Mudança

*(Conto agraciado com Menção Honrosa no II Concurso de Contos Heliônia Ceres, da Secretária de Cultura de Alagoas, 2017)

Quase todas as pessoas que passavam ficavam olhando com aparente curiosidade a máquina que valia milhões. O carro preto com detalhes dourados se destacava dentre outros que, embora luxuosos também, pareciam convencionais diante da imponência do modelo futurista. “Pra ter um desses-alguém pensou- tem que ter...”.

Do outro lado da rua, sentado numa mesa bem localizada na área VIP do destino gastronômico mais caro da cidade, com o mar da praia de Pajuçara ao fundo quebrando suave suas brancas ondas, um homem gordo e vermelho observa os transeuntes com desdém no olhar, enquanto olha, beberica em suaves goles o whisky 21 anos servido sem gelo e com uma das mãos aperta com razoável força a coxa da linda moça que silenciosa e sensualmente vestida, está ao seu lado. Num mundo sem malícia, pra qualquer um se tratariam de pai e filha. Mas não é bem isso...

“Com licença senhor: lagosta grelhada à moda do cheff, servida com carpaccio do mar e risoto de caviar ao azeite de ostra. Bom apetite!” , o garçom serviu os pratos após retirar quase intacta a entrada composta por queijos nobres e uma iguaria que nem mesmo ele sabia do que se tratava, sabia apenas que ela valia quase a metade do seu salário.

Sem resposta, o casal se serve. Não há muita gente no ambiente refinado, ao fundo um jazz ao vivo executado por um trio mantém a pulsação da noite que lentamente declinava para uma fria madrugada.

Eles não conversam.

Dois seguranças de terno preto vigiam a entrada do estabelecimento. Não parecem simpáticos. Em dado momento, um deles fala algo ao outro e se retira. A música não para. Os músicos lembram manequins.

“É muito bom...”, a moça fala.

O homem continua mastigando. Os anéis dourados que faziam conjunto com a corrente grossa que sustentava um pingente em formato de cruz, davam à sua pele branca um quê de angelical, os olhos azuis ainda pareciam mirar o carro do outro lado. O garçom serve o vinho. Por coincidência é o mais caro da carta. O homem põe o nariz dentro da taça. Gira o líquido esverdeado. Põe o nariz outra vez. Faz gesto de negativo com a cabeça. Toma um pequeno gole da taça e depois faz sinal com os olhos e o garçom serve a taça da moça. “Obrigada”, ela diz sem olhar o rapaz trêmulo por medo de errar na etiqueta. A rolha partida não foi deixada à mesa pelo novato.

Os dois seguem se servindo e entre eles o silêncio é tumular. Não é a primeira vez do casal naquele lugar, eles já eram aguardados nas noites de sexta, pelo menos ele com ela, ele com outras, em outros horários, já era habitual à rotina dos que são mal pagos para servirem da melhor forma, acaba-se meio que se criando uma intimidade ilusória com aqueles a quem foi dado o privilégio de serem servidos. Ninguém nunca via nada, por amor aos empregos, achavam até a moça da sexta-feira muito simpática, o cabelo estilo blackpower era perfeito segundo as garçonetes. Era uma pena que ela fosse...

O homem põe o guardanapo de tecido sobre o colo e cruza as mãos abaixo do queixo enquanto mastiga, os cotovelos são espaçosos. Seu olhar é distante, impreciso, um olhar que se poderia dizer “assustador” para um expectador sensível, os olhos celestes do homem tinham como base olheiras arroxeadas, o cabelo grisalho parecia avisar que por trás de toda imagem, há um infinito de intenções. Quais seriam as dele? Vai-se saber. Dinheiro? Não, jamais, ele conseguiria um carro como aquele recebendo salário mínimo...

