O Visitante

Ontem à noite ele me visitou em sonho... Mais uma vez... Me disse tantas coisas. Não pude entender tudo. Queria que eu soubesse, mas ao mesmo tempo parecia fazer questão de algo me esconder...

Não sei dizer quantas vezes ele já veio. Talvez sempre tenha vindo. Eu só lembro que sempre é real. Acordado, eu me confundo. Posso confiar nele, é o que sinto. Repasso as imagens e tento não me desprender das mãos da lembrança, me esforço pra não esquecer o que ele me disse, sinto que isso é de extrema importância. E sempre foi. Eu sabia que havia algo naquilo mas fazia questão de não pensar... Apenas vivia. E a cada vez mais o conhecia. E ainda não o conheço.

E sempre foi assim. Acordar e tentar saber se ele veio. Não sei por que mas quando desperto pareço não estar realmente onde deveria. Parece que eu não pertenço ao presente ainda que meu corpo esteja nele, minha consciência das coisas paira em algum lugar nas profundezas da memória oculta na névoa da realidade. Pareço perdido. Estou e não estou, sou e não sou...

Não posso lembrar do seu rosto. Esse era o trato. Não importa o quanto tente lembrar, somente suas palavras ficam, imagens soltas surgem em minha mente e são como peças de um quebra-cabeça, mas quando acontece não é assim; é real... Ele às vezes me toma pela mão e então sumo por uma fração de eternidade; posso sentir que ainda existo mas a vida parece não estar mais presente; então ressurjo e ele me diz sem falar, somente a me olhar, que está tudo bem. Confio nele e então meus olhos se abrem pra o que acontece. E é aí que mergulho. Eu vejo...

A verdade...

Mas já fazia muito tempo que ele não vinha. Anos. Quase não posso acreditar que faz tanto tempo assim. E pra mim não se passou o mesmo equivalente a uma hora na companhia de meu visitante. O tempo em que estivemos distantes parece ter algum motivo. Mas não pude saber. Talvez ele volte, talvez não haja mais nada. Não sei. Dormir ficou cada vez mais doloroso.

O problema de toda essa inquietante angústia por qual passo se dá pelo fato de eu haver mergulhado. Ele disse que dependeria unicamente de mim. E eu mergulhei desde que posso lembrar. Mas já não lembro de como é estar lá, onde o que quer que possa explicar algo não explica o que pode ser o que você parece estar vivendo, o que a consciência das coisas não pode afirmar porque não conhece. E isso tem sido uma tortura, viver não tem sido o suficiente pra algo dentro de mim que eu ainda desconheço. Algo que quer existir mas ainda não pode. Algo que senti ao mergulhar.

Certa noite, não conseguia dormir por mais que suplicasse. Agarrava os travesseiros e fechava os olhos com força, com raiva, não conseguia entender porque insistiam em permanecer abertos. Queriam enxergar. O quarto estava totalmente escuro. Resolvi levantar e quando percebi já estava fora de casa olhando o céu. Eu sempre olho pra o céu em noites estreladas e procuro encontrar conforto com a possibilidade de um dia saber o que estou admirando na verdade. Fiquei olhando durante um tempo que me pareceu durar um pouco mais parecido com o tempo real, lembrando de como parecia quando mergulhava. Não se tratava de um mergulho propriamente dito. Era a sensação que me ocorria cuja minha consciência das coisas podia me apoiar. Parecia com um mergulho para a minha experiência real, só que quando acontecia nunca sabia precisar o que eu sentia. Quase sempre esquecia, e desejava como um viciado voltar e tomar mais uma dose do que quer que fosse aquilo.

Então, como que por um instinto tolo e até infantil, ergui os dois braços em direção ao céu estrelado, imaginando meu corpo a se desprender do solo em queda livre rumo à cortina negra por trás das estrelas. Gravidade invertida? Fiquei alguns instantes assim, feito uma criança esquecida, fora de casa sob um céu misterioso a me olhar. Abaixei os braços e foi aí que aconteceu... As palavras soaram extremamente nítidas e assustadoras em meus ouvidos... Fiquei imóvel. Repeti-as assim que deixei de ouvi-las e meus lábios tremiam a cada sussurro proferido “Não confie nele... Ele voltará...” Foi o que eu ouvi... Algo me disse. Só não sei quem. Falou como se me alertasse.

