MORTO VIVO (Cap. 8)

Desde a morte de Kauê nada mais fora o mesmo na pequena cidade litorânea onde viviam. Quando Luana acordou no dia seguinte encontrou a mãe do lado de fora da casa. Havia algo estranho acontecendo. Pela janela observou um agrupamento de vizinhos, todos com expressões assustadas. Alice estava entre eles e partilhava da mesma cara de assombro. Luana sentiu o coração disparar. Talvez tivesse relação com Kauê.

Luana decidiu juntar–se a eles. Com as pernas pesadas, caminhou em direção da mãe, pressentindo o pior. Por todo o lado havia sujeira e lixo espalhado. A rua onde morava estava inteira daquele jeito. Parecia que um vendaval havia passado por ali e levado todo o conteúdo das lixeiras por diante.

– Mãe... – sussurrou ela, tapando o nariz. O cheiro de sujeira e podridão era forte. – O que está acontecendo aqui?

Alice se voltou para a filha com o semblante tenso. Trazia um lenço no nariz e a pegou pelo braço, afastando–se assim dos vizinhos.

– Não sabemos, Lu. Alguém passou pelas ruas da cidade espalhando toda esta sujeira que você está vendo.

– Alguém quem? Já sabem alguma coisa? – Luana puxou a camisa para cima para não sentir o forte cheiro.

– Não se sabe. Acham que é gente de fora.

– Mas mãe... que cheiro é este? Lixo não fede tanto assim!

Alice apontou mais adiante, onde alguns pedaços de jornal cobriam algo saliente.

– Está vendo aquilo lá? Alguns animais foram mortos esta noite. Animais de estimação foram retirados de casa e mortos no meio da rua. Há partes faltando. É como... – Alice fez uma pausa como se aquilo fosse demais para ela repetir, – tivessem sido devorados.

O estômago de Luana deu voltas.

– Meu Deus, mãe! Devorados? Que maldade!

Alice estremeceu.

– Não acredito que estas coisas estejam acontecendo aqui na nossa cidade!

Cada vez mais chegavam relatos de animais mortos encontrados pela cidade. Um clima de medo se instalou entre as pessoas e a escola não funcionou. A polícia pediu ajuda para as cidades vizinhas, pois se temia que algum psicopata estivesse circulando pela região. O fato de o corpo de Kauê ter sido levado aumentava a possibilidade de que alguém estivesse escondido, aguardando a vez de atacar. A cidade ficou vazia. Muita gente preferiu ficar dentro de casa esperando o desenrolar dos fatos.

Sem que a mãe visse, Micaela saiu escondida de casa. Um bolo havia se formado na garganta. A garota não havia dormido desde que Kauê fora embora no meio da madrugada e sabia muito bem que ele havia sido a causa da desordem na cidade. Meu Deus, o que eu fiz?, perguntou–se ela várias vezes enquanto seguia, devastada, pelas ruas vazias da cidade. Os lixeiros, usando máscaras, recolhiam o lixo e os restos dos animais e Micaela usou um lenço no nariz para conseguir chegar ao seu destino. Precisava de ajuda. Não se sentia em condições de resolver aquilo sozinha.

Quando Alice abriu a porta e se deparou com Micaela, fez uma careta de total desagrado. Não bastava toda a desgraceira que estava acontecendo e aquela menina petulante ainda tinha a cara de pau de aparecer na sua porta?

– O que você quer?

– Preciso falar com a Luana – disse Micaela com a voz sumida.

– Você é muito cara de pau.

– Alice, por favor – Micaela era a imagem do sofrimento. – É importante. Do interesse dela também.

Alice encarou Micaela por alguns segundos e grunhiu:

– Espere aí. Vou saber se Luana está disposta a olhar para sua cara.

A porta se fechou com um estrondo sobre Micaela e a jovem estremeceu. Aos poucos o fedor desaparecia à medida que as equipes removiam o lixo.

“Tudo minha culpa. Por que não deixei Kauê descansar em paz?”

Luana abriu a porta com força, os olhos frios e cansados. Não parecia nem um pouco a fim de conversar com alguém, muito menos com Micaela.

– O que você quer?

– Luana, por favor. Precisamos conversar.

– Conversar o quê? – Luana se sentia cansada, abalada e com uma enorme vontade de chorar. – Já não basta ontem?

– Por favor, Luana – Micaela implorou. – É sobre o Kauê.

Luana sentiu os pelos dos braços se arrepiarem. Pálida, fechou a porta atrás de si e levou Micaela até a frente do portão, na calçada. Paradas frente a frente, Luana perguntou, nauseada:

– Encontraram o corpo?

Micaela engoliu em seco.

– Eu… eu falei com ele esta madrugada.

