Vítimas de Si

Gota a gota, a chuva parecia querer rasgar a terra naquela tarde. Mas Selina Castelão não se amedrontaria com nada, desembarcou do avião, no aeroporto de sua antiga cidade, esperou as malas, e sem molhar um só dedo de seu terninho de veludo lilás, ou seu par de scarpans, chamou um táxi. Adorava chuva, apesar dela esconder o sol, e ocultar o brilho de suas madeixas em inúmeros tons de amarelo e laranja, apreciar a água voltando a terra em tormentas fabulosas, era um capricho que sempre se dava, mas naquela ocasião era diferente, estava retornando após de dez anos fora do país, depois de ter uma vida de intensa luxúria, libido, promiscuidade, e crime total, retornava ao mundo dos ‘certos’... Não que fosse ser certa, mas sim que fosse fazer dos outros com certeza incertos!

Parou num café, o mais elegante, a fachada de letras de forma douradas foram admiradas solenemente por Selina. Era ponto novo, não conhecia, tinha de conhecer. Bebeu café com hortelão e gelo, mais distante o olhar da garçonete abismada pelo pedido, a respiração exorbitante em ver alguém beber daquela exótica combinação quase lhe fazia saltar a gravata xadrez do uniforme. Selina, no auge dos seus cinqüenta e um anos, mais do extremamente bela para sua idade, sem falar em atraente, sem falar no porção de sedução, sentou-se no balcão do estabelecimento, ao seu lado um homem de terno bebendo água com gás chorava aos soluços. Com uma inocência de virgem Maria, ela dirigiu a palavra:- Por que um homem tão bonito está chorando?

- Problemas. – respondeu com sutileza contendo o soluçar. – problemas pessoais.

- São coisas que todo mundo passa. – rebateu a embriagada de café com hortelã. – mas se os guardarmos, ficam bem mais impossíveis de se resolver.

Ela queria mais, aquele estranho merecia ser ouvido, uma boa crônica lhe interessava. Ele tomou ar para falar, os grandes olhos azuis dela vidrados nas pupilas inchadas e vermelhas, cacos de copos se estilhaçando aos fundos, de um possível acidente despertou sua atenção repentina, piscou rapidamente e fez de conta que nada era, e acompanhou as suaves palavras lhe escaparem dos lábios:- Eu vou ter que fazer uma coisa que eu não gostaria.

Estava cheio de mistérios e frases de filme do 007, só ele mesmo o ajudaria. Selina ignorou tudo qe ouvira, afinal, egoísmos a parte, o problema era dele! Pagou a conta, beijou-o na testa e saiu do café carregando sua mala, pronta a apanhar outro táxi a casa da irmã.

Quando chegava a mansão curtiu com lascívia a chuva traçar com suas gotas, efêmeras imagens no vidro do carro. O casario era o mesmo, reformado ganhou novas cores, um rarefeito diferente,o firo lá era muito mais frio, e não pela falta de calor humano, mas por castigo do clima, era ali que vivia uma espécie de inimiga sua: Valquíria Castelão, sua sobrinha, filha de Pietra, sua irmã já falecida. Morava ela sozinha na residência com os criados, Selina a telefonou algumas vezes, mas não se suportavam muito, eram oponentes declaradas, segundo a governanta, com quem se comunicava frequentemente, visitas circulavam praticamente o dia todo, e Valquiria não trabalhava, pois não necessitava, gozava da fortuna da família, fortuna esta que Selina, póstuma a anos de ausência e tolerância a família voltava para buscar, não somente sua parte, mas tudo. E bem lembrava ela, de antes de partir, a irmã revelara que havia um tesouro naquela casa maior do que todo dinheiro incrustado ao sobrenome Castelão, de muita fama e prestígio pelas redondezas, a fama e prestígio continuavam, mas sem motivos, era tudo apenas fachada, sobras de um passado bom, pois estas duas, sobrinha e tia Val e Sel, como eram mais conhecidas, aprontavam muitos escândalos, e eram muito extrovertidas, era seu modo de ser feliz, e os outros entendiam como loucura e vagabundagem. Esperou no carro, e do seu celular telefonou para a casa, dali dava pra ver que estava em intenso movimento, muito entra e sai, lama no jardim, as flores sem vida pela tempestade. Muitas luzes acesas, barulho, e havia demasiada decoração onde se era possível ver... Desconfiou de festividades... A governanta atendeu o telefone com sua voz forte inconfundível. – Andreza, é Selina.

