O QUE VEM COM A NOITE

Depois de um dia inteiro na praia, quando a noite chegou Laura estava extenuada. Na cama e naquele quarto em que nunca esteve rapidamente apagou.

Mas depois de algum tempo parecia que o seu cérebro estava lhe pregando uma peça, pois ela conseguia ver claramente a porta do quarto entreaberta, embora lembrava sim que havia fechado, tentou-se levantar mas o seu corpo estava totalmente imóvel, como se um elefante estivesse sentado em cima, não conseguia mover um músculo sequer, parecia que tinha recebido um raio paralisante, queria gritar mas era impossível, som algum saía da sua garganta. Lembrou-se quase instantaneamente que quando criança, dormindo ainda com os pais, uma situação muito parecida. Mas as lembranças eram tão distantes...

No seu quarto uma luz difusa, a cabeça totalmente virada em direção à porta, impossível divisar o que havia do outro lado, tudo envolto na penumbra, quereria ao menos fechar os olhos...

Foi então que uma sensação indescritível de pavor tomou conta do seu corpo, pois ela via claramente uma sombra lentamente se projetar pela entrada da porta, mas que por um breve instante se deteve, indecisa. Pelo contorno da silhueta tentou adivinhar em vão o que seria aquela criatura que se esgueirava.

Laura no seu corpo de pedra seria uma presa fácil. Sentiu os pelos do seu corpo eriçar.

Aquilo vai entrar e eu não vou poder fazer nada, pensou!

Pra sua infelicidade, aquilo entrou, sem pressa, passos calculados, subiu na sua cama num pulo só, sentiu que ajoelhou sobre si e logo em seguida percebeu sua respiração sôfrega, o peso daquele corpo oprimindo-a, não conseguia distinguir o que era aquilo, para o seu total horror, sentiu que aquela criatura foi introduzindo uma língua quente, pegajosa na sua boca imobilizada, os lábios encostados aos seus, roubando sua respiração, súbito, começou a beijar seu pescoço, sentiu que era o momento de novamente tentar gritar ao máximo para que Deus a acudisse, tanta força fez, que acordou de uma vez, sentou-se, no rosto um suor gélido, a porta aberta como no sonho. Mas nada daquele monstro inumano.

Passou o resto da madrugada acordada, tentando entender o que havia passado.

De manhã, ensaiou conversar com a mãe, mas impossível, a pousada, uma espécie de bangalô repleta de gente, muitos desconhecidos passaram a noite ali convidados pelos anfitriões.

Acompanhada da mãe, sentou-se para o desjejum, a mesa estava ocupada uma boa parte por homens, que não se sentiram nem um pouco tolhidos ao enfiarem os olhos nela, pasmos, com tanta beleza. E não era para menos quem quer que a notasse, não deixaria de admirar primeiro a boca, lábios carnudos, rubros, levemente rasgado nos cantos, só aí o privilegiado espectador se deteria no que ficou e o que ficou não era menos admirável, Laura tinha um rosto raro, exótico, invulgar. Tinha uma dessas belezas que depois de vistas ficam no subconsciente de qualquer um.

Mas naquele momento o rosto de Laura corava, a pele queimando, não conseguia encará-los, sentia sobre si os seus olhos malsãs, cobiçosos, quase que dava pra ouvir os seus cochichos indecorosos.

Sentiu-se mais segura quando seu pai chegou em seguida e sentou-se ao seu lado.

Ergueu a cabeça e procurou olhar com mais atenção todos os homens que estavam ali, no entanto, agora, além do olhar de luxúria que parecia comum a todos, nenhum olhar os parecia denunciar, tentou imaginar qual daqueles sentados ali ao redor da mesa havia conseguido entrar no seu quarto, mesmo jurando pra si mesma ter fechado a chave. Tinha certeza que não havia sonhado.

Tomou rapidamente o suco de laranja e saiu apressadamente para a praia, não queria ficar ali nem mais um minuto.

O seu estômago contraiu quando da lembrança do pesadelo, não gostaria de relacionar a memória do seu primeiro beijo a essa experiência traumática, quando pensou se sentiu pior ainda, tanto sonhara com o seu primeiro beijo...

Laura já estava prestes a completar quinze anos e ela achava que estava com um problema enquanto que algumas das suas colegas já tinham tido a sua primeira vez ela nunca havia experimentado se quer o gosto de um beijo, do primeiro beijo na boca, isso mesmo sendo considerada a garota mais bonita do colégio, quando assistia suas youtubers favoritas, tipo Kéfera e Dani Russo, ficava pra morrer de curiosidade e a ansiedade batia mais forte ainda.

Suas amigas por exemplo descreviam até os movimentos que conseguiam fazer com a língua dentro da boca dos parceiros. Laura ouvia atenta, quase não disfarçava o fascínio.

