UMA GAROTA PERVERSA (Capítulo FINAL)

Apesar de alegar dor de cabeça, Rafaela foi obrigada a ir à escola. Chegou mais tarde e foi a última a entrar na sala de aula. Evitou olhar os colegas. Séria e com a expressão fechada, sentou na cadeira e largou, com raiva, a mochila sobre a mesa, atraindo ainda mais os olhares. E foi assim a manhã inteira. Rafaela não tirou os olhos dos cadernos a aula inteira, mas mesmo assim teve a nítida impressão que era observada por todos os colegas. Nem no intervalo Rafaela saiu da sala. Não desejava contato com ninguém. Tinha noção de que seu comportamento era muito suspeito, porém não conseguia agir de outra forma. Dizia para si mesma que era uma vítima e que os colegas estavam contra ela sem saber sequer o que ocorria realmente. Nem Rafaela sabia mais.

A aula terminou pontualmente às 12:15 e Rafaela esperou que todos colegas saíssem. Depois, muito lentamente, guardou todas suas coisas e saiu espreitando os lados rezando para não ter que encontrar com ninguém.

O plano deu certo. Quando Rafaela cruzou os portões os colegas já haviam debandado. A rua pequena estava deserta e ela respirou aliviada. Era um alívio momentâneo, Rafaela sabia. O coração continuava apertado. A qualquer momento a bomba poderia estourar e esta possibilidade fez seu estômago se retorcer. Ela não podia ficar doente. Queria estar forte para se defender, embora se perguntasse se haveria alguma chance para isto.

Rafaela encaixou a mochila nas costas e caminhou, desanimada, pela rua. A escola era perto de casa, mas ela não queria ir para lá. A mãe estranharia seu comportamento, a avó teceria algum comentário inocente, mas certeiro, e Rafaela não tinha muita disposição para dar alguma explicação e que obviamente, seria uma mentira. Se limitou a caminhar sem rumo por algumas ruas calmas do bairro criando coragem para voltar para casa.

Um carro parou mansamente ao lado dela no meio fio da calçada e Rafaela mal o olhou. Talvez quisesse alguma informação, porém a garota não estava a fim de papo e muito menos ser simpática. Continuou seu caminho, os passos lentos e sem vontade, olhando fixo para frente. Até que ouviu seu nome:

– Ei! Rafaela?

Ela olhou para o lado, assustada. O chamado interrompeu os pensamentos nebulosos. Um homem, a bordo de uma caminhonete a encarava fixamente. Não trazia nenhum sorriso no rosto, mas também não parecia ser uma pessoa perigosa.

– Sim, sou eu – ela não parou de caminhar. Pelo contrário, apressou um pouco os passos.

O homem abriu a porta do carro em movimento.

– Por favor, entre.

– O quê? – Rafaela quase gritou. Aquilo era um sequestro?

– Só peço que entre. Não é um sequestro ou nada assim. Só preciso esclarecer alguns fatos.

Não era um sequestro, mas ele falava firme. Rafaela olhou para os lados. A rua continuava deserta. Era só correr.

– Entre. Será melhor. Sou, Gerson, o pai da Pâmela.

As mãos de Rafaela gelaram no mesmo instante. Pronto, havia sido descoberta. Seu instinto lhe disse que era melhor obedecer.

– Não vou machucar você – insistiu ele. – Entre. Você pode ficar com seu celular, inclusive.

Rafaela entrou no carro e se acomodou no banco ao lado dele. O vidro escuro não havia permitido que Rafaela visualizasse, do lado de fora, que havia uma pessoa no banco de trás. Uma mulher de óculos escuros e cabelos negros se apresentou:

– Sou Mariana, a mãe da Pâmela.

Era ridículo, disse Rafaela para si mesma. Estava sendo levada pelos pais de Pâmela para um lugar incerto e não sabido. Alguém precisava dizer a eles que não tinha mais nada a ver com o sumiço da filhinha enjoada deles. Dentro do seu nervosismo, Rafaela a cumprimentou em tom irônico:

– Muito prazer.