O segurança que agora sozinho está à entrada, olha pra dentro do estabelecimento como se à procura de alguém e um homem se aproxima dele e o cumprimenta com um aperto de mãos. É o outro segurança, agora sem o terno, está largando e eles conversam um pouco antes de o homem pegar uma moto estacionada um pouco antes da máquina milionária e partir com um barulho alto de motor velho. Logo em seguida, o que ficou se retira da entrada rapidamente. A entrada está livre, mas não há ninguém nas ruas, um carro ou outro passa, porém o sono da madrugada caminha à passos curtos e constantes, o fim de semana promete ser longo para os que terão pouco tempo para descansar, se descansarem. O casal não parece ter pressa alguma. Fora eles, não passam de 10 os que ali usufruem dos serviços especializados.

A moça, num vestido preto que lhe expunha coxas torneadas e morenas, as costas nuas, omoplatas bem delineadas, enquanto come não pensa um segundo no homem ao seu lado, ela o conhece há pouco tempo, não sabe que tipo de compromisso os une além da necessidade, diferente para ambos, ignorada por ambos, mas o jantar, ela sabe, não lhe é oferecido, ela apenas está ali porque estava, se não estivesse, ao homem não faria diferença, pois ele estaria ali ou em qualquer outro canto se assim desejasse, as fronteiras e os limites não existiam para ele, ela sabia. E como para confirmar o que ela pensava, o telefone dele toca. O Iphone vibra, quando discretamente ela o olha vê na tela “Minha Vida”, e quando ele atende, sua expressão não muda em nada. “Oi... sim... sim... mas você usou qual cartão? Você dividiu? Mas só 20 mil? Não... cancele a compra e pague em espécie. Se possível em dólar. Certo. Chego já. Amo você também”, e desligou. A refeição, servida em travessas finas de porcelana, parecia ainda poder servir outras três pessoas, a moça havia se servido com contido apetite, ainda assim sabia que muito iria para o lixo, ou quem sabe os garçons não permitissem isso passando as sobras para pratos vazios antes do destino final. A moça pensou em alguém e de repente seu apetite desvaneceu um pouco... logo cedo ela estava com essa pessoa e juntas comiam ovos fritos com pão... conversavam sobre a novela... e essa pessoa jamais imaginaria de onde vinham os últimos provimentos de suas necessidades básicas e de seus remédios. Mas tinha que ser assim, por enquanto. Só até terminar o curso. O que poderia ser arrependimento ainda era sobrevivência, ela sabia que ninguém entenderia, é muito fácil julgar, nos julgar é o que melhor fazem por nós quando não nos conhecem, ela pensava. “Não vou me condenar... ainda não...”, ela pensava, ainda assim não se conformava. Toda uma vida era retribuída de uma maneira que ela jamais imaginaria... e que talvez jamais esqueceria...

O quadro aparentemente perfeito que se pronunciava em frente ao casal de repente é invadido por uma figura que se contrastava como uma imagem fantasmagórica à paz sublime do ambiente reluzente, ornamentado com o que de melhor bom gosto há em sua decoração, uma figura minúscula, tímida, corajosa, era como se uma energia houvesse emanado de algum arbusto e dela surgisse a imagem que caminhava com passos apressados em direção à mesa do casal, o homem parou durante a ato de mastigar e seus olhos pareceram ter as pupilas dilatadas como se algum instinto o alertasse, e seus reflexos pareceram mais atentos.

O menino se aproximou da mesa com agilidade.

