UMA GAROTA PERVERSA (Capítulo 1)

Era algo sem muita explicação. Às vezes Rafaela acordava com aquela conhecida disposição de implicar com alguém. As professoras chamavam de bullyng, um termo politicamente correto e muito na moda ultimamente. Para ela tanto fazia. Rafaela tinha 16 anos e o seu passatempo preferido era fazer maldades.

A vítima da vez era a Pâmela. Pobre Pâmela. Eram colegas de turma e, ao contrário da exuberante Rafaela, ela era uma garota magra, de cabelo escorrido, sem muita graça. Sem sal, como gostava de alardear Rafaela com suas amigas mais chegadas. Por algum motivo desconhecido, Rafaela resolveu começar a implicar com a Pâmela que, acuada, nunca havia reagido às provocações.

Naquela sexta-feira ensolarada Rafaela despertou cheia de ideias para atormentar Pâmela. Enquanto tomava seu suco de laranja pela manhã arquitetou um plano para acabar com a garota de vez. Depois passaria para outra vítima. Pegar no pé da Paloma, aquela idiotinha, já estava ficando sem graça.

Rafaela não contou seu plano para ninguém. Queria saborear sozinha a maldade que a cada momento mais a satisfazia só de pensar. Havia um garoto, o Marcelo, colega de sala de aula e que Rafaela já havia percebido alguns olhares de Pâmela para ele. Era mais do que óbvio que um gato como Marcelo jamais lançaria um segundo olhar para Pâmela. Enquanto ia para a escola, à tarde, Rafaela ria sozinha do que estava prestes a acontecer. As amigas estranharam aquele olho brilhante e a expressão de satisfação. Sabiam, por experiência própria, que Rafaela estava em plena armação de alguma perversidade. Esperaram, ansiosas, que Rafaela revelasse o que estava planejando. Mas ela guardou para si. Ainda era segredo de estado.

Foi quando começou a aula de Educação Física que Rafaela decidiu agir. Pâmela, um pouco mais afastada, observava a formação dos times de vôlei. Era comum as equipes a deixarem de lado, restando à Pâmela sentar em um banco e aguardar a intervenção da professora para colocá-la para jogar. E era tão péssima jogadora que preferia ficar esquecida em um canto. Morreria de vergonha se o Marcelo soubesse o quanto era ruim em quadra.

– Oi, Pâmela.

A garota levou um susto quando Rafaela sentou ao lado dela naquele banco mais afastado do pátio. Pâmela chegou a respirar fundo e a se encolher, recompondo-se em seguida. O que ela garota queria? Já não bastavam as implicâncias diárias? Será que não podia nunca a deixar em paz?

– Olá.

Pâmela estranhou. Rafaela parecia estar de boa. Seu sorriso era amistoso, quase gentil.

– Vim aqui lhe pedir desculpas.

– Oi?

Rafaela sorriu mais. Pôs a mão no braço de Pâmela tentando criar mais intimidade.

– Tenho sido má com você. Desculpe. Você pode me desculpar?

– Puxa – Pâmela sorriu também. Sentiu um alívio imenso. O bullying constante de Rafaela estava lhe causando insônia e perda de apetite. Toda as suas provocações já haviam lhe rendido três quilos a menos. Até a mãe já reparara que a filha estava mais magra ainda. – Claro que desculpo você – Pâmela baixou a voz e confessou. – Sempre quis ser sua amiga.

Rafaela sorriu por dentro. Trouxa. Pâmela era mesmo uma retardada. Esforçando-se para ser caridosa, Rafaela a abraçou.

– Esqueça tudo o que eu fiz. Fui uma boba, uma cretina. Agora passou. Serei uma ótima amiga.

– Legal – Pâmela mal podia acreditar no que estava acontecendo. – Acho que seremos boas parceiras.

– Claro que sim. E para mostrar o quanto lhe quero bem, tenho uma coisa para contar a você.

Era tanta novidade que Pâmela mal cabia em si de contente. Sentia-se amiga íntima de Rafaela.

– Qual?

– Sabe o Marcelo?

Rafaela percebeu o rubor tomar conta do rosto de Pâmela. Pegara o ponto fraco da outra.

– Er... claro. O que tem ele? – Pâmela se esforçou para tentar parecer normal.

– Ele me contou um segredo – Rafaela baixou o tom de voz propositadamente.

– É?

– Veja só, Pam. Marcelo pediu que eu viesse até aqui lhe falar uma coisa.

Um arrepio tomou conta de Pâmela. Ai, meu Deus. O que mais viria por aí?

– Marcelo? Mas ele sabe que eu existo?

– Ô... Marcelo é meu amigo – era uma meia verdade. Já haviam conversado algumas vezes, mas não passara disto. – Ele é muito discreto, sabe? Não é de demonstrar seus sentimentos. Só que ele me pediu ajuda. Marcelo quer muito falar com você.

Do rubor Pâmela foi à palidez.

– Mas o que ele quer comigo?

Rafaela sorriu.

– Namorar você.

Pâmela levou as mãos à boca, pasma. Não podia ser verdade.

– Ele disse isto? – o friozinho que Pâmela sentia na barriga era muito gostoso.

– Claro que sim. Já lhe disse, somos muito amigos – Rafaela fez que consultava as horas e depois olhou para a quadra. – Marcelo pediu que eu te levasse para o laboratório de química desativado. Ele quer conversar com você lá.

