A POÇA D´ÁGUA

Edson estava sentado naquela cadeira fria havia algum tempo. Sentia os pulsos queimando. As algemas apertadas não lhe davam uma flexibilidade para encontrar uma posição menos dolorosa.

A sala que estava era imensa. Havia apenas uma mesa de metal e duas cadeiras, ambas em cada extremidade do móvel. Ele estava sentado em uma delas, ao redor, havia espelhos por todos os lados e, de repente, Edson pensou em quem poderia estar lhe observando. Ele baixou a cabeça e pensou nos filhos.

E agora? Quem cuidaria de seus filhos e de sua mulher? Fora imprudente, ele sabia, mas o que poderia fazer em um momento como aquele? Todos seus sonhos e ideais haviam descido pela sarjeta naquele instante, o seu dia claro havia se fechado novamente.

Uma porta se abriu, ele ergueu a cabeça e viu um homem entrando. Ele estava olhando uma pasta que trazia nas mãos, ao chegar à mesa ele colocou a pasta na mesa e ficou olhando por alguns momentos para Edson.

— Estive olhando seu caso... — Disse o homem de terno, com certo pesar. — Complicado... — Ele arrumou os óculos com o indicador. E unindo as mãos sobre a mesa continuou. — Precisamos conversar para saber porque fez algo tão brutal... — Ele bateu a ponta dos dedos sobre a pasta três vezes. — Não faz sentido com o que temos escrito aqui.

— Muitas coisas não fazem sentido, doutor. — A voz de Edson soara embargada. — Se vale de alguma coisa... Arrependo-me muito do que fiz.

Seus olhos se encheram de lágrimas.

— Pelo que li aqui, — continuou o homem. — O senhor é casado e tem quatro filhos.

— Sim. Quatro filhos e uma mulher que amo muito.

— Quanto a isso... Tenho minhas dúvidas. — Observou o homem secamente.

— É minha palavra. — Defendeu-se Edson rapidamente. — O senhor não conhece minha vida!

— Não confio e nem desconfio de sua palavra... Mas, particularmente, se seu amor pela família fosse realmente tão grande assim... Acho que não cometeria tal ato.

— Tive meus motivos...

O homem olhou para Edson por um instante. Os cabelos e os olhos de Edson eram negros, mesmo sentado não parecia ser um homem alto, pelo contrário, parecia tão frágil que qualquer vento poderia partí-lo em dois. Ainda estava com a camisa do crime, estava aberta até a metade do peito e havia pequenas manchas vermelhas que poderiam ser sangue.

— É para isso que estou aqui... — O homem enfiou uma das mãos no bolso interno do paletó e tirou um cigarro, bateu na mesa e logo em seguida acendeu. — Gostaria de ouvir a sua história.

— Eu conto... Quer que comece de onde?

— Do começo, de preferência.

Edson sentiu o cheiro da fumaça do cigarro. Havia parado de fumar a alguns anos e naquele momento, sentiu uma necessidade de fumar tão intensa que não pôde resistir.

— Poderia me ceder um cigarro?

— Claro. — O homem acendeu um cigarro e colocou na boca de Edson. A fumaça começou a incomodá-lo e, devido à falta de costume, começou a tossir. Prontamente o homem olhou para os espelhos e balançou um molho de chaves que trazia consigo. Uma luz amarela se acendeu próximo da porta, então o homem tirou as algemas de Edson.

— Muito obrigado. — Edson estava massageando os pulsos que estavam vermelhos e com marcas de sangue. — O senhor não sabe como estou feliz com isso.

— Posso imaginar... Mas, prossiga... Estava preste a contar seu motivo.

— Ah, sim... — Edson deu uma longa tragada em seu cigarro. — Desde o início...

Tenho trinta e cinco anos e trabalho desde meus quinze anos. Foi quando conheci minha mulher que estou casado até hoje, graças a Deus e a paciência dela.

Até aí era apenas um namoro e nada mais do que isso, mas, os meses foram passando e, como estávamos nos tornando adolescentes acabamos tendo relações, conclusão, quando estava com dezesseis para dezessete anos, nos casamos, ela estava grávida de quase seis meses.

