Tapa na cara

O tapa fez subir do nariz a ardência que ao preencher os olhos miúdos, quase se transformou em lágrimas. Gentil se percebeu no chão, a mochila atirada para um lado, a dignidade para outro. Ficou alguns segundos olhando para seu agressor, um menino com idade para ser seu filho.

Recuperado de parte do espanto, olhou ao redor, procurando espectadores para a cena . O tapa, o tombo. A posição vergonhosa lembrando um bebê que tenta engatinhar. Por sorte, a rua estava vazia. O trabalhador se sentou entre pedras, lixo e cocô de cachorro,sem compreender por quais razões não conseguia reagir. O menino o mirou por certo tempo, com um riso pequeno nos lábios . Depois, sem dizer nada, saiu fumando o cigarro que escapara da mochila no chão. Partiu a passos lentos, sem olhar para trás.

Gentil deslizou a mão calejada pelo rosto magro que já ardia mais do que o nariz. Pensou no sermão que ouvira na igreja, dois dias atrás. O amor ao próximo tinha sido o tema da homilia do domingo. Ali, igualado ao chão, se indagava a quem servia aquelas palavras bonitas sobre o “Reino de Deus e o mundo de irmãos”. Um cigarro era motivo o bastante para apanhar na rua, após um dia de labuta e humilhação?

A vontade de exigir reparação o dominou . Olhou para o amontoado de pedras portuguesas sobre a calçada. Escolheu as maiores. Se corresse um pouco, apanharia seu agressor antes que ele dobrasse a próxima esquina.

Bateria com força muito maior do que a empregada por seu pai , para espancá-lo quando criança . O vigor utilizado para carregar baldes de concreto nas obras em construção garantiriam golpes profundos. Só ia parar quando os miolos saltassem da cabeça de seu ofensor e o sangue manchasse o asfalto esburacado.

Quando se ergueu , viu que o menino que o agredira, ia longe. Homens e mulheres começavam a transitar pela via, até a pouco erma. Gentil notou que olhavam para ele como se não o distinguissem das pedras, do lixo, do cocô do asfalto ou das calçadas. Largou a pedra que tinha nas mãos e seguiu para casa de cabeça baixa. No trajeto coçou os olhos para ter a certeza de que não estava chorando.

Lucia Rodrigues
Enviado por Lucia Rodrigues em 05/01/2018
Reeditado em 10/01/2018
Código do texto: T6217222
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