Luana chegou a recuar um passo. Depois se deu conta que Micaela só podia estar sob efeito de forte emoção para revelar uma coisa daquelas.

– Você bebeu?

Micaela pôs a mão no braço de Luana como se precisasse de um apoio para poder confessar o que havia feito.

– Eu… eu…

As palavras não saiam e Luana aguardou, nervosamente, que Micaela conseguisse falar alguma coisa.

– Você conhece a bruxa?

– A bruxa? Aquela senhora magrinha, bem velha, e que dizem que…

– Esta mesma – os olhos de Micaela estavam esbugalhados. – Você já ouviu falar dela, então?

– Claro. Todo mundo sabe o que ela faz.

Micaela respirou fundo. Luana a encarava sem entender nada.

– O que ela tem a ver com Kauê?

– No dia que ele morreu – Micaela começou a falar sem saber se conseguiria terminar a frase, – eu fui até a casa dela depois do enterro.

Luana se arrepiou. Os dedos gelados de Micaela no seu braço tornavam tudo ainda pior.

– Fazer o quê?

– Fui pedir a ela que trouxesse Kauê de volta. Ela me devia um favor.

Luana cobriu o rosto com as mãos e ficou assim por alguns segundos. Depois, quando olhou novamente para Micaela estava tão pálida que parecia que iria desmaiar a qualquer momento.

– Meu Deus... E…

– E ela topou. Mas me avisou que Kauê poderia voltar diferente do que havia sido em vida – Micaela deixou escapar um soluço. – Mas eu não dei bola para isto. Eu só queria que ele voltasse! Só isso!

Mal sentindo as pernas, Luana se viu obrigada a sentar no meio fio da calçada.

– Espere um pouco. Então... – ela fechou os olhos. – não houve violação de sepultura?

Micaela se agachou e ficou na altura do rosto de Luana. Revelou:

– Não. Ele saiu sozinho graças ao feitiço.

– Onde... onde ele está agora?

Luana não queria acreditar que aquilo era possível, mas tudo se encaixava. Kauê andava solto por aí, vagando, sem destino.

– Ele apareceu na minha casa esta madrugada – foi a vez de Micaela cobrir o rosto em desespero. – Kauê não é o mesmo, a bruxa me alertou para isto. Luana... ele está machucado, triste... Não queria ter voltado.

– Não sei se quero ouvir tudo.

– Me ajude, por favor! Ele estava com fome e saiu desarvorado da minha casa e matou todos estes bichos, espalhou toda a sujeira! Não sei o que fazer agora! Estou arrependida, Luana!

– O que ele disse a você? – a expressão de Luana era terrível.

– Que não queria ter voltado – Micaela confessou em voz baixa. – Ele pegou a onda perfeita, acho que acredita que cumpriu sua missão. Kauê está sofrendo e eu sou a causa. Luana, me ajude a fazer alguma coisa! Kauê está vagando por aí e não sabemos o que ele poderá fazer. Sei que ele irá procurar você em algum momento, por isto é melhor que esteja preparada!

– Vamos até a bruxa! – Luana deu um salto e ficou em pé. – Ela deverá dizer o que fazer para quebrar este feitiço maldito!

As duas jovens saíram em disparada em direção à casa da bruxa. O estado das ruas era lamentável. Era preciso deter Kauê antes que algo muito ruim acontecesse. Com o sol escaldante, o cheiro do lixo e dos animais mortos que ainda não tinham sido recolhidos era de causar náuseas. Mas à medida que se aproximavam da casa da bruxa, o ar ficou mais respirável. Um pouco antes de avistarem o local, Luana destapou o nariz e parou por alguns instantes.

– Meu Deus, que estrago o Kauê fez... – a garota respirou fundo e se apoiou nos joelhos para descansar. O estresse estava lhe deixando exausta.

Com Micaela não era diferente. O enjoo que sentia desde que fora falar com Luana pelo menos havia passado. De longe era possível ouvir o som das ondas e pelo menos isso a acalmou um pouco.

– Você está bem? – perguntou Luana quando percebeu que Micaela estava pálida.

– Sim. Acho que sim – murmurou ela. Apontou para frente e reparou que seu dedo estava trêmulo. – A casa dela fica depois daquela duna. Estamos próximas.

– Tudo bem – Luana respirou fundo. – Ainda bem que estamos chegando. Vamos.

Micaela se esforçou para acompanhar Luana e no final do trajeto ambas

já caminhavam bem lentamente.

– Está lá – Micaela apontou para a casa simples, esperando que a qualquer momento o cachorro aparecesse para saudá–las. Naquela, manhã, no entanto, os temores de Micaela iam muito além de um cão genioso. Ela avançou com passos decididos, seguida por Luana. Um aroma gostoso de comida saía da casa, cujas janelas estavam abertas.