A família dela não gostava muito de mim, mas com o tempo, vieram a gostar, ainda mais quando nasceu o primogênito, aí tudo virou uma grande festa, naquela época morávamos com os pais dela, mas depois que, Gustavo, completou seu primeiro ano, decidimos alugar um lugar só nosso.

A casa que alugamos era de um amigo da família e era na mesma rua de minha sogra. Para minha mulher era melhor que fosse por perto, ainda mais sendo inexperiente. Eu saía muito cedo para o trabalho e chegava muito tarde, ou seja, minha mulher passava a maior parte do dia sozinha. Ali, ao menos, teria a companhia da mãe.

No segundo do ano de casamento, nasceu a nossa princesa, Letícia, assim a chamamos. Gustavo ainda era pequeno demais, para que entendesse alguma coisa. Mas, já demonstrava um pouco de ciúmes da irmã, ainda mais percebendo que o avô apaixonara-se perdidamente pela garotinha, até então, ele era o preferido de todos.

No terceiro ano, tivemos outro menino, demos o nome de Flávio e no ano seguinte tivemos outra menina e a chamamos de Eliza.

Devo dizer que éramos uma família muito feliz. Íamos para algum lugar diferente com as crianças quase todos os finais de semana. Zoológico, parque do Ibirapuera, Horto Florestal e até mesmo no ´´Playcenter`` chegamos a ir certa vez.

Eu sempre estava sorrindo e nada podia abalar minha felicidade. Minha vida era perfeita. Uma linda família e um emprego que me pagava muito bem, até o dia que a empresa faliu.

Foi de repente e ninguém estava esperando por tal acontecimento, na verdade, os únicos que sabiam eram os donos, e a prova disso era que eles simplesmente abandonaram a empresa sem mais nem menos.

Muitos homens e mulheres ficaram desempregados, alguns foram à justiça para receberem seus direitos, mas, havia uma pilha de processos para serem abertos e vistos, com certeza demoraria muito mais do que poderiam esperar.

Eu não fiquei esperando um parecer da justiça, minha família não podia ficar esperando algo que, talvez nunca sairia do papel. Eles precisavam de algo verdadeiro, algo que sustentasse suas necessidades.

Saí para procurar um trabalho imaginando que encontraria rapidamente, engano meu. O mercado de trabalho cada vez mais competitivo e os profissionais cada vez mais qualificados. Era difícil para mim olhá-los de igual para igual, pois, não éramos iguais, eles se julgavam e eram superiores à minha pouca escolaridade.

Os dias foram passando e o dinheiro das economias fora acabando juntamente com minhas esperanças, logo eu e a família mergulhamos num grande problema financeiro, um problema tão grave que chegamos a ficar sem água e sem luz, aqueles foram dias negros demais. Mesmo assim, mantive minhas forças e continuei saindo em busca de algo para fazer. Tentei ser faxineiro de rua, mas era necessário pagar pela inscrição. E, como não tinha dinheiro nem para comer, descartei tal idéia, mas, mesmo assim precisava continuar procurando algo para fazer, e, poderia ser qualquer coisa, desde que recebesse um dinheiro honesto. O que não aconteceu.

Meus filhos começaram a se mostrar famintos com o passar dos dias, e, desesperado, comecei a pegar papelão, latas e qualquer coisa que pudesse vender. O dinheiro que recebia não dava para pagar as contas, mas, pelo menos garantia o pão e o leite das crianças.

— Um instante, Edson. — Interrompeu o homem com o indicador em riste. — Gostaria que me contasse somente o que levou a fazer o que fez.

— O senhor disse que era para contar desde o início e, é isto que estou fazendo.

O homem o fitou em silêncio por um momento, deu de ombros.

— Tudo bem então, mas, seja breve com os fatos, tenho muito que fazer ainda hoje... Aceita um café? O senhor me parece tenso.

— Claro... Aceito.

