O zumbido

A pequena dormia na rede — chamavam assim o enorme cesto de bambu em formato oval pendente do travamento da cozinha por cordas de bacalhau — havia-lhe coberto o rostinho miúdo com a fina frauda de tecido ordinário, precaução contra as moscas. Seu soninho vespertino duraria até a chegada de Evaristo, quanto a isso estava despreocupada. Eram moscas verdes, enormes, das mesmas que sobrevoavam a cova rasa onde depusera os santos. O maiorzinho não voltaria tão cedo, haveria se irmanado com a cambadinha do jogo de bola no campinho da várzea. Isso era favorável, assim as crianças estavam resguardadas de registrar na memória imagens que certamente lhes seriam traumáticas.

A tarde era desprovida de sons, os que teimavam em existir eram tão frequentes e continuados que se diluíam no calada do marasmo, como o zumbido dos indesejáveis insetos e o contínuo matraquear das máquinas da serraria distante, tão distante que se fazia mais audível pelo bulir das panelas penduradas nas prateleiras do que pelo próprio ruído. no início quase não acreditava que a atividade dos monstruosos instrumentos fosse capaz de sacudir panelas a quilômetros de distância, fez mesmo uma séria investigação para concluir enfim que quando as máquinas paravam, também as panelas silenciavam.

As panelas. Tudo começou com elas. Precisavam ser enchidas. Isso implicava em correr atrás de colocação, emprego fixo, renda mensal segura e garantida. Evaristo sempre muito responsável (coitado!), quis deixar o pequeno povoado onde nasceram e cresceram, lá longe na beira do rio, o largo com a capelinha o sino que toda tarde chamava os aldeões para a reza do terço, a ladainha de Nossa Senhora tirada por Dona Zulmira de Seu Feliciano.

Lavou bem a lâmina com que Evaristo havia se barbeado no sábado. Escrúpulo besta! Que diferença fazia? Sentou-se na beira da cama, ajeitou o travesseiro do lado oposto, o braço ficaria pendurado para fora dentro da bacia.

Quando botavam a mudança no caminhão o seu cuidado maior foi com os seus santos. O crucifixo tinha sido presente de casamento de Padre Bernardino que recomendou ficasse em lugar de destaque em sua casa, até citou a frase de um Papa lá: “A cruz será a fonte de nossas forças e o segredo de nossa paz”. Agora lá estava ele enterrado debaixo da mangueira, junto com o Anjo da Guarda e Santa Terezinha do Menino Jesus, com as moscas verdes voando por cima. Mas era necessário. Evaristo não conseguia emprego e as pessoas de boa vontade é que estavam ajudando a colocar comida em sua mesa e elas eram de outra crença. As imagens dos santos as desagradavam. Não poderiam fazer desfeita com quem lhes estendia a mão naquele momento de dificuldade.

Não doía tanto. Pensava que seria pior. Sentia apenas uma imperiosa vontade de fechar os olhos e ficar quietinha, ouvia o zumbido de uma mosca em torno da bacia. Coitado do Evaristo! Como é que ia se virar agora sozinho com duas crianças? Ouviu o sino da capelinha, reviu as pessoas se encaminhando para o largo, Padre Bernardino dava a bênção final. Seu Feliciano gritava os leilões, as moças nos seus melhores vestidos faziam avenida pelo largo, em torno do grande cruzeiro, os rapazes as disputando com seu galanteio bronco.

O zumbido finalmente cessou.

Carlinhos Colé
Enviado por Carlinhos Colé em 15/09/2017
Código do texto: T6114581
Classificação de conteúdo: seguro