Sonho Queimado

Padre Ezequiel se ajoelhou perante sua lareira, lágrimas escorriam pela sua face e umedeciam a barba desgrenhada. Passou a mão pelo rosto e os pelos o fez voltar a realidade, nem sempre ele foi daquele jeito, gostava de um barbear bem feito. A voz havia mudado tudo.

— Faça. — Um sussurro em sua mente.

Respirou fundo e o cheiro inebriante de gasolina invadiu suas narinas. Residia naquele mosteiro há trinta anos. O local foi sua morada e sua missão. Cuidava de crianças abandonadas e as ensinava as palavras de Cristo. Por ser localizado no centro da cidade o padre sabia que seu mosteiro era referência e deveria servir de exemplo, refletir a obra e a vontade de Deus aos olhos dos espectadores que passavam por ali. Por trinta anos, Ezequiel devotou todo seu amor pelo mosteiro e naquela noite espalhou gasolina pelos três andares.

— Faça.

As mãos tremulas foram até o bolso da batina e sentiram a caixa de fósforos.

— Pai. Perdoe os meus pecados — suplicou, Ezequiel.

A voz surgiu há mais ou menos três meses. No início pensou que fosse estresse, mas em pouco tempo compreendeu o que estava acontecendo e temeu. Os pecados de uma vida cobravam seu preço. Acreditava que se fizesse o bem poderia diminuir o peso sobre seus ombros. Falar com alguém sobre as vozes e confessar seria o fim da sua vida religiosa. Guardou para si, rezou, implorou e não adiantou, a voz ficava mais forte. Sua mãe era esquizofrênica, passou os últimos anos de sua vida internada, definhando em suas loucuras. As vezes ficava na dúvida se a voz vinha de suas ações ou de seu sangue, a carne era fraca e eles são os anjinhos do Senhor. A voz parecia saber os pensamentos mais íntimos e as ideias mais sombrias, isso era o mais assustador.

— Apenas o fogo de Miguel pode purificar as almas mais pútridas como a sua — sussurrou a voz. — E você sabe disso.

Ezequiel sabia. Lágrimas caiam copiosamente, com a mão esquerda aberta cravou os dedos no tijolo da lareira, apertou o mais o mais forte que podia, sangue escorreu debaixo das unhas. Do peito, explodia uma dor que reverberava pelo corpo todo.

— Faça e acabe com a dor. Deixe o fogo de Miguel purifica-lo.

Me perdoe, Deus. Eu pequei — disse o Padre Ezequiel, logo após ter ascendido o fósforo.

Jonas, acordou assustado pela terceira vez naquela noite. Até uma semana atrás sobrevivia na rua, mendigando e lutando para ficar inteiro. Padre Ezequiel o achou em um beco, se contorcendo de fome. No início ficou desconfiado, nas ruas ouvia muitas histórias sobre homens que ofereciam comida e depois fazia maldade. A dor no estômago falou mais alta e arriscou. Além de um prato quente para saciar a fome descobriu que teria abrigo se quisesse. O mosteiro de São Ciprião funcionava como um orfanato e abrigava quase cem crianças. Aos onze anos de idade, Jonas sabia que oportunidade melhor não apareceria e aceitou. Na rua, dormir profundamente poderia significar a morte ou algo pior, é preciso fechar os olhos e ficar atento. Nos sete dias que residia no mosteiro, Jonas não havia conseguindo um sono profundo e acordava assustado a todo instante, achando que sua vida corria perigo. Velhas manias não sumiam facilmente.

Sentiu a bexiga cheia e resolveu ir ao banheiro. Andou na ponta dos pés para não acordar os outros garotos. As luzes do corredor entravam pela porta que ficava sempre aberta e fornecia um pouco de luminosidade ao local. O grande relógio na parede marcava 3:45 da manhã.

Um som de dor e lamurio o fez se arrepiar. Tapou a própria boca para não gritar.

Assustado, com o coração disparado, boca seca e as mãos transpirando, olhou para traz. O som aumentou e percebeu que vinha de baixo de uma cama. Pensou em correr, mas não queria demonstrar medo. Na rua, demonstrar fraqueza pode significar dias piores. Abaixou-se e viu Davi, um outro garoto do orfanato.

— O que aconteceu? — perguntou Jonas.

Davi, tremia, o rosto molhado de lágrimas, em posição fetal apertava os próprios ombros com força. Tentou responder e não conseguiu, algo bloqueava sua garganta. Suas entranhas se contorceram e gerou uma pressão interna, sua boa abriu com um espasmo e botou o jantar para fora. O vômito pareceu aliviar um pouco a agonia interna e conseguiu falar.

— O demônio me visitou. Ele veio me ver essa noite.

— O que?

—- Por que ele veio? Por que eu? O que eu fiz? — Os tremores voltaram a tomar conta e Davi se fechou em seu choro.