O homem ergueu a mão e fez e sinalizou o número dois com os dedos, logo em seguida uma mulher uniformizada trouxe duas xícaras de café. Ela serviu apenas o policial, Edson teve que pegar o seu que estava no centro da mesa.

— Não sou um monstro. — Disse ele entristecido pela forma que a mulher o fitara.

— Não é isso que pareceu ser, mas, continue sua história.

Vivi assim durante alguns meses, quer dizer, muitos meses. O senhor sabe o que é esquentar água para tomar banho em uma fogueira? É terrível! Usávamos uma lata de tinta para fazer isso e, o que era pior, usávamos a água de um vizinho que era tão bom que nunca nos cobrou nada, alias, muitos vizinhos nos ajudaram como puderam e nunca disseram nada nos ridicularizando, pelo contrário, até nos injetava ânimo com suas palavras de incentivo e foi numa dessas palavras de incentivo que fiquei sabendo sobre um emprego.

— Um emprego? — Interrompeu o policial. — E esse emprego tem alguma coisa a ver com o caso?

Edson assentiu e continuou em seguida.

O trabalho estava praticamente certo, o meu vizinho já havia conversado com o dono da empresa, tudo que precisava fazer era me vestir bem para a entrevista. Disse que era um homem que se apegava a tais detalhes. Era uma ótima empresa e vi que aquela era minha oportunidade de retomar minha antiga vida.

No dia seguinte acordei logo cedo e, para despertar, tomei um banho gelado e logo em seguida vesti o terno que pegara emprestado com um vizinho que fora padrinho de casamento. Eram cedo ainda, o sol começava a nascer, não queria chegar tarde àquela entrevista, precisava ser mais que pontual.

Eram seis horas quando cheguei no ponto de ônibus. Era só uma condução da minha casa até o lugar da entrevista, mas o único ônibus que passava perto sempre estava lotado então, quando o avistei ao longe, pedi para o motorista deixar entrar por trás, expliquei para ele que estava indo fazer uma entrevista e que não tinha dinheiro, ao meu parecer, ele não acreditou muito em minha história, mas as pessoas no ônibus começaram a reclamar da demora e ele acabou deixando.

A parte de trás do ônibus estava bem lotada. Era uma manhã fria e os vidros estavam fechados, e, conseqüentemente, o ar quente era viciado e repleto de odores, bons e maus, tentei o máximo possível me colocar num lugar que não pudessem sujar a barra da minha calça e ali fiquei até o momento que pude, finalmente sentar, e para garantir bati as mãos na barra da calça.

Não demorou muito para chegar na estação Ana Rosa do metrô. Desci e me informei sobre a rua que deveria ir, um rapaz de quinze anos me informou que bastava descer uma rua que chegaria nela, sem qualquer chance de erro.

Decidi acreditar naquele rapaz, ele não tinha cara nem jeito daqueles garotos que gostam de pregar peças em pessoas perdidas no centro da cidade. Fui descendo e a rua não parecia ter fim, até que finalmente cheguei na Amâncio de Carvalho. Você poderia me ceder mais um cigarro?

O policial fez o maço deslizar pela mesa, Edson pegou um e logo em seguida foi lhe jogado o isqueiro, ele acendeu o cigarro e após uma longa tragada continuou.

Quando cheguei na Amâncio, perguntei sobre a rua Tutóia e me informaram que era continuação daquele que estava, sem pensar duas vezes, segui em frente, ainda era cedo e eu corpo mantinha uma temperatura razoável, não queria chegar suando e vermelho para uma entrevista.

De repente, logo à frente, avistei uma poça dágua que se formava na sarjeta, olhei um pouco para trás e, julgando pela água que parecia limpa e em abundância, ou alguém estava lavando alguma coisa, ou, algum cano da rua havia quebrado. Continuei andando até ver um carro passando por cima daquela poça dágua e fazendo-a espirrar para todos os lados. Aquela cena, naquele momento, para mim foi terrível, parei no mesmo lugar e olhei para trás.

