A ULTIMA MULHER DE BARBA AZUL

Era uma vez um homem que tinha a barba azul.
Era mercador, riquíssimo e muito poderoso.
Outro que fosse, andaria sempre muito bem barbeado, até porque aquele defeito era motivo de chacota por toda a cidade.
Mas ele não se importava. Sabia muito bem que por detrás das suas costas caçoavam dele, mas na sua presença todos fingiam respeitá-lo...e muito! Consciente da sua riqueza e do seu poder, ele trazia aquela barba azul bem comprida, e muito bem penteada, como se sentisse orgulhoso da deformidade . Toda a gente lhe chamava o Barba Azul.
Dizia-se também que tinha poderes mágicos, mas disso ninguém tinha a certeza.
Como era muito rico e galanteador, o Barba Azul já tinha sido casado várias vezes, mas as suas esposas tinham, uma por uma, desaparecido sem que ninguém soubesse para onde tinham ido, ou o que lhes tinha acontecido.
Ora, perto dele vivia uma
viúva que tinha duas filhas solteiras. Eram muito bonitas e ele queria casar com uma delas. Fosse qual fosse, não lhe fazia diferença.
Logo que a viúva notou o interesse do mercador pelas filhas, ficou preocupada. Por um lado, ele era o melhor partido da cidade, riquíssimo... por outro lado, as esposas desaparecidas, uma atrás da outra, só Deus sabia como ou porquê... depois aquela barba azul... se lhe desse netos, seriam normais?...
Acautelou muito as filhas contra decisões precipitadas... queria que fossem muito cuidadosas, muito prudentes.
As duas jovens andavam também muito apreensivas. O facto do Barba Azul não mostrar preferência por uma delas era também muito embaraçoso. Elas andavam sempre juntas e o Barba Azul desfazia-se em amabilidades para com elas, mas indistintamente.Dava presentes a ambas, a ambas cortejava. Elas, coitadas, não sabiam que fazer. Não queriam recusar, abertamente a corte do Barba Azul, o homem era riquíssimo, morava numa casa enorme, sumptuosa, um verdadeiro palácio com móveis magnificos, baixelas de prata e ouro... tinha muitos criados, carruagens douradas com cavalos lindos, enfim tudo o que uma mulher daquela época podia desejar e muito mais. Só restava aquele receio, aquela suspeita indefinida, aquele desaparecimento das esposas anteriores... enviuvara tantas vezes?... Porque é que ninguém sabia ao certo?
Nenhuma das duas jovens era capaz de o recusar abertamente, mas também não tinha coragem de o aceitar. Quando ele renovava as suas propostas de casamento, elas desculpavam-se uma com a outra. A mais nova dizia-lhe que não queria impedir à irmã a possibilidade de um casamento tão rico e com um cavalheiro tão amável... a mais velha dizia o mesmo em relação à irmã. E assim se foi arrastando a corte de Barba Azul, sem que nenhuma das filhas da viúva se resolvesse a casar com ele.
Finalmente, e depois de muitas tentativas frustradas, Barba Azul resolveu impressionar a viúva e as filhas por outros meios: convidou-as para uma festa em sua casa. Que trouxessem todos os seus amigos que todos seriam muito bem recebidos e se divertiriam muito. A viúva não resistiu à generosidade e simpatia do pretendente à mão de uma das suas filhas e, no dia aprazado, foi à festa com as filhas e os amigos mais chegados.
Os festejos prolongaram-se por vários dias
O riquíssimo mercador não se poupou a nenhum esforço para que todos se divertissem em cheio. Muita música, bailes, manjares raríssimos, passeios de carruagem, teatro no próprio palácio, e a constante simpatia de Barba Azul para com as filhas da viúva. Finalmente, a irmã mais nova não resistiu ao charm do homem e a toda aquela opulência e resolveu aceitar a proposta de casamento.
Casaram.
O casamento celebrou-se na capela do palácio com familiares e alguns convidados que vieram de longe. Os dois irmãos da noiva que eram militares num quartel próximo vieram também e ficaram uma semana de que gostaram muito.

