O Estranho Passageiro

Nas próximas linhas que seguirão, tentarei passar o mais fiel possível o sentimento que me dominou quando, finalmente a ficha caiu, e, devo confessar que por dias relutei em acreditar... Beirei o abismo da loucura e incompreensão.

Tudo começou numa terça-feira. Fazia sol pela manhã e tudo parecia estar mil maravilhas. Acordara cedo, peguei o ônibus no horário, pude sentar no primeiro momento para continuar a leitura do meu livro, Carrie: A Estranha.

Ao descer do ônibus, procurei pelo maço de cigarros no bolso e encontrei sessenta centavos, para quem estava sem nenhum dinheiro no bolso, ter sessenta centavos já era alguma coisa, pelo menos iria tomar um pingado no bar do Português. Passei pela banca de jornal o qual sou um cliente vip — como chamam, também, gasto um dinheiro razoável com minhas coleções de livros — peguei mais um maço de cigarro e fui para a empresa.

Ao chegar, minha seqüência de trabalho estava impressa e fixada num painel de madeira que ficava o tempo inteiro olhando para mim. Era muita coisa e muita coisa complicada, algumas coleções de DVDs, mais vários rótulos que deveriam ser feito por causa das novas normas da Videolar. Eles sempre mudam.

Depois do café puro e de um cigarro bem fumado, fui encarar meus pepinos, mas tudo correra bem, para minha surpresa, às 17:00 estava tudo terminado e resolvido. Fiquei feliz, pois poderia chegar em casa a tempo para assistir o Casseta e Planeta, mas eis que, faltando apenas alguns míseros e insignificantes minutos, eis que surge um trabalho de última hora e, sem poder dizer não, tive que sorrir e correr com o material que estava atrasado, e foi isso mesmo que fiz, mas, não contava com acidentes de percurso, afinal de contas, aquele não era o melhor momento.

Assim que minha chefe saiu, respirei fundo, acendi um cigarro e fiquei olhando para o material sem saber por onde iria começar. Estava irritado, nunca gostei de liberar meus materiais sem poder dar uma olhada em tudo, claro, eu conhecia muito bem onde trabalhava e se acontecesse algum problema, a bomba sempre estourava na mão do mais fraco e, sem direito a Chapolin para defender.

As horas começaram a voar, meus pensamentos se voltaram para a superstição, era terça feira, dia de Casseta e Planeta, dia de problemas e materiais para liberar. Apaguei o cigarro com raiva, aumentei o som, não havia ninguém para reclamar de minhas músicas, tirei o fone de ouvidos da caixa do computador e fiquei cantando as músicas do Megadeth sem ninguém para ficar mandando calar a boca.

Não havia percebido que já havia passado de meia noite, fiquei tão compenetrado e preocupado com aquele material que mal ouvia música que tocava bem ao meu lado. Às meia noite e meia terminei o trabalho, envelopei, fiz um protocolo e deixei na mesa de minha chefe. Aquele material deveria ser entregue na primeira hora e ela sabia que, na verdade, existia apenas à segunda hora.

Tranquei a empresa e certifiquei-me de que realmente estava trancada. Geralmente, quando estava na metade do caminho me perguntava se havia ou não trancado a porta... Isso sempre me preocupava e teve momentos que cheguei a sonhar com assalto e até mesmo morte.

Fui para o ponto de ônibus com a esperança de pegar um atrasado, mas, para minha tristeza, não passara nenhum, estava na rua na Tutóia, completamente deserta, o vento da madrugada começou a soprar e, como estava de camisa, me encolhi para tentar ficar o mais quente possível. Estava frustrado, enquanto estava ali, naquele ponto, sentado naquele banco de ferro gelado, não havia muita coisa para fazer, não podia ler, pois temia perder o ônibus, eles correm demais quando é a “boa” como eles dizem... Tudo que podia fazer era ficar olhando para os carros, contá-los, ou ficar cantando as músicas que exibiam em um volume tão alto.

