O faqueiro de Marta

Marta não chegara àquele estágio da vida sem muito ralar. Verdade que já nascera em berço argênteo e que tanto o marido quanto ela, além laboriosos, centrados e dotados de ousado espírito empresarial haviam-se mudado para uma Brasília nascente, onde tudo era novidade, e mais ainda, oportunidade.

Carreiras, mansão, móveis, automóveis, educação primorosa dos filhos, viagens internacionais, jóias autênticas, tudo vinha seguindo o curso natural dos afortunados bem-sucedidos na vida. E veio o faqueiro de prata sterling, 101 peças Christofle acondicionado num estojo de aveludado forro, um verdadeiro porta-jóias...comprado numa viagem à Europa, na celebração dos quinze anos de bodas conjugais.

Marta se comprazia em se referir e, em alguns casos especiais, exibir aquele conjunto reluzente que, sussurrava com a segurança de uma Sibila: valia tanto ou até mais - e dava uma piscadela com o olho direito - do que o Mercedes do ano do marido, o impecável Lindi. Era Lindbergh, homenagem mais que merecida e apropriada ao ás da aviação nos seus tempos mais românticos.

Consta, e eu creio mesmo sem meio ou receio, que nos jantares de gala que ofereciam ao menos uma meia dúzia de vezes ao ano, o aparelho era cotado em apreciação em igual proporção ao sabor do ágape oferecido na oportunidade. E pelo menos dois casais presidenciais, um do tempo militar, outro já da redemocratização, haviam degustado aquelas delícias argento-manejadas.

E a gabolagem de Marta era mais que justificada. Afinal, nem a Embaixada de França - ela se acostumara a falar de ao invés do da - teria aparato de semelhante lavor. E valor.

E os cuidados então...Era o esmero au carré para cuidar daquela conjunto que Marta determinava - e bem fiscalizava - quando entregue aos cuidados da obsequiosa e orgulhosa criadagem.

Os tempos de crise - jamais conjugal, no entanto - que sobrevieram, impuseram ajustes, é verdade. Mas nunca a ponto de se sacrificar a honra e o prestígio social do casal. E tampouco do Christofle, que continuava a ser exibido em sua sóbria caixa no ponto mais nobre da étagère da ampla e majestosa sala de jantar. Seu uso foi que caiu, praticamente zerou - até mesmo para as eventuais rememorações daqueles belos tempos.

Os quarenta anos de bodas, passados na Hungria em plena e madura felicidade conjugal trouxeram, entre um e outro tilintar das taça de champã, uma lembrança do troféu dos quinze anos. Boa, demais da conta.

Foi só na tristeza da viuvez que Marta se dispôs a abrir a étagère para rever - et rêver - aquele selo de união que só encontraria paralelo na acolhedora Colcha de Retalhos...

Abriu o estojo...nada encontrou.

Paulo Miranda
Enviado por Paulo Miranda em 26/05/2018
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