Outros carros vinham em alta velocidade, alguns passavam distante da poça mas outros, pareciam fazer questão de ver a água se espalhar no ar. Eu fiquei esperando o momento certo para continuar meu caminho, não podia arriscar na sorte, ainda mais naquele dia decisivo, tudo estava certo, as referências que deram sobre mim não poderiam ter sido melhores.

Esperei por alguns momentos e quando julguei seguro, continuei a caminhar, mas quando estava ao lado da poça, um carro vermelho surgiu do nada e me deu um longo banho. Naquele momento meus olhos se fecharam e tive a sinistra impressão de ouvir alguém rindo, gargalhando alto mesmo. Fiquei ali parado por alguns momentos, desconsolado, havia tantos planos para aquele novo emprego... Tantas coisas que queria fazer para compensar aqueles meses tão terríveis, agora foram por água abaixo.

Fiquei olhando para o carro que seguia seu caminho, mas de repente algo inesperado aconteceu, o semáforo fechou e instintivamente me coloquei a correr pela rua atrás daquele carro, quando parei ao lado da janela respirando rapidamente por causa da corrida, percebi que o que pensara que ouvira, realmente ouvira, ele estava rindo em seu carro, no conforto de um estofado de couro.

Era um rapaz de no máximo, vinte e cinco anos, os cabelos eram escuros e os olhos eram negros envolvidos por uma imensa mancha vermelha em ambos os olhos.

— Você viu que você fez comigo! — Gritei com ele. Minha vontade era entrar naquele carro e trocar minhas roupas pela dele. — Você viu o que fez comigo?

Ele não respondeu as minhas ofensas, na verdade ele ria cada vez mais, e aquela risada começou a me irritar mais e mais. Ele pouco se importava comigo, não fora sem querer, se ao menos se desculpasse... Talvez realmente lhe perdoaria e tentaria dizer algo ao novo patrão, isso se ele se desculpasse, coisa que achava difícil, pois ele ria tanto que parecia ter ouvido a maior piada do ano.

O semáforo se abriu e me agarrei à porta, exigi que ele parasse para me ajudar com o problema. Ele tinha dinheiro, era um daqueles playboys chegando de suas festas noturnas, eu bem conhecia a fama deles, sempre ouvira pelos arredores da escola na minha época. Mas, ele não parou para me ajudar, e ainda por cima me atirou a bituca do cigarro. Que apontaria tinha o maldito, acertou-me no olho, soltei de seu carro imediatamente, um dos olhos estava fechado devido a cinza, mas o outro estava aberto e pude ver a placa de seu carro.

Mesmo estando sujo, tentei a sorte e fui para a entrevista, assim que entrei na sala, o dono da empresa me pareceu muito simpático e atencioso comigo, estava sentado, as manchas ocultas pela forma que estava acomodado. Ele me pediu cinco minutos e logo em seguida me chamou, abri a porta lentamente, pensando em como explicaria aquela situação.

— Bom dia, senhor Edson!

Ele parecia feliz em me ver, olhou para o relógio e continuou.

— Pontualidade! Excelente... Gosto disso em um funcionário, mas, sent...

O empresário franziu o cenho e me encarou por alguns instantes, me olhou dos pés a cabeça e discretamente percebi que entortara o canto direito de sua boca.

— Eu posso explicar, senhor.

Ele sentou-se sem dizer qualquer palavra, e quando estava preste a me sentar, com um sinal de sua mão, impediu.

— Tem experiência em contabilidade?

— Não... Mas... Disseram que ensinariam o trabalho... O senhor mesmo conf...

— Não... Não... Não... Acho que existe um engano por aqui... — Ele não parecia o mesmo homem. Sentia em seus olhos uma profunda vontade de chutar-me para fora de sua sala, continuou. — Se lhe disseram que eu, o dono de tudo isso aqui, contrataria um Zé ninguém sem experiência, está muito enganado... Eu preciso de alguém que possa chegar e fazer o serviço imediatamente... — Ele levantou-se e indicou a porta. — Por favor... Tenha um bom dia.