O vento soprou congelante e só então pareci despertar do transe em que me encontrava. Voltei para a cama e as palavras não saiam da minha cabeça. Martelavam de tal forma que via a hora de meu crânio rachar e fragmentos do meu inconsciente escorrerem pra nunca mais poderem ser achados. Fiquei pela primeira vez com medo de adormecer. E quando isto aconteceu... nada aconteceu. E então se passaram anos. Anos...

Até a visita de ontem. Tão inesperada quanto arrebatadora; gritante. Poderia usar outras formas para me expressar mas temo não ser justo com a minha consciência das coisas. Mas a lembrança tão nítida quanto a verdade daquela noite de braços erguidos, ainda ecoava como numa caverna: “Não confie nele... Ele voltará...” Não consigo lembrar se confiei ou não, mas lembro do que senti. Parecia que ele queria me confessar algo, mas meus ouvidos não podiam ouvir; minha mente parecia bloqueada dessa vez para as palavras, porém as imagens estão como fotografias em minha mente, posso dessa forma afirmar, sentindo, que ele sabia que algo me avisara de sua volta. Talvez por isso não consiga lembrar com clareza o que me dissera como fazia antes, ele me pareceu de alguma forma como nunca imaginei perceber; inseguro. Parecia estar com medo... Pediu pra que eu não mergulhasse.

Tentei buscar ajuda. Tantas opiniões e tantos estudos que para mim nada explicavam, já que a porta aberta em minha concepção de vida jamais se abriria para tantas explicações. Por que explicar? Por que não só sentir? Não que não tenha sido importante tentar entender, mas o que se ganha senão vivendo? Eu apenas tentei afirmar o que era totalmente negado, que sim, talvez tudo fosse realmente o oposto de tudo... Estaríamos nos enganando? Estariam nos enganando?

E agora não sei se quero dormir. Não quero ser infantil, não, não é medo. É como se no fundo eu soubesse que a estrada estivesse chegando ao fim. Não nos veremos como antes. Eu havia sido escolhido para esse momento. Não havia mais motivos para explicações, chegou o momento da escolha. Fechar os olhos pode ser que seja como abri-los de verdade, ou pode ser que seja somente o fechar dos olhos. Talvez seja pra sempre, como diziam os antigos. Ou talvez eu ainda não tenha emergido do último mergulho... Posso estar sendo testado agora mesmo. Sim, pode fazer sentido, de alguma forma sinto.

Mas não posso fugir, não seria digno. Não depois de tudo que eu sei que ele deve ter tentado. Obstinação... Seria difícil pra ele me fazer a visita? Estaria ele se arriscando por algo que me envolvesse? Mas quem será ele? Pode ser que eu apenas esteja perdendo minha lucidez e mergulhando de vez no lado desconhecido das coisas. Preciso enfrentar as dúvidas mas não posso esquecer que sempre senti que podia confiar nele. Mas os braços erguidos ao céu trouxeram a surpresa, dúvida entregue sem permissão. “Não confie nele...” a voz sussurrava. “Ele voltará...” já havia acontecido. Não sei o que devo fazer. Mas ainda posso estar no último mergulho...

E eis que então me deito, descanso sobre a cama um corpo magro e sem brilho. Já tomei minha decisão. Foi difícil não sofrer com a possibilidade do engano mas o privilégio da escolha tinha lá o seu conforto. É uma pena que todos ficarão. Todos que conheci e conheço. Pode ser que não acorde para eles, mas se eu acordar pra algo que seja o que chamam por verdade, saberei que foi o melhor a ter feito. Certamente eles me levariam se eu não desejasse ir. Talvez possamos nos reencontrar se assim tiver de ser...

“Não confie nele...”

Ele toca minha mão.

“Ele voltará...”

Posso reconhecer o seu rosto.

Sinto que ainda existo... em algum lugar... um lugar que aos poucos se distancia, um lugar que acreditei ser meu lar, lugar onde me disseram que nasci e eu acreditei. Ele me diz com calma que depende de mim e eu começo a ver o que acontece. Devo escolher. E a escolha então é feita. E os olhos se abrem pra sempre... Mas também se fecham... E agora já não sei onde existo... existo...

Existo?

Edgar Lins
Enviado por Edgar Lins em 11/06/2017
Reeditado em 17/06/2017
Código do texto: T6024722
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