Violência

Nunca perdoei o pai por aquela violência que ele fazia com a gente.

De vez em quando, depois de um dia exaustivo de trabalho, reunia todos nós em volta da mesa e iniciava aquela conversa. Mistura de ensinamento com ameaça. Nem sei explicar. Só sei que ele ia falando e a gente se borrando de medo, faltava pouco pra fazer xixi e cocô na calça. Pai tinha este poder. Não precisava gritar, nem rosnar palavrão. Falava sério e manso. Doído, talvez pelo homem que ele era e que um dia, a gente queria ser. Medo e respeito dominando todos nós, depois de cada palavra pronunciada.

Ameaçava. Dizia claramente o que ia fazer se nos “pegasse” em enrascada. Orientava para que cada um ficasse longe de confusão e se entrasse numa briga que "se" resolvesse lá mesmo na rua, pois caso chegasse em casa “apanhado” e chorando, levava outra surra. E a ameaça ia além. Deixava claro que não se importava de acabar numa cadeia ou dentro de um caixão se algo ruim acontecesse com a gente, pois era nosso pai e nos defenderia até o fim.

Que medo eu tinha. Chegava a sonhar com ele indo salvar nossa honra e voltando dentro de um caixão roxo ou saindo de casa algemado num carro de polícia. Tive raiva. Raiva das noites que acordei sobressaltado com esta visão. Minha mãe viúva, eu e meus irmãos órfãos, sobrevivendo da misericórdia dos outros. Raiva do remorso de saber que podia ser o culpado da desgraceira toda que ia assolar minha família. Sem duvidar nem um pouco de tudo o que pai prometia.

Um dia ele comprou uma garrucha. Tratou de esconder a arma muito bem escondida, mas quem é que pode com criança curiosa? Eu e meus irmãos não demoramos descobrir o local do esconderijo. E aí sim, com mais medo ficamos. Não bastasse a honradez e coragem de nosso pai, agora ele tinha o instrumento. Ficamos olhando para a arma de cano curto sem nenhuma vontade de segurar. Um olhando para o outro, certos de que, se a gente se metesse em desordem, pai resolveria mesmo do seu jeito e estava até treinando pra isso. Muitas vezes, acordamos no meio da noite com os tiros da garrucha espantando onça, raposa, ou qualquer outro bicho que pudesse comprometer nossa segurança ao rondar nossa casa, situada no meio do nada.

Cresci ressentido por aquele medo . Olhos arregalados diante de cada intimidação que ele fazia e digo que este pavor me acompanhou até o dia em que ele partiu. Eu, homem feito, amedrontado diante das atitudes de meu pai.

E então, chegou minha vez de constituir família. Os filhos nasceram e eu conheci o amor mais desmedido que existe. Conforme eles iam crescendo eu orientava a caminharem por linhas certas, usarem de malícia para se defenderem do mal que vive rondando cada homem e mulher de bem que habita este mundo. Embevecido diante daquelas três criaturinhas que eu e a esposa tínhamos gerado, eu me perguntava o que seria capaz de fazer se alguém ferisse um daqueles amores. Por certo que resolveria do meu jeito, podendo até acabar numa cadeia ou dentro de um caixão roxo.Ah, se eu tivesse ao menos, uma garrucha.

Lucia Rodrigues
Enviado por Lucia Rodrigues em 07/10/2017
Reeditado em 16/10/2017
Código do texto: T6135976
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