Meus olhos se encheram de dor e raiva, mordi o lábio inferior e fiz conforme pedido. Sentei-me na rua e fiquei olhando para o movimento, sem dar conta dele. Na verdade, era como se eu fizesse uma viagem pelo inferno.

Vi meus filhos chorando de fome, minha mulher desesperada brigando comigo sem saber o que poderia fazer para melhorar nossa situação. Vi meus vizinhos deixando de nos ajudar e a família de minha mulher virando às costas num momento tão difícil, e nada podia fazer para reverter aquela desgraça que me acometera, foi então que lembrei-me da placa do carro e de uma mulher que vi na rua perguntando sobre o Detran, a mulher que dera a informação dissera que era por ali, perto do Ibirapuera.

Não pensei duas vezes e fui procurar pelo Detran. Por sorte não era muito longe dali, cheguei em poucos minutos, procurei por um velho amigo de infância que, dá última vez que nos encontramos disse que trabalhava naquele lugar. Ele poderia me ajudar com o número daquela placa.

Expliquei para ele todo o ocorrido, inclusive de minhas intenções disfarçadas. Não disse a ele o que realmente queria fazer com aquele playboy, disse que queria contar-lhe sobre minha família e sobre toda necessidade que estávamos passando e o que ele fizera para piorar a situação.

Depois de alguns minutos o endereço do rapaz e tudo mais estava num pequeno pedaço de papel que meu amigo me entregara.

— Eu nunca lhe dei isso, entendeu?

— Não se preocupe, — levantei-me e estendi a mão para meu amigo. — Lhe devo essa, um dia passo por aqui para, quem sabe, tomarmos umas e outras.

— Vou ficar esperando, — respondeu, enquanto me acompanhava até a porta. — Juízo... Lembre-se que tem uma família para criar.

Juízo! Refletia naquela palavra que ecoava em minha mente no lugar do número da placa, agora não era mais necessário mantê-la na memória. Estava marcada no papel, juntamente com o nome e o endereço daquele rapaz, minha desgraça ganhara um nome, era Luiz Paulo.

Ele não morava muito longe, na verdade, morava na rua Pelotas, próximo de onde dera um banho num homem cheio de esperanças. Encontrei a casa rapidamente.

Era uma bela casa. Um sobrado com um jardim bem cuidado, havia algumas árvores bem podadas também, definitivamente aquele garoto tinha pais ricos. O carro estava parado na frente da casa, eu me aproximei do carro e reparei que a chave estava no contato, ri para mim mesmo. Ele realmente pouco se importava com uma série de coisas, e, foi neste instante que tive uma idéia terrível, a idéia que me trouxe até aqui, á sua frente.

Lembrei que havia passado por um posto de gasolina.

Não podia correr o risco de ir até o posto e perder o rapaz, então para precaver, esvaziei um dos pneus de seu carro, com certeza ele pensaria que estava furado, trocaria o pneu sem saber o que realmente aconteceu e isso o ocuparia por no mínimo uns trinta minutos, o tempo certo para colocar meu plano em prática.

Quando cheguei ao posto, olhei para todos os funcionários atentamente e fui falar com aquele que julguei parecer o mais amável deles.

— Com licença... — O frentista virou-se para mim e sorriu. Continuei. — Bom dia... Estou com um pequeno problema e talvez você possa me ajudar.

— Se puder.

Ele cruzou os braços, então comecei.

— Como pode ver, pelo estado de minha roupa, meu carro quebrou logo aqui em cima... Isso é o que pensava... Distrai-me e depois de alguns minutos olhando o motor e mexendo aqui e ali, decidi olhar o nível do álcool e percebi que estava sem. E esse é meu problema, tenho um evento muito importante agora, só que estou sem álcool e o que é pior, sem dinheiro para comprar.

O homem franziu o cenho e naquele momento percebi que precisava dizer algo que realmente o fizesse me dar o que pedia.

— Tenho uma reunião com os lideres sindicais de São Paulo e não podia perder... Justo hoje que iríamos criar algumas regras novas para o bem do funcionário.

— Como assim?

