Eu, Mainha e Nietzsche

Enfeitando a árvore de natal com mainha, proseando coisas de gente adulto, eu disse para ela uma "cratera imensa, abismo profundo com quilômetros de distância separam a realidade da verdade interior, da fachada externa da casa em que reside a alma. Sobretudo, porque subjetividades não podem ser mensuradas, não são palpáveis, mas sentidas em ações voluntariosas."

Ela retrucou dizendo que "de agora em diante, até 23 horas e 59min e 58s do dia 31 deste mês, do céu choverá tempestades de humildes, simples, bons samaritanos, mecânicos consertando o Planeta, pés rapados, pedintes de votos, altruístas e mendigos natalinos. O Bom (ou mau) Velhinho e Jesus Cristo descerão do céu em carruagem de luz e entrarão nos lares do mundo inteiro; e a paz reinará na manjedoura do Menino Jesus. Natal, uva passa, leitoa e peru assados, munguzá, berimbau, insalubre, vestes brancas, aposentadoria, pedidos, pé de meia, sininhos, mal estar, alka seltzer, doril, caixa vazia com laços de fita, empanzinamento, sonrisal. Toda essa festa antes da virada de ano.

Segundo dia de janeiro de 2018. Calote, endividamento, IPTU, Pensão Alimentícia, material escolar, CPMF, falta de papel higiênico, perua para pagar, IPVA e a PQP. No restante do ano, ou melhor nos outros 357 dias, a indigestão dos diabos recolhe todos os comilões de carne de qualquer cor e os pecadores da gula, no aprisco do inferno...; para reaparecerem em dezembro. Ho, ho, ho, ho...; já fiz o meu presépio, com uma manjedoura de capim fedido, uns bichos bufando no cangote do Menino Jesus, três Reis Magros por causa da crise econômica e uma estrela lusco fusco no fundo; incrível como energia está o olho da cara! E você Recantista, como montou a manjada manjedoura?"

Por acaso, você leitor, leu alguma coisa escrita por ela? Gostou, estava de acordo com seu paladar? Nunca soube que era escritora. Minha mãe era esquisita e se escrevesse, como falava asnice, Deus me livre de ler os escritos dela. E digo como filho. Certa ocasião, contando estrelas, bateu no meu ombro e disse: "Um filho qualquer atinge a maioridade quando consome compulsivamente em nome, gasta os recursos financeiros dos pais e avós." Quanta imbecilidade de minha ex-mãe. Nunca fiz nada disto. Por mais e mais, gastar o quê? Vendia o almoço para comprar o que comer no jantar! Meu custo para ela e papai foi zero. Exato: ZERO e ela sabia de tal feito! É que esse povo antigo não dá o braço a torcer.

Naquele dia, não me lembro se foi ao cair da tarde ou de manhã no café cata-piolho matinal, retruquei: "Os deuses também apodrecem. E Deus morreu. Deus está morto. E nós o matamos."

- Tá sujando o cueiro e que mencionar Deus em nosso proseado, menino. Lave a boca com sabão antes de falar o nome do Pai Criador; o nosso Deus todo poderoso, seu fedido! Eu, nós matamos Deus; tem cabimento uma doidiça desta elevada ao cubo?

Depois do sermão, aproveitou que andava meio ressaqueada com meu pai e não deu outra: ela pegou a varinha de marmelo que não deformava, não soltava as tiras, não tinha cheiro e envernizada e descontou toda mágoa em meu lombo por ter falado tamanha besteira. Apanhei que nem boi no feijão. Fui para água com sal; mas bati o pé, dizendo que estava apanhando injustamente. E quem disse que uma capiau, ignorante, analfabeta, estúpida como ela, sabia quem foi o alemão doidão que escreveu a frase!

Coitada de minha mãe com sua santa estupidez em vida...; deve ter ido para o céu, pois dizem que quanto menos se sabe, proporcionalmente, menos pecado possui; afinal, não julga, não acusa, não critica, não fundamenta tese nenhuma. Pular a cerca, nem em sonhos! Mainha era uma daquelas pessoas da grota que por não saber nada de nada, muito sabia. Detestava política e a honesta politicagem do populismo praticada pelos políticos. Com ela, sim era sim; não era não. Emoção no momento oportuno para emoção; e razão, na ocasião propícia e cabível de razão. E fim de papo! Mainha desatava até nós em pingo de água.

Aproveito o ensejo, para acender uma vela para ela. Salve rainha, que mesmo com toda sua pujante carga de sabedoria às avessas, foi a mãe, mais mãe de todas as mães. Fique quietinha aí, que vou rezar um Padre nosso, com três Ave Maria também; e finalizar fazendo o sinal da cruz três vezes em seu louvor e glória em vida. Pode ser que dê certo e você mainha, venha ao mundo mais inteligente da próxima vez. Honestamente, a burrice chegou, estacou e nunca mais saiu de seu seio. Mas saiba todos, mainha era uma santa, uma senhora mãe para todos do bairro. E que imenso coração ela carregava no peito!

P.S.: Mainha saiu desta para uma pior, sem nunca saber quem foi que disse a frase. Peço encarecidamente que mantenha o silêncio...

Mutável Gambiarreiro
Enviado por Mutável Gambiarreiro em 02/12/2017
Reeditado em 03/12/2017
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