O carro seguiu por ruas movimentadas da cidade. Nenhum dos ocupantes falou alguma coisa. Ela não tinha a menor ideia para onde estava indo. No início imaginou estar sendo levada para a delegacia. Mas quando o carro começou a se afastar da cidade e pegou uma estrada mais remota, Rafaela começou a se preocupar outra vez.

– Vocês estão me sequestrando.

– Você voltará sã e salva para casa – garantiu Gerson com a voz firme. – Quer ligar para sua mãe? Diga que está com os pais da Pâmela. O único risco é ela fazer alguma relação com o sumiço da minha filha.

Rafaela sentiu uma ponta de ironia nas palavras dele. Mandou uma mensagem rápida para a mãe dizendo que almoçaria com algumas amigas e tornou a guardar o celular na mochila. Não se sentia ameaçada, somente apreensiva com o que estava por vir. A mãe de Pâmela permanecia em silêncio.

Depois de trafegar por quinze minutos por uma estradinha de terra, o carro parou frente a um portão de madeira. O pai de Pâmela desceu, escancarou o portão e voltou para a caminhonete. Em pouco tempo estacionaram frente a uma casa bonita e vistosa. Aquela devia ser a chácara de Pâmela. Algumas vezes ouvira a colega comentar sobre a propriedade.

Gerson abriu a porta do carro e Rafaela saiu. Aos poucos começou a entender o que eles queriam: fazer com que passasse pela mesma experiência da filha. Ela respirou fundo quando sentiu a mão pesada de Gerson nas suas costas. A mãe de Pâmela abriu a porta da casa e tirou os óculos escurou. Rafaela se surpreendeu ao ver as olheiras no rosto dela.

– Pode entrar – disse ele. – Não vamos machucar você.

A passos lentos e sempre sentindo a mão de Gerson sobre si, Rafaela entrou na casa. As janelas estavam abertas e o sol iluminava a sala. O lugar era agradável, com móveis rústicos e confortáveis. Aquilo, contudo, já estava indo longe demais. Tentando demonstrar uma coragem que não sentia, Rafaela largou a mochila com força sobre a mesa de madeira e comentou:

– Um ótimo local para ficar de cativeiro. Devo agradecer?

Mariana se aproximou e, com a expressão fechada, perguntou:

– Devo agradecer o que você fez com a minha filha?

– Não tenho responsabilidade sobre o sumiço dela – retrucou Rafaela, irritada.

– Foi você quem a trancou no laboratório desativado!

A voz da mulher saiu aguda e ríspida, o que fez o marido intervir:

– Mariana, tenha calma. Estamos no controle.

– Eu tranquei, sim! – explodiu Pâmela. – Mas vocês devem tirar satisfações de quem a tirou de lá e consumiu com ela!

Um movimento à esquerda chamou atenção de Rafaela. Marcelo apareceu na sala depois de ter saído por uma porta lateral, e olhou para os pais de Pâmela. Rafaela percebeu que a troca de olhares entre eles tinha algum significado ainda desconhecido para ela.

– Eu sabia que você estava envolvido nisto – acusou apontando o dedo para ele. – Foi você, seu cretino, quem ligou para meu celular e me ameaçou.

Pelo sorriso irônico dele Rafaela logo se deu conta que havia acertado na mosca.

– Eu livrei Pâmela do laboratório – revelou, deixando Rafaela boquiaberta. – Eu reparei quando você atravessou o pátio naquela tarde e fui atrás. Você se acha esperta? Eu sou mais.

A garota ficou em silêncio tentando assimilar a nova e surpreendente informação.

– Quando... quando você fez isto? – Rafaela perguntou depois de alguns segundos.

– Até eu conseguir abrir a porta... talvez tenha levado uma meia hora. O bastante para Pâmela se machucar lá dentro, em pânico.