***

Depois das bodas, a lua de mel. Foram dias de indiscritível felicidade para os recém-casados. Barba Azul desdobrava-se em atenções e carinhos para com a sua jovem esposa e ela correspondia com constantes e inexcedíveis ternuras. Mas este idílio conjugal foi repentina e inesperadamente interrompido por urgentes negócios a que Barba Azul teve de atender noutra cidade.
—Minha querida, eu vou ter de me ausentar durante algum tempo. Negócios urgentes me chamam. Mas demoro-me pouco.
E enquanto estiver ausente, não quero que fiques aqui sozinha.Convida a tua família e convida os vossos amigos mais íntimos a vir passar uns dias contigo. Aqui tens todas as chaves. Podes utilizar todas as salas, todos os quartos, todas as dependências do palácio Só o quarto ao fundo do corredor das traseiras é que nunca deve ser aberto. Por ninguém! É esta chave pequenina aqui, olha. Essa porta não pode ser aberta por ninguém, ninguém!...
E Barba Azul partiu.
A família e alguns amigos da esposa vieram visitá-la como ele sugerira.Todos admiravam a jovem senhora e todos se sentiam bem junto dela, de algum modo participando da sua felicidade.
Passaram-se dias. As visitas iam e vinham e a esposa de Barba Azul, como boa dona de casa, não se cansava de mostrar o palácio aos que iam chegando. Todas as chaves foram usadas repetidas vezes e sempre que acontecia à esposa de Barba Azul tatear entre as outras a chave pequenina do misterioso quarto, o peito da malfadada senhora era inundado por uma onda de profunda curiosidade. “Porquê, pensava a ela, porque é que eu não posso saber o que se contém naquele quarto?”
E foi aumentando, pouco a pouco, aquela curiosidade, até que se tornou numa irresistível atração. Finalmente, a pobre senhora não pode resistir mais e, pela calada da noite, quando todos estavam recolhidos, dirigiu-se só à fatídica porta do quarto ao fundo do corredor. Utilizou a chave pequenina e abriu a porta. A visão do conteúdo do misterioso quarto fê-la instintivamente fechar a porta e correr em estado de choque para o seu quarto nos aponsentos privados do casal - havia cadáveres humanos dependurados nas paredes, e enormes nódoas de sangue já seco no chão. Em pânico, e ainda sem compreender bem o que vira a desditosa senhora atirou-se para cima da cama mergulhou o rosto no travesseiro e ficou ali incapaz de um movimento — a imagem daqueles cadáveres e aquela lufada do cheiro da morte tinham-na paralisado completamente, corpo e alma. Quando voltou a si e começou a compreender o verdadeiro significado do que vira, sentou-se na borda da cama e notou que tinha ainda na mão o molho das chaves. Instintivamente procurou com os olhos a mais pequena, que ainda tinha entre os dedos e notou que ela estava manchada de sangue. Ficou ainda mais apavorada. “Meu Deus, se ele vê isto!” Foi logo lavar a chave, mas a mancha não saíu. Lavou-a com sabão, não saiu. Com vinagre, não saiu. Com um esfregão de arame, não saiu. Tentou areá-la, não saiu. Aterrorizada, a esposa de Barba Azul convenceu-se de que a chave tinha poderes mágicos e imaginou o pior.
Quando o marido voltou ela tentou demorar enquanto pode ficar a sós com ele. Durante o jantar interessou-se muito pela sua viagem, fez perguntas, contou pormenorizadamente tudo o que se passara enquanto ele estivera ausente, o que tinham feito, as coisas engraçadas que tinham acontecido... Quando finalmente se recolheram aos seus aposentos íntimos ele pediu as chaves à esposa e imediatamente notou a nódoa na chave pequenina.
O que vem a ser isto? Eu deixei-te bem claro que esta chave não devia nunca ser usada. Tu desobedeceste às minhas ordens. Agora vais juntar-te às outras, morrerás como elas morreram! Foi a maldita curiosidade e a tua desobediência que te perderam. Tens de morrer.
—Pelo menos dá-me algum tempo para me preparar. Deixa-me ir à capela encomendar a minha alma a Deus.
—Não. Não sairás daqui... e esta será a tua última noite Vais passá-la aqui junto de mim. Se me provares que estás arrependida, poupar-te-ei ao merecido castigo. Se não, morrerás aos primeiros raios do alvorecer.
O que aconteceu durante a noite nunca se soube ao certo. O que se sabe é que já de madrugada dois militares entraram no palácio e forçaram a porta do quarto do casal a tempo de salvar a vítima.
Barba Azul foi preso e nunca mais ninguém o viu.