“Boa noite, o meu nome é Gerlan, prazer lhes conhecer! Eu sou mágico e vou fazê um truque pra vocês, e se vocês gostá, é só um pouco de comida me dá, num precisa nem ser dinheiro, desde já, eu lhes dou meu apreço... saibam que minha mágica, num tem preço! Mas qualquer moedinha... eu também agradeço!”, o menino era magro, descalço, as pernas cinzentas, as roupas visivelmente sujas, mas qualquer um saberia que aquela criança era vítima da cruel realidade a qual nos habituamos a viver e que quase sempre também nos habituamos a esquecer. Um mundo de contrastes. Ele era só mais um dentre tantos que àquela hora também faziam o que podiam pra saciar a fome a qual foram herdeiros legítimos. Seu número parecia ter sido ensaiado e ele segurava uma caixinha de papelão embrulhada com papel de presente. O homem na mesa estava imóvel, os lábios pareciam tremelicar, talheres na mão, ele olhava o garoto como alguém que olha um cadáver encontrado por acidente próximo a alguma moita. O menino continuou olhando por trás da mesa, parecia saber que era um intruso ali, que a qualquer momento seria retirado do lugar e não sabia de que forma seria, já havia apanhado em alguns lugares, quer dizer, em muitos lugares... “ Pra fazê meu truque eu vou ter a ajuda de meu amigo Ratulho-o garoto abriu a caixa de papelão que carregava e retirou um rato cinzento, parecia um rato de esgoto- ele é mágico também, talento ele tem! E ele é do bom, né Ratulho do Clima Bom?”, o garoto soltou o rato sobre o braço e ele subiu até seu ombro, um gabiru, ficou sobre as patas traseiras, enquanto essa cena acontecia, o homem olhava como que prestes a vomitar, ele olhou para trás como se à procura de alguém para o salvar, a moça olhava com olhos imóveis o menino raquítico e sujo como se olhando-o ela estivesse olhando alguém que já conhecesse... ela lembrou de algo que aprendeu a esquecer... lembrou do irmão morto pelo câncer aos 7 anos... ele também queria ser mágico, mas nunca voltou de seu último truque; fugir da ala vermelha. A moça olhava-o como se quisesse tocá-lo, mas como não podia, manteve-se observando-o com firmeza, como se o encorajasse a prosseguir.

O menino retirou um pequeno frasco da caixa, abriu a tampa e molhou o rato sobre o braço com algum líquido, puxou como um raio um isqueiro do bolso do calção e então... pôs fogo no rato... no Ratulho, que em chamas, correu sobre o braço do garoto que o passava de mão em mão, como malabares, o rato pegando fogo mais parecia como uma cena de filme de terror... só que a chama era azulada, e o rato parecia totalmente ileso ao fogo, a chama oscilava entre tons de verde, laranja, roxo, e logo o truque começou sob o olhar incrédulo da bela jovem e o olhar petrificado do homem gordo e ornamentado por tantas joias. Ratulho ficou parado sobre as patas traseiras na mão esquerda do garoto, que o ergueu à altura dos ombros.

Ele sacou de sua caixa uma corda e Ratulho se pôs a correr em chamas coloridas por ela fazendo acrobacias, o garoto o girava como se fosse um Iô-iô, o rato iluminava o chão como se fosse de brinquedo, mas olhá-lo levava a crer que realmente um animal estava em chamas, e a moça se perguntava em seu íntimo como o garoto podia fazer algo como aquilo, era realmente incrível e desnorteante ver algo naquele nível vindo das mãos de uma criança naquele triste estado, àquela hora, fazendo algo inacreditável em troca de algumas moedas ou quem sabe um pouco de comida... o menino então puxou de dentro da caixa um tecido que continha retalhos pendurados que formavam teias onde Ratulho ainda pegando fogo começou a executar a parte final do truque; ele queimou as pontas do retalho com suas chamas que incendiaram com um clarão antes de explodirem em fumaça com cheiro de incenso floral, e Ratulho crepitante, caminhando em direção à... boca do menino... que o... engole... e o casal consegue ver o clarão do rato em chamas descendo pela garganta do menino, até que seu ventre se ilumina e ele põe a caixa no chão, coloca a mão direita com a palma sobre a axila esquerda, a barriga acesa, e com um movimento de fricção executado pelo cotovelo esquerdo, emite o som típico da emissão de gases intestinais... “Pruuuumm!!”, e Ratulho é expulso e aparado pela mão do garoto por trás, ele já não está em chamas, é apenas um rato cinza daqueles que você vê por aí rodeando entradas de bueiros. O garoto sorri e se curva em agradecimento.

