Rua Bankton

- Eu acho que eles estão mortos, não estão respirando.

Sábado

"Olá, meu nome é Lys, e eu sou um dos corpos estirados na rua Bankton em frente à loja de discos. Sim, eu estou morta. Muito sangue aliás. O outro corpo se chama Thomas Canmore, um garoto de 23 anos que conheci ontem de manhã. E um dos principais motivos para estarmos mortos é um cartão de memória e um gato preto chamado Banana.

Sempre me disseram que os mortos não falam, e eu preferia que fosse realmente desse jeito mas é justamente depois que morremos que sentimos a enorme necessidade de falar tudo que pensamos e sentimos. Talvez Tom não me odiaria se tivesse feito isso hoje mais cedo.

Já imagino o que irá estampar as capas dos jornais de amanhã:

"Casal jovem morre após diversas discussões em frente a uma loja de discos que ninguém costuma frequentar por ser extremamente cara e desnecessária, mas eles precisavam ir para lugares diferentes para tentarem sentir alguma coisa."

Patético!

Morremos por puro azar. A loja de discos fica em uma rua com histórico de grande violência. Mulheres já foram mortas ali apenas por terem joias de pouco valor. Eu precisava sentir alguma coisa e decidi nesse sábado de manhã que seria perfeito dar uma passeio breve na rua Bankton. Passamos o dia inteiro indo de loja em loja, cumprimentando pessoas estranhas que vestiam verde. Nossa última parada foi a Macacos & Vinis, um prédio colorido que abria depois que anoitecia. E então veio o tiroteio e um homem com um chapéu preto nos apontou uma arma e pediu tudo o que tinhamos. Tom tinha apenas um cartão de memória, que depois descobri que seria um presente de namoro com todas as minhas músicas favoritas, e eu pedi que me deixassem viver para cuidar do meu gato. Eu não tenho gatos.

O ladrão não ficou convencido e atirou primeiro em mim e depois em Tom. Ele morreu primeiro e eu fiquei algumas horas na rua esperando por algum atendimento, que nunca veio.

Minha tia foi a primeira a saber. Correu em desespero para o local do tiroteio. Eu via ela chorar desesperada com as duas mãos no peito e não podia fazer nada a não ser olhar. Tia nunca acreditou em espíritos e ela nunca esteve tão errada.

A irmã de Tom apareceu logo depois. E então o espírito dele começou a chorar. Ela, ao contrário dele, estava apenas olhando. Nenhum sinal de tristeza ou qualquer outro sentimento aparente. Ficou alguns minutos e então voltou para casa.

Imediatamente Tom me culpou por tudo que aconteceu. Me disse que contamino todos ao meu redor por ser extremamente tóxica. E agradeceu pelo ladrão ter levado o cartão de memória pois ele não gostaria de ser aquele tipo de cara.

É estranho olhar de onde estou. Ver meu próprio corpo deixado para atrás após uma vida inteira deixando todos no passado. A tecnologia não funciona agora. E creio que ninguém gostaria de receber um email de um possível fantasma. É diferente da vida de Thomas. Ele era um líder carismático. Gentil e educado. Eu apenas pensei em mim na hora da morte. Inventei um gato com nome da primeira fruta que me veio a cabeça. Mas Tom queria salvar o que ele considerava mais precioso naquele momento: o cartão de memória.

Ele acabou aceitando o que aconteceu e agora seguiu o seu caminho. Eu apenas decidi escrever uma carta sobre o dia da minha morte e também o único dia da minha vida que pude sentir alguma coisa de verdade. Após 22 anos buscando algo que me despertasse sem sucesso acabei sendo vítima da minha própria consciência e vontade. Me enganei ao entrar da rua Bankton pois achei que sentiria algo próximo da adrenalina e aquilo me faria repensar na vida. Mas a verdade é que algo aqui dentro já estava desperto. Após tanto tempo deixando os outros no passado não pude ver o meu futuro. Na hora da minha morte pude entender que a primeira e única emoção que iria sentir era apenas o amor. Eu só queria poder ter sentido isso hoje mais cedo."

Annie Bitencourt
Enviado por Annie Bitencourt em 28/01/2018
Código do texto: T6238288
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