Olhei para o relógio e minhas esperanças morreram no instante que constatei que eram uma e quinze da madrugada. Não podia ficar ali sozinho, mesmo sendo homem e mesmo com a delegacia às minhas costas, corria risco, então levantei-me, tirei as chaves da firma do bolso e comecei a voltar, ao menos estaria protegido do frio e ao menos poderia fazer alguma coisa para passar o tempo, mas quando estava preste a abrir o portão eis que ouço uma buzina e uma voz familiar dizendo:

— Ficou sem ônibus?

Olhei para trás e vi que era um amigo taxista, me aproximei do carro e após apertar sua mão com felicidade, respondi.

— Putz... Dá para acreditar? Passei o dia inteiro praticamente coçando, quando faltava um minuto para ir embora, a bomba estoura.

Meu amigo taxista riu.

— E vai passar a noite aí?

— E tem outro jeito? Nem imaginava que iria passar do meu horário, não peguei cheque para o táxi e nem pedi pizza, estou morrendo de fome, frio e sono.

— Amém! — Falou ele acendendo um cigarro, e após uma longa tragada, ele aconselhou. — Porque não deixa que te levo, amanhã eu passo aqui e pego o cheque no final da tarde.

Era uma ótima e maravilhosa idéia, mas... Não tinha certeza se deveria fazer isso ou não, pensei na possibilidade de não pagarem, uma corrida do trabalho para minha casa, hoje em dia é de cinqüenta reais, não podia contar com esse dinheiro do meu salário, faria uma falta enorme.

— É melhor não...

— Como assim...

— Elas podem não pagar...

— Claro que pagam, você ficou trabalhando, não? Não estava brincando, estava fazendo dinheiro, enriquecendo-as e empobrecendo-se... Elas tem noção disso.

O que aquele homem dizia fez sentido e com um sorriso de alivio entrei no carro, coloquei o cinto de segurança e pegamos a estrada.

Descemos para a Vinte e Três de Maio, em seguida entramos pelo acesso a Radial Leste, era meu caminho predileto, depois pegava a Salim Farah Maluf e caminhava calmamente pela pista do meio, entre as árvores que ganhavam um tom maligno com a escuridão.

Não havia trânsito e meu amigo andava muito bem, pelos meus cálculos se continuássemos nessa velocidade, em vinte minutos estaria em casa e jantando. Saímos da Radial, descemos a Rua do Cemitério Quarta Parada e ganhamos a Salim Farah Maluf, olhei para as árvores e também para a casa noturna, Cabral, lembrei dos meus dias de balada e lembrei que sempre tive vontade de ir conhecer aquele lugar, como sempre, havia pessoas conversando na calçada e do lado dos ambulantes que vendiam comida na madrugada.

Meu amigo contava orgulhosamente suas novas aventuras atrás do volante, agora sua nova cliente era uma mulher de cabelos longos, uma senhora distante das feições de uma mulher de quase cinqüenta e próxima de um corpo de uma mulher de vinte e cinco, me divertia com suas histórias, pois ele mesmo ria de suas piadas e de suas besteiras, ele me divertia e, como estava parando nos sinais de madrugada, achei que estava fazendo hora para continuarmos aquela conversa descontraída.

De repente, quando estávamos entrando na curva para pegar o viaduto e cair na Anhaia Melo, eis que vejo atravessando a rua no farol vermelho para os carros, um vizinho que há tempos não via.

Estava muito bem vestido, usava um paletó negro, os cabelos grisalhos penteados e como sempre fora, com uma posição imponente, ele olhou para o carro e nossos olhares se cruzaram, era um homem muito inteligente, daqueles que se pára para conversar na rua, e, percebendo que estava indo para casa a pé, coloquei o pescoço para fora e convidei-o para ir comigo. Aceitou.

Meu amigo taxista, Fernando, sentiu um arrepio e fechou a janela do seu lado, respeitando-o, fechei a minha após pegar na mão de seu vizinho, seu nome era Sandroval, ele sentou-se no banco traseiro, Fernando, fitou-o pelo retrovisor e estranhou sua fisionomia.

Parecia cansado e, estranhamente, um cheiro forte de flores tomaram o carro por inteiro, troquei mais algumas palavras com o taxista e, logo em seguida, virei para Sandroval que estava sentado, sem dizer uma palavra, sem fazer um movimento.

— Ia andando para casa, seu Sandroval?

