A noiva do general

Em tempos de marchas ensandecidas, fogo e estilhaços, Emília pensava no general. Naqueles dias de junho, a lembrança do homem de farda impecável e botas reluzentes se fazia ainda mais presente.Inalando a fumaça que entrava pelas frestas da janela,recordou a primeira vez que se deparou com o patrão. Era um dos almoços do domingo. Cercado de parentes, amigos e subalternos, ele discursava sobre o país de ordem e progresso que ele e as forças armadas estavam construindo.

Não entendeu aquele palavreado bonito e ao mesmo tempo assustador e enigmático.Achou mesmo que ele falava de um outro lugar,uma terra bem distante que ela desconhecia.

A partir daquele dia,passou a espiá-lo, escondida atrás de portas e paredes.Uma vontade de rir e chorar frente aquela presença de cumprimentos que pareciam continências.

Com o tempo ela se acostumou com a vontade de fazer xixi e chorar na frente do militar. Quase até o fim, receou ser pisoteada pelas botas lustradas ou aniquilada pela alegria que ele alimentava com o medo dos oponentes. Agradeceu quando os sussurros acerca de decretos e desaparecidos, porões e exilados, deixaram de ser a causa de seus pesadelos.

Um dia, o general voltou mais cedo para casa. Encontrou o sobrado vazio.A esposa tinha viajado com os filhos, genros e noras, sem avisar. Quase tropeçou em Emília que, de joelho, encerava o assoalho do terraço. Olhou para ela longos minutos. Deteve-se nas tranças que prendiam os cabelos crespos da menina. Examinou o uniforme surrado que cobria a pele escura e maltratada.

-Fique em pé, menina. - ordenou.

Ela obedeceu. Os olhos arregalados, procurando o banheiro mais perto.

-O que você faz pra ajudar nosso país?

Sem compreender a pergunta, ela baixou a cabeça.Quando cansou de esperar a resposta, ele sacudiu a cabeça e foi para o quarto. Emília se abaixou para continuar o serviço ,destino que tinha sido de sua mãe, suas tias, sua avó.

O general partiu sem se despedir da família. Voltou para casa no mesmo período em que os jornais davam notícias de um país de expatriados de toda sorte. Calçava botas opacas e de passos incertos. O discurso de domingo soava, permeado de interrogações, em voz baixa e hesitante. Falou de justiça e ouviu o riso estridente dos familiares.

Quando sua aposentadoria foi antecipada, os amigos já tinham se afastado e os subordinados não existiam mais. Isolou-se num dos cômodos do sobrado, longe da família e do país que ele dizia ter ajudado a construir.

Esquecido no cubículo do andar térreo do sobrado, sua única visita era Emília, que entrava para fazer a limpeza ou levar a comida. Ficava olhando para o homem grande e pequeno que fazia perguntas

absurdas.

"Por que você não está na escola?"

"Onde está sua família?"

Morreu numa tarde qualquer, destinando à Emília o apartamento da Alameda dos Sonhos e um pedido de desculpas.

Décadas passadas,a antiga empregada desejava que o general estivesse ali e restabelecesse a ordem. Arrependeu-se. Entendeu o pedido de desculpas naquele último momento. Não soube estimar se o preço pago por ele, por acreditar na nação de seus ideais, tinha sido alto demais.

Lucia Rodrigues
Enviado por Lucia Rodrigues em 07/04/2018
Código do texto: T6302530
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2018. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.