Noite de Chuva

A pedido, republico este conto, em três capítulos.

NOITE DE CHUVA

Capítulo I

- O tempo não está para brincadeiras, comentou Ciro – o céu parece que vai vazar, todo de uma vez!

- Que escuridão medonha! – notou Aline e depois suspirou aliviada:

- Graças a Deus estamos todos bem abrigados.

O rapaz deu alguns passos afastando-se da ampla janela da sala de aula. Aproximou-se dos colegas que, distraídos, conversavam, riam ou comentavam a tempestade que se anunciava.

Dentro em pouco um vento forte passou a sacudir as árvores do pátio de estacionamento da Universidade. Logo a chuva pesada, uma verdadeira cortina, caia ofuscando a luz dos postes e dos faróis dos carros que chegavam.

Aos poucos o silêncio foi tomando conta dos estudantes. Alguns já demonstravam preocupação, consultando seguidamente seus relógios. A mestra se atrasava.

Aline aproximou-se de Ciro e falou:

- Eu acho que dona Mercedes está em apuros. Guiar à noite por estas estradas e ainda mais neste temporal...

- Não, disse o rapaz para aliviá-la, não devemos pensar o pior. Naturalmente ela terá que diminuir, e muito, a marcha do carro... Mas logo estará aí, você vai ver.

Um dos rapazes levantou-se e caminhou até a porta. Lançou o olhar ao longo do corredor mal iluminado, na direção da escada e, voltando-se para os colegas, levantou os ombros, abriu as mãos e murmurou decepcionado:

- Nada! Nem viva alma! – e tornou ao seu lugar.

Passado algum tempo escutaram passos apressados, saltos ecoando nos ladrilhos de cerâmica.

A professora, toda molhada, esbaforida, irrompe na sala. Vem lívida! Segura contra o peito a sua bolsa de couro e alguns livros.

Ante os olhos surpresos da classe, caminha até a sua mesa onde larga os seus pertences, atira-se à sua cadeira e cobrindo o rosto com as mãos, põe-se a soluçar. De imediato os alunos a cercam. Querem saber o motivo de tanto pranto.

Ciro sai correndo da sala e logo volta trazendo um copo d’água. Dona Mercedes, com as mãos tremulas, segura o copo oferecido e vai, aos poucos sorvendo a água e se recompondo.

Lá fora a chuva continua forte e ruidosa. Um raio ilumina nuvens pesadas e em seguida o trovão, como num rasgar de mortalhas, parece abalar o prédio e os estudantes.

Dona Mercedes, mais controlada, levanta a cabeça. Tem ainda a face extremamente pálida; seus lábios tremem e seus olhos assustados, voltam-se para a porta, parecem buscar alguém. Depois, como despertando de um pesadelo, fita a classe que aos poucos foi se organizando. Os alunos de volta aos seus lugares ficam em expectativa. Ciro, preocupado com o aspecto ainda desfigurado da professora, sugere um adiamento da aula.

- Não... Não será necessário – gagueja dona Mercedes – eu já estou melhor, mas devo contar o que me assustou tanto e porque cheguei atrasada. Não sei, de fato, se conseguirei dar a minha aula, mas devo-lhes uma explicação.

Como que estremecendo por um forte arrepio, ela continua:

- Sai, como todas as noites, às oito horas do meu apartamento e enfrentei o trânsito, que estava nervoso por causa do tempo que ameaçava tempestade. Na saída da cidade a fila dos carros foi diminuindo e logo eu viajava sozinha pela estrada. De vez em quando um raio riscava o céu e o trovão explodia. Eu queria chegar à universidade antes do temporal. Vinha nervosa também porque os engarrafamentos haviam me atrasado muito. Ao contornar o cruzeiro, em frente do cemitério, os primeiros pingos de chuva começaram a cair, riscando o vidro do carro. Procurando não errar o caminho, lancei os olhos ao redor da praça escurecida e, de repente, os faróis do carro iluminaram os troncos das algarobas. Pareceu-me vislumbrar escondido nas sombras das árvores, um vulto encapuzado. A chuva já me atrapalhava a visão. Intrigada e um tanto assustada com o que havia visto procurei enxergar novamente, pelo espelho retrovisor, a estranha criatura. Nada! Apenas a escuridão.

Angustiada, Dona Mercedes para de falar, retorce as mãos. A classe, em silêncio, a motiva a continuar:

- A chuva, agora caía pesada. Liguei o limpador de pára-brisa. O chap-toc, chap-toc daquelas varetas, a esfregarem-se no vidro, parecia bater juntamente com o meu coração; aquela figura estranha havia, de fato, me assustado. Uma sensação esquisita foi tomando conta de mim! A minha mente começou a dar formas detalhadas à pessoa encapuzada. Imaginava suas feições, sua face esverdeada, como a de um cadáver. Eu sabia que estava sendo motivada pelo momento, pela tempestade e principalmente pelo local onde a havia avistado: em frente do cemitério! Talvez fosse um coitado, com um saco de estopa na cabeça, aguardando o ônibus. Mas não, o meu medo desmentia, refutava estes argumentos. Eu o vira, sim, muito bem! Mesmo daquela distância, mesmo na escuridão, quando os faróis o haviam iluminado. Eu percebera, muito bem, a sua forma fantasmagórica, ali parada, propositadamente meio escondida... Posso agora lembrar de ter percebido, na sombra escura de seus olhos, dois pontos de luz que me fitavam. Frios, maldosos!

Ante a classe hipnotizada pelos detalhes da narração, Dona Mercedes parou de falar e lançou o olhar amedrontado para a porta; depois, baixando a voz, continuou:

- Passei a sentir dor no estômago, ao mesmo tempo em que um suor pegajoso empapava minhas mãos a deslizarem no volante. Para afastar aquela visão absurda, liguei o rádio; uma voz soturna anunciou:

- Vamos ouvir, agora, o drama “A mansão sinistra”... E uma música arrepiante se fez ouvir, como prenuncio.

- Desliguei o som e para aliviar o horror que me assaltava, abri a janela do carro, deixando que a chuva entrasse; para ela inclinei a cabeça, molhando o rosto, procurando despertar daquele pesadelo. Mas “ele”, o encapuzado – eu o sentia! – estava lá, do meu lado, nas minhas costas, preso ao teto, metido nas brechas, desfeito no ar que eu respirava! “Ele” estava lá, em mim, na minha pele, que se arrepiava com a sua presença.

Amanhã tem mais. Coitados dos leitores!

Christina Cabral
Enviado por Christina Cabral em 29/08/2007
Código do texto: T629377