A criada pasmou em silêncio, Selina quase num riso retomou o discurso: - Eu estou num táxi, aqui no portão, por favor me consiga um guarda-chuva e venha me receber decentemente minha querida, estou com saudades.

- Sim, senhora, minuto. E menos de um minuto depois estava Andreza aos atropelos sobre o salto descendo de traje fúnebre a escadaria de entrada, os olhos esbugalhados, onde conseguiam ir para ver Selina dentro do carro, á mão um guarda-sol.

Nos países onde morara Selina aprendera e tivera de praticar tudo no mundo existente sobre etiqueta, e também tudo sobre podridão e chulo. Mas ligar e avisar que chegara não era de seu feitio, a surpresa era tão mais excitante!

Após demorado abraço sob o guarda-sol, entraram na mansão, e tudo continuava igual, apenas mais velhos, a arquitetura clássica e fantástica, os salões imensos, o hall, os quilômetros de corredores e escadas, a decoração, os detalhes, o sinônimo da família quatrocentona que sempre foram, aquele casa, vivida por aquelas pessoas era o retrato disso, no passado, no presente, em qualquer dos tempos e circunstâncias, sempre seria! Tudo brilhando, de uma limpeza somente vista em cenas de TV, e ao colocar o pé direito, seguido da mala no tablado de mármore, teve certeza de que sim, aconteceria uma festa naquela casa. A governanta aflita perguntou:- Mas por que está aqui?

- Cansei de andar na estrada, vou parar por aqui, descansar, e esta casa também é minha, vou morar aqui a partir de agora.

- Dona Valquíria já sabe?

- Não, mas deve desconfiar, devido a última vez que liguei, e você sabe que adoro fazer surpresas. E tocando no assunto, o que vai acontecer aqui? – ela já havia visto o bolo com dois bonecos representando noivos, mas queria ouvir da boca de alguém mais presente.

- Dona Valquíria vai se casar senhora. Está se casando nesse momento.

- Que interessante, e tentar me avisar vai matar não é mesmo?

- Não sabíamos nunca seu paradeiro senhora, era sempre a senhora quem ligava. A cerimônia já deve estar acontecendo, a festa vai ser aqui.

- Qual é a igreja?

- É a matriz senhora.

Precisas informações, preciso e precioso momento. Partiu para a garagem, escolheu o Lamborghini que fora de sua irmã, continuava impecável, apesar de parado desde que ela morrera. Pediu as chaves ao responsável pelos carros, o homem negou por não haver antecipada ordem da patroa, e ela mesma pegou as chaves, dizendo firme em seus olhos que ela agora também era sua patroa, e quando voltasse seria demitido, deixando a malas no meio da sala para que Andreza as acomodasse em seu quarto, pisou inspirada no acelerador, e tendo o mapa na alma e a vontade na mente, em vinte minutos chegou. O luxo o glamour dos automóveis do estacionamento e dos arredores da catedral denunciavam o quão chique era a cerimônia, não estava a altura, mas para o que pretendia fazer, era melhor mesmo não estar... Todos em pé, lágrimas, lenços, chapéus quase ao teto, algumas rosas já murchas, as daminhas cansadas elevadas ao sono.

Selina entrou discreta, o padre proferia exclamações ao casal, ladainha de cerimonial cujo muito bem conhecia, e até repetiu as palavras, com a mesma pausa de tempo que o padre, conhecia o padre, conhecia muitas pessoas na igreja. Andou um pouco em direção do altar, sua sobrinha estava linda, num gesto sem porque, para puramente chamar a atenção, ela aplaudiu, e chamou a atenção! A reconheceram, muitos, muitos, muitos, muitas, muitas, muitas... O espanto num corar de faces, mas o grande espanto foi de Selina, ao notar que o noivo era o homem com quem conversara na lanchonete.

...

CONTINUA!

Douglas Tedesco
Enviado por Douglas Tedesco em 07/08/2007
Reeditado em 08/08/2008
Código do texto: T596342
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