A moça está como que em transe olhando no fundo dos olhos negros da criança que estampa um sorriso como se dissesse a si mesmo que o número fora um sucesso, e realmente havia sido, ela está extremamente impressionada, ela vê com clareza aquele menino magro segurando um rato estendido pra eles que minutos antes desfrutavam dos sabores únicos que só o alto poder aquisitivo permite. As mãos dela estão rígidas, como se quisessem bater palmas, mas não batem. O homem faz menção de se levantar mas antes que isso acontecesse o segurança já o estava arrastando pelo braço, um puxão que por pouco não deslocou o ombro magro do garoto, ele o arrasta e fala algo em seu ouvido, ela vê que ele pede ao segurança pra buscar algo que havia esquecido. É a caixa no chão. O segurança volta, e quando se aproxima da mesa, o homem explode “Isso é um absurdo! Uma palhaçada! Eu pago caro pra ter segurança e olha só o que acontece... francamente... Eu conheço o dono disso aqui, e eu vou passar pra ele que a equipe dele é incompetente, que o meu dinheiro não compra o que eu quero nessa merda de empresa dele, será possível que não se pode ter sossego nessa cidade? Porra! Faça seu trabalho, tá entendendo?-ele aponta para o segurança que está com o coração acelerado pela proporção que o acontecido começava a tomar- me proteja, faça seu trabalho se ainda quiser ficar com ele... absurdo isso...”, e se sentou bufando como um touro que acaba de chifrar meia dúzia de homens e exausto pelos ferimentos à espada, respira fundo aguardando o que virá em seguida. Mas havia fúria, repulsa, quem sabe até mais que raiva... era quase ódio... “Garçom pode recolher tudo e me traga a conta por gentileza, rápido, e já me mande sem o serviço”, o homem põe os talheres sobre o prato com rispidez, eles fazem um som de sino. A moça está assustada, não conseguia ainda assimilar o ataque de nervos presenciado do homem de voz doce que só falava um pouco com ela quando se via em algum quarto a sós encoberto pela neblina de vários cigarros. Ela ainda se encontrava sobre efeito do impacto da apresentação magistral do pequeno excluído e com a indiferença brutal do homem que podia-se dizer, era seu patrão, ele a contratara...

O segurança retorna com a caixa e a devolve ao garoto, o conduz até a porta, se agacha e conversa algo com ele, o garoto acena afirmativamente com a cabeça, enrola a camisa com a mão por baixo dela, enquanto fala e sorri como se não estivesse frio... como se ele tivesse acabado de desfrutar de um bom lanche com seus pais, como se o que ele acabara de viver não tivesse sido trágico... O segurança retira uma cédula do bolso e o entrega, e o empurra calçada acima. E o garoto antes de sumir de vista olha para a mesa, seus olhos encontram o da garota. Ele está segurando a caixa, alisa algo que se move dentro dela. Ele sorri. E então some...

Naquela madrugada, após ser deixada por um carro de luxo na esquina de casa, com algumas cédulas em sua carteira cor de rosa, aconchegada por um casaco de pele que havia recebido de presente de alguém que por ela nada sentia, ela refletia se um banho de verdade tiraria dela a sujeira em que havia se espojado por falta de verdadeiras opções diante do que ela via como possibilidades, o cheiro do homem parece impregná-la... ela sente aversão pelo cheiro. Enquanto caminha em direção à sua casa, a casa onde sua mãe dorme o sono dos justos, tranquila pois no momento nada lhe falta (os trabalhos da filha como recepcionista de eventos as estavam salvando) ela sente o vento frio tocar-lhe o rosto e a lembrança recente das últimas duas horas na suíte de luxo do motel são sobrepujadas pela imagem daquele garoto com aquele rato executando aquele número incrível à troco de nada... de nada. Ele poderia até ter agradecido se nada fosse lhe oferecido. O que ele recebesse seria justo, seria limpo, ele teria merecido... Merecimento... mas será que ela merecia o que vinha recebendo? Ela não se sentia limpa... por mais que soubesse que amar também mancha as mãos... ela só havia sido acuada... e acuada vendeu o que não tinha preço... ela era como aquele rato em chamas... sim... aquilo havia sido simbólico para ela, pois ela soube quando aquele garoto a olhou pela última vez antes de sumir que nada seria mais importante do que a justiça para consigo mesma, a mágica do garoto não tinha preço... assim como o valor que somente nós podemos nos dar... o valor dela... para com ela...

E ela soube que precisava mudar... mas já havia mudado... dignidade, se encontrava até num rato...

Edgar Lins
Enviado por Edgar Lins em 05/10/2017
Reeditado em 25/10/2017
Código do texto: T6133841
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2017. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.