Ele mordera a isca, ele começara entrar na conversa de Edson.

Edson olhou para os lados certificando-se que ninguém poderia os ver nem ouvir.

— Falarei baixo... — Sussurrou Edson disfarçadamente. — Se isso chegar ao seu gerente, com certeza todos vocês estarão no olho da rua. Preste atenção apenas. Nós da união dos sindicatos de São Paulo, decidimos fazer uma votação para exigirmos mais das empresas que colocam o funcionário em risco em seus trabalhos: Seguranças, eletricistas, limpadores de rua, frentistas...

— Frentistas? — O homem pareceu eufórico. — Os frentistas também!

— Claro. — Respondi seriamente. — Olhe ao seu redor... Trabalha em cima de uma bomba que não se sabe se explodirá ou não, além disso, os odores do combustível foram provados cientificamente que fazem mal ao seu organismo... Isso quer dizer que além de terem o adicional de periculosidade, haverá um outro para suplantar a falta de algo melhor, em vista que, não podemos colocar junto no mesmo recibo de pagamento, optamos por fazer separado, como se fosse uma ajuda de custo por fora. Mas, não tenho tanta certeza se isso será aprovado devidamente.

— Por quê?

— Veja bem. — Me aproximei do rapaz e lhe disse quase ao ouvido. — Essas votações são combinadas entre as pessoas que podem ser beneficiadas com tal mudança. Se todos estivessem presentes ganharíamos por um voto de diferença, parece pouca coisa, mas uma pessoa pode fazer uma enorme diferença. E, infelizmente, não poderei ir.

— Mas por quê o senhor não irá?

— Por causa do meu carro, não trouxe minha carteira para colocar álcool. O carro de minha mulher bateu dias atrás e ela esta usando o meu e ontem ela acabou saindo à noite e não trouxe de tanque cheio.

O rapaz olhou para os lados e como não havia ninguém prestando atenção, me deu uma nota de cinco reais e começou a falar em voz alta.

— Tudo bem, o senhor quer cinco reais de álcool comum... Sem problemas. O carro ficou sem? Isso é ruim, mas acontece nas melhores famílias.

Compreendi o recado e lhe entreguei a nota de cinco reais, ninguém parecia ter notado até mesmo quando o garoto se fez para ser notado. Ele colocou a nota no bolso e logo em seguida me deu um saco com o líquido.

— Muito obrigado, garoto. — Disse ao tomar o saco em minhas mãos e, reparei uma saliência quadrada em seu bolso. — Você poderia me arrumar um desses?

— Claro. — Ele tirou um cigarro do maço e me entregou, levei a boca e fiquei esperando por algo que o acendesse.

— O senhor não pode fumar com esse saco nas mãos. Tome. — Ele me deu uma caixa de fósforos. — Leve-a consigo e acenda seu cigarro somente após ter colocado o álcool no carro e lavado as mãos. Isso é inflamável demais.

— Você tem razão, garoto, obrigado mais uma vez.

Despedi-me do rapaz e fui colocar meu plano em prática, subi a Amâncio de Carvalho, passei pela rua caravelas e pela banca caravelas e subi a pelotas, o carro continuava no mesmo lugar o que era um bom sinal.

Cuidadosamente, coloquei o saco no chão, qualquer furo que fizesse seria o fim de tudo, o cigarro apagado pedia no canto do lábio esquerdo, esperava por ser aceso. Aproximei-me do carro do rapaz e ao apertar a maçaneta percebi que a porta estava aberta, em silêncio, sentei-me no banco e deixei o carro descer um pouco, em seguida peguei um pouco de areia, pedras, tijolos e madeiras e construí na sarjeta uma espécie de represa e entre aquelas duas comportas despejei o álcool.

A primeira parte estava concluída, agora era a parte mais difícil, fazer com que o rapaz saísse de sua casa. Acendi o cigarro enquanto pensava e, após alguns segundos fizeram o que todos esperavam, buzinaram e eis que ele aparece na porta. Olhou para os lados e não viu seu carro, eu estava dentro dele, atrás de outro carro, esperando o momento certo, de repente o rapaz sentiu o cheiro do álcool e reparou que bem na frente de sua porta havia um dique muito mal feito, ele se abaixou, fungou e percebeu que o cheiro de álcool vinha daquele lugar.