– Como assim? Agora?

– Sim – Rafaela ficou em pé e puxou Pâmela pela mão. – Vamos! Se a professora nos enxergar por aqui vai nos mandar entrar em algum time.

Rafaela percebeu alguma hesitação em Pâmela e perguntou, impaciente:

– O que foi?

– Não estou bem. Olha meu cabelo, não está direito. E nem estou de batom.

– Deixa comigo.

As amigas de Rafaela não entenderam quando a viram puxando a tonta da Pâmela pela mão através do pátio da escola. Aliás, Pâmela parecia muito empolgada com alguma coisa e trazia até um sorriso no rosto sempre tão sisudo. O antigo laboratório de química ficava no segundo andar, no fundo de um corredor. Aquela ala seria desativada totalmente e não era permitido aos alunos irem até lá. Porém, para Rafaela, aquela proibição de nada valia.

– O que você acha? – Rafaela pôs a mão no bolso do agasalho e retirou dali um batom de cor vermelho vivo. Pâmela se surpreendeu.

– Nossa, nunca usei um batom deste tom.

– Pois use – Rafaela sorriu tentando disfarçar seu prazer. O plano estava indo muito bem. – Os garotos adoram batons vermelhos. Deixa uma mulher muito sexy, sabia?

Pâmela pegou o batom. Ambas já estavam no segundo andar do prédio e Rafaela continuava puxando a outra pela mão, com medo que na última hora Pâmela desistisse.

– Acho que eu iria me sentir meio vagabunda...

– Deixa disso. Os homens adoram garotas descoladas. Está na hora de você se tornar uma.

Rafaela parou na frente de Pâmela e ela própria passou o batom nos lábios da colega. Depois se afastou um pouco para ver melhor o resultado.

– Ficou divino. Nossa, você está maravilhosa!

Pâmela sorriu, satisfeita. Não havia nenhum espelho por ali para que pudesse ver que parecia uma caricatura mal feita de si mesma. De propósito, Rafaela borrara o batom e tinha que se segurar a risada toda vez que olhava para o rosto de Pâmela.

– Venha – disse ela. – Marcelo deve estar impaciente esperando você no laboratório.

– O que eu digo para ele, Rafaela?

– Relaxe – as duas se aproximavam do lugar. – Ele quem vai dizer as coisas para você. Acho que Marcelo vai convidá-la para sair.

– Ai, meu Deus! – Pâmela chegou a estremecer. O friozinho na barriga aumentou de intensidade. – Estou tão nervosa!

Ambas pararam frente à porta do laboratório. Ele não era usado há meses e estava todo empoeirado. Antes Rafaela já havia passado lá para ver como estavam as coisas. Muito pó e cheiro de coisa velha. Não havia nem mais luz e as janelas estavam trancadas. A chave... bem, a chave estava no bolso de Rafaela.

– Pronta? – Rafaela fez força para não rir. – Preparada para a maior emoção da sua vida?

Pâmela olhou para sua nova amiga cheia de esperança e brilho no olhar. De repente, de uma hora para outra, sua vida ganhara novo significado. Era surreal, quase divino o que estava vivendo.

– Sim. Sim, Rafaela. Estou pronta!

Rafaela abriu a porta do laboratório. Lá dentro estava tudo escuro. Ela deu dois passos para dentro e puxou Pâmela.

– Venha – ela se virou para frente e falou como se alguém mais estivesse ali também. – Marcelo? Trouxe sua amada!

Ela voltou para a porta deixando Pâmela sozinha, caminhando alguns passos para o interior do laboratório. A única claridade que havia era da porta e mesmo assim não dava para iluminar muita coisa.

– Oi, Marcelo? Sou eu, a Pam.

Neste momento a porta se fechou com um estrondo e Pâmela deu um pulo. Tudo ficou escuro e não era possível ver um palmo a frente do nariz. Pâmela odiava escuridão, tinha horror a ela. Como Marcelo faria para vê-la ali dentro?

A gargalhada alta de Rafaela sumindo pelo corredor fez com que Pâmela caísse na real. Não havia Marcelo nenhum ali dentro e muito menos ele estava interessado nela. A amizade de Rafaela era falsa, Pâmela soluçou alto quando se deu conta que havia caído em uma armação terrível. Desesperada, ela se virou e tentou encontrar caminho até a porta. Tropeçou em algumas coisas, quase caiu, bateu com o joelho na quina de uma bancada. Aos berros e sentindo-se a maior trouxa do planeta, Pâmela alcançou a porta. Mas, antes que desse um suspiro que fosse de alívio, percebeu que a porta estava trancada do lado de fora.

Pâmela gritou, chorou, esmurrou a porta. Porém, sabia que tudo aquilo era inútil. Ninguém frequentava aquela ala da escola. Os alunos haviam sido alertados que era proibido ir até lá. Quem a encontraria? Quanto tempo levariam para se dar conta que Pâmela estava trancada lá dentro, sepultada viva em um laboratório de química fedido e desativado?

As mãos estavam sangrando quando Pâmela cansou de chutar a porta e caiu, quase desmaiada de desespero, no chão empoeirado.

Maria Caterinna
Enviado por Maria Caterinna em 01/06/2018
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