— Isso. — Respondeu o velho secamente.

— Era uma boa caminhada... O senhor ia chegar lá pela manhã.

— Se chegasse... — Emendou o taxista. — Tem muita gente ruim por aí.

Sandroval não disse nada, continuou em silêncio, olhei para o taxista, ele me devolveu o olhar dando de ombros e por alguns instantes, todos ficaram em silêncio.

— O perigo sempre nos espera onde menos esperamos, sabia? — Disse o velho do nada, quebrando o silêncio. — Já ouviram falar que “ninguém morre na véspera”? Eu penso dessa forma... Não tenho medo de morrer! Seja lá qual for a minha...

De repente, ouvimos um estouro e Fernando, perdeu o controle do carro, segurei-me no banco e forcei minhas pernas no fundo do assoalho, Fernando, tentava controlar o carro e Sandroval, estava sentado, sem qualquer palavra.

Finalmente, Fernando controlou o carro e parou num posto vinte quatro horas, depois de negociar o preço em uma noite onde tudo esta fechado. Ficou conversando com o frentista que narrava para ele dos detalhes que vira do carro na avenida.

— Eu gravaria se tivesse uma câmara... E ficarei mais feliz ainda se tudo acabasse da mesma forma que acabou, todos bem e... vivos!

Ambos riram e logo que terminaram de colocar o pneu tiraram o carro do macaco e pegaram a estrada novamente. Lembrei-me das palavras de Sandroval, e murmurei “ainda bem que conseguiu”.

— Ninguém morre na véspera, meu caro amigo Wilson... Eu havia dito.

Fernando ainda estava nervoso e me olhou aterrorizado.

Não demorou muito e entramos na rua de minha casa e como sempre parei um pouco distante para as cachorras não ficarem latindo, peguei a nota fiscal para dar à patroa, guardei no bolso, e assim que me despendi de Fernando ele saiu cantando pneus pela rua abaixo, e naquele momento, entendi por que teve que ir trocar de pneu as uma e meia na madrugada.

Eu e Sandroval ficamos olhando o carro desaparecer na curva sem trocar nenhuma palavra, assim que o carro sumiu, me olhou ternamente.

— Obrigado.

— Não precisa agradecer, Sandroval, ia gastar isso de um jeito ou de outro. Mas, me conta, agora que estamos só nos dois... Por onde esteve?

— Viajei... — Começou. — Para muito longe... Você não ficou sabendo?

— Não fiquei sabendo, quer dizer, não fiz parte dessa vizinhança por um bom tempo, discuti com minha mulher e ficamos um tempo separados, agora, nos acertamos e estamos de volta como pode ver.

Sandroval lhe fitou com simpatia.

— Então você não vai saber e nem tem porque entrar em tantos detalhes.

De repente seu rosto assumiu uma carranca.

— Mas você não deveria voltar para sua mulher! Nos entregamos, nos dedicamos e depois... Nos esquecem! Agora te pergunto... Você esquece da sua mulher? Claro que não, mas será que ela lembra de você? Será que pensa se vai ser bom ou não para você? Nós homens saímos todos os dias para enfrentar esse monstro que nos devora aos poucos todos os dias, e para quê? Para sermos esquecidos, deixados para trás... Ninguém se importou comigo, ninguém! Fiquei só e agora voltei para lhe fazer uma visita e lembrar que eu ainda existo!

— Como assim? — Wilson não sabia o que estava acontecendo, será que Sandroval havia se separado da mulher também? Preferia pensar que não, mas estava se enganando, na verdade, sabia que alguns casais se escoravam um no outro, e esse era o caso de Sandroval e Dona Cleide, ambos haviam dividido praticamente todos os anos de suas vidas. — Vocês se separaram?

— É... — Respondeu Sandroval depois de pensar por alguns instantes. — Podemos dizer que estamos um ano separados, mas, hoje vim para buscá-la, não é justo sabe, Wilson, você ainda é garoto novo, mas quando chegar a minha idade e a minha maturidade, verá que estou certo.

— Mas, agora tenho que descer, não tenho muito tempo, devo ser rápido... — Ele estendeu a mão e Wilson apertou, sentiu um calafrio percorrer sua espinha.

