Desejo

O caminhão encostou logo depois do almoço. Um Chevrolet Brasil , parecido com aqueles que, em minha meninice, via meu pai contratar ao final da colheita da melancia. Altay e os outros começaram a carregar a mudança. Pouca coisa. As camas dos meninos, os colchões de mola. Uma cômoda. Volume maior, só das roupas, minhas e das crianças, que iam amarradas em trouxas de lençol. Parte do enxoval seguiria na arca de itaúba. A cama de casal, leito onde por anos me deitei para descansar o corpo e jamais adormeci pensamentos proibidos, ficaria. As revistas e os livros de romances arrebatadores seguiriam encobertos na mala de madeira.

Da varanda, como sempre tinha sido, dona Santa vigiava. Com pedaços de carne entre os poucos dentes, a boca lambuzada de gordura, acompanhava tudo. Os olhos acinzentados, atentos a cada movimento. Uma expressão de alívio iluminava o rosto sofrido da velha.

Não a culpava. Era mãe. Cuidava dos filhos. Zelava pela família. Nem sei a quem atribuir a causa de tudo aquilo. Durvalina, que me arranjara o casamento? A sogra conivente com o arranjo? Zé Maria enlouquecido? Eu? Altay? Não sei.

Quando tudo estava quase pronto, aproveitei a distração da velha com os dois netos e corri para o quarto. Parada junto à porta, lembrei as vivências naquele espaço em que eu e meu marido fomos cativos ,por tantos anos ,de emoções mais fortes do que nós. Recordei o dia em que levaram Zé Maria. Quase ouvi novamente, os gritos de dona Santa perante o filho que sentado numa poça de fezes e urina, comia os próprios dejetos. Altay ajudou no socorro. Conseguiu acalmar o irmão mais velho, conduziu Zé Maria até a ambulância. Tratou da internação no sanatório.

Foi ele quem confortou os sobrinhos assustados com a nova condição do pai e enxugou as lágrimas de dona Santa , que por dias, continuou recitando ladainhas infinitas, rogando a intercessão de santos impossíveis pela cura de meu marido ensandecido. Foi ele que , desde então, nunca mais procurou meus olhos.

Diante da cama vazia, fiquei pensando naquela história, errada desde o principio. O acerto de Durvalina para não me deixar solteira e desamparada. Os sinais da estranheza de meu marido. O primeiro encontro, quando ele apareceu acompanhado por Altay. Não poderia dar certo.

Em nenhum momento dona Santa perguntou por qual razão eu não levava a cama. Acho que ela sabia. Tinha vivido mais de trinta anos de casamento. Conhecia os meios que as mulheres utilizam para levar adiante uma união sem sentido. É possível que uma vez ou outra tenha presenciado um gesto, uma fala contida, outras coisas que o corpo diz, mesmo quando a gente quer esconder.

De longe, Durvalina continuava tomando para si o cuidado comigo e agora com as crianças. Quando soube da situação de Zé Maria , internado sem qualquer esperança de melhora, exigiu que eu retornasse para o sítio de onde eu tinha saído para casar. Arrependida decerto, por ter me juntado a um homem que conversava com as sombras e enxergava seres invisíveis nas paredes; escrevera: “Volte para a casa que é sua, minha irmã”.

Minha...

Meus? Só os filhos que eu levava e os sentimentos que nem que quisesse, conseguiria deixar pra trás.

Enlevada por meus pensamentos não percebi a presença de Altay que entrava no quarto.

-Vamos. –Ele disse estendendo as mãos. Olhando com a ternura da primeira vez,lá em casa, ao lado do irmão mais velho.

Desacostumada aos gestos de afeto, recuei. O medo de ser surpreendida por dona Santa ou as crianças me empurrou para longe. Altay se aproximou. Sonhei mais uma vez. Quando me abraçou tive a certeza de que algumas coisas não podem ser. Não sei quantos minutos permanecemos ali, naquela silenciosa declaração. Lá fora, o motorista buzinou. Saí apressada, deixando Altay perdido no meio do quarto.

Do lado de fora da casa, os outros aguardavam para as despedidas. As crianças acenavam sorrindo de dentro do caminhão. Dona Santa me entregou a aliança de Zé Maria . Parti abraçada aos filhos.

Lucia Rodrigues
Enviado por Lucia Rodrigues em 28/12/2017
Reeditado em 18/01/2018
Código do texto: T6210412
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