempre foi assim. Casei-me. Haverá loucura no mundo quão grande quanto essa? Ao mesmo tempo, um ato tão comum e, talvez, o único que minha família considerou lúcido. Tive uma esposa, bela esposa era ela. Fazia dos meus dias ternos e motivados. Se eu dormia e me erguia na manhã seguinte disposto ao trabalho, ao qual sempre fui tão avesso, era por ela e só pensando nela. Assim, por cinco anos, posso afirmar que saí da dormência letal e habitei o mundo dos vivos. Acreditem que cheguei a ter algumas das ínfimas preocupações que afetam o ser humano, pensando em ganhar dinheiro e economizá-lo para mais tarde ter, quem sabe, um filho.

A sorte para mim foi como a gota de orvalho na pétala da flor, tão majestosa enquanto dura, mas de curtíssima duração. Depois de sua morte, pensei em suicídio e ouso a confessar que estive, uma ou duas vezes, com o punhal em posição de cravar-me ao peito. Mal sabia eu que era demasiado cedo para isto. As tentativas frustradas de furtar a própria vida só fizeram aumentar a visão catastrófica que tinha de mim.

Embora a partida de minha esposa, tão adorada, tenha me causado uma dor imensa, estimava entre as minhas concepções que nenhuma dor é eterna. Assim, sem muita demora, procurei enxergar naquela morte inesperada um bom propósito. Se ela permanecesse viva, sim, haveria maior motivo para lamentos. Eu e ela choraríamos ao longo dos anos sem proferir se quer uma palavra, velando o tempo que se esvai e a minha incapacidade de perceber e aceitar a simplicidade da vida e da esposa ao meu lado.

Desde então, enterrei-me naquele sobrado à Rua dos Alferes, isolado. Recebia, uma vez por semana, a visita inconsútil da empregada que arrumava e dava jeito às coisinhas que nenhum homem sabe cuidar. Essa presença feminina, ainda que eu a desconhecesse de fato, dava à casa um ar de graça e um espírito de cuidado. Vivi desta forma durante dois longos anos com a esperança de, um dia, me tornar um homem normal. À espreita, tudo o que eu tinha era um traço de calor humano e exorbitante, uma vez a cada semana.

Nas minhas reflexões, que não foram poucas, por vezes afirmei o que tenho a dizer agora. Um defeito só pode ser considerado defeito quando é sentido e depreciado pelo próprio dono. Minhas revelações partem deste pressuposto. Era um coitado, eu sabia que o ermo vazio jamais poderia ser preenchido por cousa alguma que eu pudesse ter e, conhecendo este detalhe, sabia que a minha inconformidade e nostalgia com tudo e com nada, com algo que eu nunca ousaria explicar, faziam de mim um resto de homem. Antes fosse, ao menos, homem.

Eu não sabia ao certo o que seria de mim dali em diante. Tudo bem que fosse viúvo, jovem e de boa posição social, entretanto, nada disso dava-me um sentido para prosseguir. A casa onde habitava parecia profundamente sombria e, pela primeira vez, tive medo de terminar minha vida naquela solidão. Passou pela minha cabeça a idéia condenada de casar-me de novo. Ou poderia ainda voltar a trabalhar, meus tios não me negariam, de certo, uma posição nos negócios vultosos da família Prado.

O escuro da noite, no recôndito do meu quarto, me fazia enlouquecer e, assim, acordava no meio da madrugada e exatamente às três da madrugada, aterrado por pesadelos que nem mesmo eu sei narrar. As recordações que tenho destes sonhos são um tanto vagas e diáfanas, lembrando delas é como se eu me adentrasse nos mais esquecidos segredos que me perseguem desde a infância. Não lembrar, durante um tempo, trouxe-me algum consolo e depois, contestação. Ocorreu-me que, por ventura, com as lembranças claras em minha mente, eu pudesse descobrir enfim o que é que neste mundo me faltava. Fui ao psicólogo.