Ele estava agachado diante a imensa poça de álcool e foi neste instante que sai com o carro dele a toda velocidade. Ele estava tão entretido com aquela mini represa que mal se dera conta que seu carro vinha em sua direção, só percebeu quando sentiu os olhos arderem por causa do álcool.

Parei o carro logo à frente e fiquei esperando. Não demorou muito e ele surgiu na janela ao lado do passageiro, estava furioso e o mais importante completamente molhado pelo álcool. Ele xingou-me de tudo quanto é nome, mas pouco me importei, olhei-o seriamente e então ele me reconheceu.

Dei uma longa tragada no cigarro e ele se lembrou do que havia feito naquela manha, ele tentou correr, mas tropeçara no próprio medo e ficara sentado no chão e numa fração de segundos, atirei o cigarro ainda aceso em cima dele.

Tentou se esquivar, mas não fora rápido o suficiente, mas o fogo era e começara a se alastrar, seus gritos podiam ser ouvidos a distância, eu fiquei ali na frente, vendo-o queimar, assistindo-o se rastejando no chão enquanto as queimaduras lhe esticam a pele. Vizinhos começaram a surgir, mas o garoto estava imóvel no chão, talvez morto. Eu saí do carro, e fiquei olhando para o infeliz. Agora ele não parecia sorrir mais. Nem eu.

Sentei-me na rua e fiquei aguardando um policial. Não precisava ser ninguém especial, qualquer um era capaz de ler os direitos de um condenado.

Aquele homicídio tornou-se um dos mais terríveis e cruéis, passara em todos os jornais, papel e televisão, meu rosto era conhecido e temido, mas minhas razões foram distorcidas para continuar sendo notícia, eles sabiam que se publicassem minha história de verdade poderia me tornar um mártir e, o nosso mundo não tem lugar para esse tipo de heroísmo. Infelizmente.

— E você não sente pena da família do rapaz? — Indagou o policial perplexo.

Edson pensou por alguns instantes.

— Não tenho... Quer dizer... Não posso... Não pensei em minha família... E agora? Quem cuidará deles enquanto estiver atrás das grades? Eu sei que ficarei aqui por muitos anos, talvez eu morra por aqui mesmo... Minha mulher dará um jeito... Ela sabe muito bem fazer as coisas, ela saberá dar o melhor para meus filhos. Espero que meu ato não tenha destruído suas perspectivas... Espero.

— Você sente-se arrependido pelo que fez?

— Arrependido? Não... Na verdade não estou... Ele teve aquilo que procurou ter... Essa é a verdade, se ele não tivesse passado daquele jeito, não teria me molhado e eu estaria limpo de qualquer acusação e, quem sabe, com um emprego.

— Então, você afirma que é culpado por assassinar o rapaz?

— Não. Não afirmo. Afirmo apenas que fiz o que ele fez comigo, ter acabado com minhas esperanças e meus sonhos.

O policial pegou um cigarro do maço e logo em seguida jogou o restante para Edson juntamente com o fósforo. E caminhou para a saída.

— Acha que tenho alguma chance, senhor? De sair livre?

— Só o julgamento dirá alguma coisa, mas, todos vão querer sua cabeça... Esteja avisado.

Edson fora sentenciado a quinze anos de reclusão pelo homicídio. Sem qualquer chance ou pedido de apelação, ele estava preso e por ali ficaria muito mais do que imaginava, quando estava próximo de sair, pegou mais cinco anos por atacar um dos detentos que, julgara ele, dissera ter matado sua família, em vingança ao jovem rapaz que ele executara e como eles nunca vinham visitá-lo, Edson acreditou e sua vida perdeu completamente o sentido.

adriano villa
Enviado por adriano villa em 16/08/2007
Código do texto: T609269
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