– Ela está em casa, graças a Deus – murmurou Luana, preparando–se para bater na porta. Porém, antes que isto acontecesse, uma voz vinda lá de dentro disse:

– Podem entrar.

Micaela e Luana se encararam, atônitas. Micaela empurrou a porta devagar e Luana olhou por cima do seu ombro. A senhora estava sentada na sua cadeira, com o gato no colo. Quando deparou–se com as duas garotas paradas na porta da sua casa, sorriu, mansamente, acariciando o bicho.

– Entrem – repetiu ela. – Eu sabia que vocês viriam me visitar.

Tímidas, mas determinadas a resolver a situação de vez, Luana e Micaela sentaram em um sofázinho velho, lado a lado.

– Ele voltou – afirmou a bruxa.

– Sim – Micaela sentia uma bola de angústia instalada na garganta. – Realmente... minha ideia foi péssima.

A bruxa não falou nada. Luana prosseguiu:

– Eu não o vi ainda, mas sei que ele voltou machucado e... esquisito.

Durante a madrugada espalhou lixo pela cidade e comeu alguns animais. A cidade está... horrível. Horrível mesmo – Luana soluçou. – Precisamos que ele pare com isto.

Micaela chegou mais para frente e chegou a tocar as mãos encarquilhadas da mulher.

– Por favor, tem que existir uma maneira deste feitiço ser quebrado. Eu estou tão arrependida! – a jovem chorou por alguns instantes. – Kauê está triste, machucado. Ele confessou que não queria ter voltado.

– Ele procurou você? – a mulher perguntou.

– Sim – Micaela confirmou balançando a cabeça e as lágrimas saltaram do seu rosto. – Kauê esteve em minha casa esta madrugada. Pensei que ele voltaria amoroso, agradecido... Mas foi tudo ao contrário. Kauê foi até mesmo agressivo comigo – fungou ela.

– Possivelmente ele voltará – afirmou a bruxa. – Kauê não tem para onde ir. Está desamparado, sozinho. Com raiva. Não sei quem ele visitará agora. Mas seja quem for, Kauê deve ser levado para o local onde morreu. Façam com que ele entre na água outra vez.

– Seria... como se ele fosse morrer novamente? – perguntou Luana, cautelosa.

– Exatamente isto. Não há outra maneira de Kauê voltar ao outro mundo senão morrendo como da primeira vez. Não adianta tentarem outra coisa. Só irá piorar. Rezem para que ele apareça para uma de vocês. Será trágico se Kauê resolver fazer alguma aparição para quem desconhece totalmente o que está acontecendo.

A bruxa levantou e o gato saltou do seu colo. O assunto estava encerrado. Luana e Micaela ficaram em pé também e se entreolharam.

– Muito obrigada, senhora – agradeceu Micaela ainda com os olhos arregalados. – Tenho esperança que Kauê vai voltar esta noite.

– Reze para que sim, antes que coisas piores aconteçam nesta cidade.

Luana se arrepiou e se despediu brevemente da bruxa. Micaela começou a chorar logo que se afastaram da casa da bruxa.

– Agora não adianta chorar – disse Luana, brava. – Você devia saber que estava mexendo com algo muito sério quando foi pedir para a bruxa fazer com que ele voltasse.

– Desculpe – murmurou ela, aos prantos. – Eu estava desesperada. Não pude me despedir de Kauê.

– Eu também não me despedi dele – Luana fez força para não chorar. – Quem sou eu para brincar com a vida e a morte?

– Não conversava com o Kauê desde que ele me largou para ficar com você – Micaela fungou. – Este vazio que eu trago no peito agora virou um rombo. A única coisa que eu queria... puxa, eu só queria que ele voltasse e ficasse comigo para sempre.

Luana ficou em silêncio por alguns instantes, esperando que Micaela se acalmasse. Depois de um tempo retrucou:

– Nunca tive intenção de me intrometer no namoro de vocês. Eu tentei resistir às investidas do Kauê, mas não consegui. E ele me garantiu que tudo já havia terminado.

Micaela balançou a cabeça como aquilo não importasse mais agora.

– O que vamos fazer? Procurar por Kauê pela cidade? Estou tão perdida!

– Não – Luana disse, firmemente. – Eu sei que ele vai voltar. Vamos para minha casa e esperar lá. Acho que Kauê vai aparecer novamente só de madrugada.

– Tudo bem – Micaela assentiu. – Não vou descansar enquanto este assunto não for resovido.

– Nem eu – suspirou Luana – Que Deus nos ajude.

Patrícia da Fonseca
Enviado por Patrícia da Fonseca em 02/11/2017
Reeditado em 02/11/2017
Código do texto: T6159981
Classificação de conteúdo: seguro