Olhava para o espelho e se amaldiçoava por ser tão bela. Pra que tudo isso? Suspirava...

Um dia não aguentou e confessou na mesa de jantar aos pais que queria sair dessa condição de ‘bv’.

- ‘Bv’ o que Laura?

- ‘Bv’ é boca virgem, mãe, é uma gíria pra aqueles que nunca beijaram.

-Ah nunca que eu ia saber, lá no interior do Paraná, o pai casava a gente cedo e o meu primeiro beijo mesmo acabou sendo com seu pai.

-Ahhh isso é mais informação do que eu gostaria de ter, mas aposto que a senhora deu seu primeiro beijo antes do que eu na minha idade.

-Realmente, puxando pela memória, acho que eu não tinha mais do que quinze anos...

-Olha aí tô ficando atrás até da minha própria mãe…

-Mas filha você também não pode beijar qualquer um!

-Mas ficar bv direto também não dá!

-Filha olha o seu porte...

Agora era Antônio o pai que interrompia a conversa da mãe e da filha.

-Você é a minha princesa, tão linda, sua mãe tem razão o piá tem que ser muito especial pra te beijar.

Antônio pegou a mão de Laura e continuou:

-Quando chegar a hora, você vai saber, filha minha não beija qualquer um. Quantas meninas não queriam estar no seu lugar, nascer com a sua beleza!

-E complementando o que seu pai disse: Lembre-se um dos motivos de termos vindo para cá, é que você tem uma chance real de virar modelo!

-Aff, e uma modelo não beija? Roubada falar um assunto desses com os pais. Finalizou Laura, quase arrependida da confissão.

Laura foi se lembrando desse último diálogo e raciocinou que quem sabe aquilo que havia acontecido com ela à noite não fora mais do que um sonho, um sonho horrível a bem da verdade, mas, não mais do que isso, talvez desejara tanto deixar de ser “Bv”, que o subconsciente dela provocou aquilo tudo, não é outra coisa pensou.

Ainda assim...

Todas as noites seguintes que ficou no litoral certificava-se de trancafiar completamente o quarto e não contente ainda arrastava uma cômoda velha até a entrada da porta. Mas mesmo o corpo cansado, a mente fervilhava, impossível de desligar.

De volta para casa

Só na primeira noite que a família voltou de maresias pra casa, é que Laura conseguiu dormir com a porta aberta, como o quarto ficava contíguo ao dos pais, seus temores dissiparam.

Deixou, no entanto, a luz do abajur acesa, relaxada, rapidamente pegou no sono.

A mesma experiência, de novo se repetindo, só que agora deitada de costas, seus olhos abertos, os músculos do corpo tesos, não conseguia acreditar que estava passando por tudo isso de novo, quereria acordar antes, no entanto, uma força descomunal mantinha-a presa ali.

Sentiu uma leve brisa entrar no quarto, passos firmes, resolutos em sua direção, percebeu que algo encostou ao lado, ouviu claramente o estalido da cama quando este subiu, em seguida como da outra vez ajoelhou-se sobre a sua cintura. Sentiu as lágrimas rolarem pela face, queria que sua mãe ou melhor ainda seu pai a socorresse, que a livrasse daquele monstro…

Por mais que os olhos estivessem abertos, uma luz branca incidia sobre os seus olhos, cegando-a.

Reuniu todas as suas forças e de novo tentou gritar ao máximo que podia, aquilo não aconteceria com ela, mas em vez de acordar como da vez inicial ela sentiu-se desfalecer. Não viu mais nada, um sono profundo, sem sonhos.

Quando finalmente acordou no outro dia a primeira coisa que fez foi ir mais do que depressa em frente ao espelho da cômoda se despir, gostava de dormir apenas com camiseta e uma calcinha de algodão por baixo, retirou-os rapidamente e procurou sinais do que ela jurava de novo ter acontecido. Virou o pescoço de um lado para o outro, examinou os seios, depois apalpou o ventre, ao percorrer com o dedo a entrada da vagina, sentiu um ardor que ela nunca havia sentido antes. Uma sensação de pânico crescente foi se apoderando, a tentativa de entender algo que não fazia sentido, não tinha explicação.

Com uma toalha em volta do corpo acordou os pais que ainda dormitavam aos gritos, quase não conseguia contar o seu pesadelo, pra ela tão real, soluçava como quando era criança.

O pai nem esperou Laura acabar de contar e foi direto às entradas da casa à procura de algum sinal de arrombamento, algo que confirmasse o que a filha dissera, embora ele tivesse certeza que ninguém tivesse conseguido entrar pois a casa tinha sistema de alarme.

-Querida ninguém de fora entrou no seu quarto! Disse o pai voltando da inspeção.