Jonas se levantou e olhou ao redor, todos dormindo. Desde que ele chegou escutava conselhos dos garotos mais velhos “Se o demônio te visitar a noite, não resista”, “lembre-se que no outro dia você ainda terá comida na mesa”, “imaginar um lugar bonito ajuda”. Pensava que era uma tentativa de amedrontá-lo, de sentir suas fraquezas e sempre devolvia um “pode deixar” seguido de um sorriso forçado. Mas, seria impossível Davi estar fingindo, ele viu um medo verdadeiro nos olhos do garoto.

Com passos incertos, Jonas se afastou da cama de Davi e foi para o corredor, olhou para sua esquerda e não viu nada, olhou para sua direita e avistou ao longe a porta da torre principal entreaberta, pensou se deveria ir até lá e avisar o padre Ezequiel sobre o Davi, mas sem saber o motivo sentiu medo. Seus pés descalços tocaram algo úmido no chão. Se curvou e raspou as pontas dos dedos na pedra fria, sentiu um cheiro forte e familiar. Gasolina.

E então, a noite virou dia.

Do final do corredor veio uma explosão, a porta da torre abriu repentinamente e uma bola de fogo saiu por ela. As chamas saltavam e aumentavam, engolindo tudo ao redor. A noite fria se transformou em um caldeirão, da pele de Jonas brotavam gotas de suor. Seus olhos arregalados não desgrudavam da bola de fogo que parecia ter algo familiar. A aproximação aumentou o horror. Existia uma forma humana no meio das chamas. Era o padre Ezequiel que conforme corria envolto pelo fogo deixava para traz pedaços de sua carne, um dos olhos estavam saltados da órbita, cheiro nauseante de carne queimada impregnava no ambiente.

Dor. Navalhas quentes rasgaram o esôfago do padre, passaram pela sua garganta e romperam sua boca em um grito agonizante. Dentes moles caíram com a força do grito. O fogo rasgava sem dó a pele, atingindo o sistema nervoso e os ossos. “Deus, acaba com isso. Por favor, me leve”, mas Deus não levava e ele corria. Algo gritava em sua mente que ficar parado era pior. Em meio a dor um vislumbre de esperança. Precisava saltar.

Jonas, sentiu a urina lhe escapar e umedecer suas pernas. O urro de dor do padre Ezequiel o despertou. Assustado com a aproximação do fogo, correu para o lado oposto. As chamas o perseguiam, pelas paredes, pelo chão e até pelo teto. Saltavam na pedra fria até encontrar madeira, pano e combustível. O pé descalço tocou outra vez alguma substância liquida. Seu coração acelerou e lágrimas começaram a sair de seus olhos. Compreendeu o que estava acontecendo e o que iria lhe acontecer. Cerrou os punhos e correu. Avistou a porta do banheiro a sua frente e correu.

Pelo chão, uma das chamas entrou em contato com a gasolina, um risco de fogo se formou pelo corredor. Jonas, sentiu seu pé ser queimado, bolhas se formavam e estouravam, perdeu o equilíbrio e caiu. Olhou para traz e viu o padre envolto em chamas cada vez mais próximo, suas costas ardiam pela proximidade. Lutou contra a vontade de ficar deitado e se rastejou até entrada do banheiro, o fogo estava chegando em seu joelho. Entrou e no segundo seguinte, padre Ezequiel passou correndo por ele e saltou pela janela. A bola de fogo iluminou a noite escura fora do mosteiro.

O pequeno Jonas chorava e jogava água em sua perna. Podia sentir o calor aumentando em volta de si e os gritos de dor que tomava o seu breve lar. Viu outros garotos correndo em chamas pelo corredor, gritos de dor e cheiro carne queimada. O desespero os fazia saltar pelas janelas. Em pouco tempo uma fumaça negra e densa dificultou sua visão. A cabeça começou a doer e vomitou.

Até uma semana atrás vivia no inferno. Dormia na chuva, sofria ameaças, apanhava e estava com o estômago sempre doendo por causa da fome. As pessoas o ignoravam ou o olhavam com nojo, como se ele fosse o culpado pela miséria do país. Acreditava que morreria na rua ou viveria o suficiente para ser preso. Há sete dias tudo mudou, encontrou um lar com cama quente e refeições diárias, lá no fundo começou a ter esperança de fazer amigos, descobrir o significado de família, finalmente aprenderia a ler e a escrever. O fogo não abrasava somente sua carne, queimava seu sonho.

As dores foram diminuindo, os olhos perdendo o foco e a cabeça ficando mais leve. Teve a sensação de que estava dormindo e sorriu, acordaria assustado e ainda teria seu novo lar, despertaria e viveria sua esperança. Em meio a devaneios os sentidos abandonaram o corpo.

Naquela noite, a cidade de Ciprião foi tomada por um vendaval nunca visto. Os bombeiros lutavam contra um incêndio que teimava em crescer. As chamas invadiram prédios e casas vizinhas. A noite virou dia. Ninguém que estava dentro do mosteiro sobreviveu e outras quarenta pessoas envolvendo transeuntes, bombeiros e vizinhos morreram queimados ou sufocados pela fumaça.

Qual crítica ou sugestão será bem vinda.

Agradeço sua leitura

Alex da Silva
Enviado por Alex da Silva em 25/08/2017
Código do texto: T6095159
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