No divã contei minha história, desde quando começou, inclusive a morte prematura de meus pais e meus traumas de criança, passando pela perda recente de minha mulher e até a situação em que me encontrava à época. O médico, sentado numa cadeira, nada dizia. Vez ou outra, olhava-me com ar de amizade e sorria, na espera do próximo relato a ser feito. Nem mesmo se assustou com a minha afirmação de que não sentia nenhuma dó dos sofredores, dos doentes nem de qualquer cousa que se mexesse. Tudo que eu narrava a ele soava normal, como se já tivesse escutado igual história tantas e tantas vezes. Está aí o ponto do qual parto em meus pensamentos. Talvez, o homem ao meu lado pensasse como eu, pois para ele a falta de piedade e a indiferença eram naturais, ou já havera lidado com casos e casos como o meu, que já passava a ver tudo como decadente e cansativo. Ele não enxergava a gravidade do meu problema.

Eu era um desgarrado da piedade humana e que não me importava com nenhum ser além de mim. Se este atributo do meu caráter não me trouxesse perturbações, estaria tudo muito bem. Mas, meus queridos, esse traço de personalidade, se é que se pode denominar assim, me cortava a garganta dia a dia. Insistia que algo faltava em minha vida, o que eu chamava de grande buraco existencial nas vãs perspectivas que formava acerca de mim mesmo, negando a própria personalidade que me destinaram. Ao invés de me conformar, como todos os homens fazem, ao bordar as suas vidas com mesquinharias e ocultando a verdadeira ameaça causada pelo conhecimento de si, o que os faria perturbados; eu seguia com a faca na garganta e à espera de um milagre. Milagre este que daria um sentido à minha existência e pelo qual a luz iria voltar à minha casa.

O milagre não veio e jamais viria. Ao fim de dez longos anos no sobrado, percebi que as minhas mãos já não eram as mesmas e que as rugas começavam a ser afeiçoar ao meu semblante, destacando-se olhos e testa. O prenúncio da velhice me trouxe, simultaneamente, mais um medo e uma verdade. Não, não tinha medo da morte como os de meu tempo. Enquanto os homens anulam a sanidade ao pensar que após a morte carnal perdem-se as memórias e todo o resto e, para se consolar, apóiam-se em devaneios tolos como almas e vida eterna, eu vagava entre o temor de que as aspirações de continuar vivendo fossem mesmo verdadeiras. E, se a humanidade crédula que me cercava estivesse certa, se os seus lapsos pudessem ser fatos reais, como seria a minha vida futura? O buraco seguiria comigo ou, por fim, eu descobriria que nunca existira buraco algum e que minha alma intolerante e egoísta é merecedora do inferno? Essas admoestações aterraram-me nos dias em que vivi à espera do milagre.

Porque, e nisto tenham bastante atenção, nenhuma cousa por onipotente que seja pode dar um veredicto de erro e condenar quem se acha e confia estar certo. O psicólogo que me atendia não possuía nenhum aspecto de espanto ou de compadecimento para com os tormentos que eu lhe descrevia, o que me levou a crer, veementemente, que ele fosse igual a mim e muitas pessoas mais também. No entanto, havia uma diferença clara entre eu e o restante, eles conseguiam se enganar e mascarar, com a decisão simples de não refletir sobre si próprios e assim escondendo a sua essência. Eu, não. O mal maior era saber que os demais tinham vida e desfrutavam essa vida, ao passo que eu encontrava-me sempre no meu lugar, imutável e inconstante. Na inconformidade de saber o que eu era e de me considerar, por isso, algo não-humano.

O pouco de credulidade que me restava fazia com que eu me negasse a crer que o interior de todo ser humano fosse análogo ao meu, egoísta nas suas peculiaridades. Desta forma, eu não me aceitava. Já havia me acostumado a essa condição de isolamento e nebulosidade, mas garanto que conformismo não é um dos meus infindáveis defeitos. Com o pior dos pesadelos a minha alma foi capaz de acostumar-se, sendo impossível que eu me conformasse em simplesmente tê-los.

Eu era um nada preso em mim mesmo, onde se chocavam os remotos sentimentos que assolam o mundo humano. Inconformado com tudo e comigo mesmo, carregando nas costas o peso da culpa de não me aceitar e esperar sempre um pouco mais do outro.

Géssica Ranieri