-Isso só pode ter sido um sonho! Um pesadelo! Assentiu a mãe.

-Mas aquilo que aconteceu na praia, mãezinha foi a mesma coisa! Lembra-se, eu lhe contei! Parece uma assombração, não quero viver isso de novo, nunca mais, nunca mais...

-Foi... Tão real assim? Perguntou Antônio. Não me contaram que havia acontecido isso na praia.

-Sim aconteceu, mas eu consegui acordar antes...Mas agora não consegui, fico com a impressão que esse ser nojento me teve, eu apaguei, não vi mais nada, de algum jeito essa criatura conseguiu ser mais forte, não consegui despertar...

-Filha não se culpe, nada aconteceu...

-E essa dor aqui? Apontou para o meio das pernas. Qual a explicação pra essa dor meu Deus?

-Essa dor é psicológica filha, pode ter certeza. Afirmou com persuasão o pai.

-...Muita pressão na sua cabeça, uma vida nova aqui em São Paulo, colégio novo, uma oportunidade de ser modelo, isso mexe muita com a cabeça da pessoa...Continuou a mãe

A mãe e o pai iam alternadamente concluindo as frases um do outro.

-Tão dizendo que eu tô ficando louca, é isso?

-Não é isso a pressão acaba com a cabeça de qualquer pessoa...

-Não seria melhor marcar uma consulta com um psicólogo? Sugeriu a mãe.

-Acho melhor não, essas bobagens modernas, nada resolvem, o tempo é o melhor remédio pra tudo nessa vida! Concluiu o pai.

Nas noites seguintes foi um custo Laura adormecer, e quando o sono vinha era em intervalos curtos e muitas vezes com gritos assustadores entre eles.

A mãe achou melhor que a filha convidasse algumas das suas colegas de escola para dormirem com ela, sem contudo revelar-lhes a verdade e a princípio a ideia funcionou, mas quando ela voltava a dormir só, de novo era um custo pegar no sono e só dormia depois de certificar-se pela milésima vez que a porta estava hermeticamente fechada.

Laura havia desenvolvido depois uma teoria de que algo naquela praia em Maresias, um ser sem nome, uma criatura extraterrena tentara dominá-la e como não conseguira nada, seguiu sua família de volta para São Paulo e já na primeira noite...Nessa parte ela sentia um calafrio, não ousava imaginar o que havia acontecido, sentia um asco, o estômago chegava a contrair, não queria pensar naquilo mas o seu cérebro não a deixava em paz. Achou que talvez fosse enlouquecer.

Tentou fazer inclusive uso de potentes remédios para dormir, mas os efeitos no dia seguinte eram piores pois parecia que quando usava alguns desses tranquilizantes dava a impressão que aquela criatura visitava-a de noite, mas talvez fosse apenas seu pai verificando se ela, Laura, havia adormecido.

Parece que nada dirimiria aquela situação.

Mas como diz o ditado português: "Não há bem que sempre dure, nem mal que nunca se acabe..."

Um acidente bobo

Antônio o pai, trabalhava como mestre-de-obras, num belo dia de manhã, quando foi averiguar o andamento de uma obra que havia pego lá pros lados de Jaçanã, num prédio a ser reformado, no lugar onde deveria estar um dos elevadores que estava em manutenção Antônio percebeu uma fumaça subindo do poço do elevador, inclinou um pouco a cabeça pra ver se tinha sinal de fogo, foi quando se desequilibrou e caiu, uma queda longa, pois estava no oitavo andar do prédio. Foi um custo o resgate dos bombeiros, quando finalmente conseguiram retirá-lo, o corpo já estava praticamente irreconhecível.

O choque foi terrível pra Laura, o seu pai era o esteio da sua vida.

Não existe cerimônia pior no mundo do que um velório, ainda mais da pessoa que você ama. Mas há algo tão ruim quanto isso; é a volta pra casa, a ausência perpétua daquele ente querido falecido cala fundo na alma da gente.

E na primeira noite de volta em casa, agora só com a sua mãe, Laura estava tão aérea, pensando em tudo e em nada ao mesmo tempo que quando foi dormir nem se lembrou de fechar a porta do quarto.

Confabulou consigo mesma que talvez o pai tenha enfim encontrado a criatura dos seus sonhos e na luta entre os dois, ele acabara perdendo a vida. Pode muito bem ter sido isso, pensou. Seu pai morreu, mas levou para sempre consigo aquele monstro terrível.

Achou que não pegaria no sono fácil, mas rapidamente o sono a encontrou e foi um sono tão tranquilo, tão reparador, nunca se sentiu tão segura na vida, sem monstros, sem receios, sem medo.

NÁSSER AVLIS
Enviado por NÁSSER AVLIS em 23/02/2018
Reeditado em 19/11/2018
Código do texto: T6262510
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