— Sua mão esta muito gelada, — observou. — Sente frio mesmo com esse paletó? — Sandroval não respondeu, coçou o nariz com o indicador, parecia que algo lhe incomodava, então, sem qualquer respeito enfiou um dedo no nariz e tirou um algodão, Wilson surpreendeu-se. — Algodão no nariz?

— Estava sangrando, — ele mostrou o algodão, havia sangue seco nele. — Vê as marcas...

Sandroval começou a se distanciar, mas antes que ficasse suficientemente longe, voltou-se para trás e disse. — Obrigado pela bondade! Eu falarei bem de você! Não se preocupe... Fique com Deus e eu também um dia espero ir.

Wilson estranhou-o completamente, até mesmo sua voz estava diferente, Sandroval era um dos melhores radialistas de uma rádio local, reparara que estava pálido e parecia sentir muito frio e mesmo assim, não percebeu os dentes se batendo. Sandroval, desde pequeno, — isso quem dizia eram os vizinhos mais velhos — era uma pessoa visualmente desequilibrada, mas ao ingressar na juventude pareceu melhorar maravilhosamente, uma transformação perfeita e bela, como o nascimento de uma borboleta.

Wilson entrou e sentou-se no sofá, fez um prato de comida e comeu assistindo um filme que estava passando, não estava prestando muita atenção, na verdade, ainda estava pensando no velho.

Depois de alguns minutos — seu prato já estava na pia — escovei os dentes e cai na minha cama já adormecido, no dia seguinte, o celular despertou, levantei-me no décimo primeiro toque, do reajuste para dez minutos a mais, caminhei para o banheiro de cueca e com os pés no chão, abri o chuveiro e deixei a água me acordar, lavei a cabeça e escovei meus dentes.

De repente minha mulher bate a porta, abro e ela entra por causa do frio que invade meu banho quente, então ela diz, excitada.

— Você não sabe o que aconteceu com a Dona Cleide?

— Claro que sei, o Sandro...

— Ela morreu! — Interrompeu a mulher. — Encontraram-na mortinha da silva.

Fechei o chuveiro transtornado pela notícia, pensei na hora em Sandroval, mas não foi dele que perguntei.

— Onde será o enterro?

— Na Quarta Parada.

— Hum... — Peguei a toalha e comecei a enxugar o corpo e a cabeça. — Quem vai sofrer com isso é o Sandroval... Ele ama tanto aquela mulher que nem ele mesmo sabe... Fiquei surpreso.

— Do que você esta falando, Wilson?

Olhei para minha mulher e fiquei surpreso da forma que me olhava, os olhos pareciam prestes a saltar das órbitas, os lábios tremiam.

— Estou falando do Sandro... Do marido dela!

— O marido dela morreu no ano passado, Wilson! — Ele parou de se enxugar. Não podia ser, algo estava muito errado. — Foi terrível para ela... Muitas pessoas disseram que ela não ia agüentar por muito tempo... Durou um ano... Espero que pelo menos tenha acontecido como ela queria.

— E como ela queria? — Sussurrou Wilson com as pernas tremulas.

— Que o marido viesse buscá-la.

Suspirei profundamente. Queria dizer que acontecera realmente daquele jeito, entretanto, o que ela pensaria se lhe revelasse que dei carona há uma alma penada? Ela poderia acreditar, mas também poderia ficar pedindo para fazer eletros do corpo inteiro. Talvez, com tais fatos, eles me segurariam na delegacia e diriam que fora minha culpa e que tenho que pagar, mas para minha sorte, havia uma testemunha e me defendeu com rigor e acabei ficando livre.

Mas até hoje penso naquele casal, Sandroval e Cleide, pessoas apaixonadas que não conseguem viver sozinhas, agora podem se encontrar novamente no infinito céu. E aproveitar toda a eternidade que têem pela frente e, quanto a mim, continuo no mesmo lugar, fazendo as mesmas coisas e mais algumas coisas extra-curriculares que surgem e continuo guardando aquele segredo, que dei carona há um morto que fora buscar uma mulher que amou por cinqüenta anos.

fim

adriano villa
Enviado por adriano villa em 17/08/2007
Código do texto: T610889
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