Pela mesma porta que Marcelo havia saído surgiu Pâmela. O rosto pálido e a magreza pareciam ter aumentado desde a última vez que haviam se visto.

– Seu monstro... – sussurrou ela.

Clara e mais duas colegas vieram logo atrás e se posicionaram atrás de Pâmela como se fossem guarda–costas. Rafaela soltou uma risada nervosa.

– É um complô? – depois olhou para Marcelo. – Quero entender esta história. Você libertou Pâmela do laboratório na mesma tarde. Certo? Isto quer dizer que ela nunca esteve desaparecida. Nunca! Vocês – Rafaela encarou os pais de Pâmela, acusadora – acionaram a polícia, as redes sociais e fizeram um monte de gente de palhaço. Vocês não têm vergonha?

Marcelo se adiantou.

– Não foi bem assim.

– Então foi como? – Rafaela estava possessa. – Você, Pâmela, estava na sua casa enquanto todo mundo se mobilizava para encontrá–la. Sabia que você e sua família serão responsabilizados por isto?

Mariana, a mãe de Rafaela, bateu o punho na mesa com força. Ao contrário do marido, ela estava claramente perdendo o controle.

– Nós não sabíamos de nada até ontem! – esbravejou ela.

– E onde você se meteu? – Rafaela pôs as mãos na cintura sem entender nada.

Pâmela respondeu em um sussurro:

– Na casa do Marcelo.

– Você não foi capaz de avisar seus próprios pais? – Rafaela encarou Pâmela e depois um a um quem estava na sala. – A culpada do inferno deles não é só minha! Como ousam me acusar de tudo?

Pâmela respirou fundo.

– Fiquei envergonhada. Marcelo me encontrou jogada no chão, minhas mãos sangravam, me senti muito mal. Não quis ir para casa e contar aos meus pais como eu havia sido idiota por ter acreditado em você – lágrimas vieram aos olhos dela. – Eu e Marcelo saímos escondidos da escola, pulando o muro atrás do prédio. Ninguém nos viu. Marcelo me emprestou o moletom e me disfarcei com o capuz. – Ela olhou para Marcelo. – Obrigada por me acolher na sua casa e me entender. Foram dias difíceis para nós todos.

Rafaela sentiu ganas de esbofetear tanto Pâmela quanto Marcelo. Quase não acreditava no que escutara.

– Muito bem. Então vamos até a polícia agora e contar toda a verdade.

– Contar o quê? – Clara se manifestou pela primeira vez. – Que você pratica bullying com a Pâmela faz meio ano?

– Você trancou minha filha em um laboratório desativado! Se não fosse o Marcelo ela teria morrido!

– Eu errei! – gritou Rafaela, furiosa. – É isto que vocês querem ouvir? Eu fiz merda! Não era minha intenção deixar Pâmela presa muito tempo. Mas... meu Deus, eu esqueci de você lá, Pâmela. Matei aula e só lembrei de madrugada. Vocês podem não acreditar, mas eu fiquei desesperada. Quem ligou para a polícia dizendo que você estava presa no laboratório fui eu! Mas você, Marcelo – Rafaela se voltou para o rapaz apontando–lhe o dedo – tinha obrigação de avisar aos pais dela!

Marcelo levantou as duas mãos como se não quisesse discutir.

– Escute, Rafaela. Você tem toda razão, mas você não viu o estado em que Pâmela foi encontrada. Ela estava mal, machucada, deprimida, derrotada. Quando as postagens começaram a ser compartilhadas, Pâmela ficou ainda pior, com mais medo. Medo de você.

– Medo do quê? – Rafaela olhou para Pâmela sentindo a raiva consumi–la.

– Medo que você terminasse o trabalho – Pâmela mal balbuciou as palavras, tremendo da cabeça aos pés. – Você é perigosa.

– Eu? – Rafaela riu achando a maior besteira a declaração da outra. – Perigosa?

Ela olhou para Marcelo e para os demais colegas que assistiam ao debate em silêncio.

– Então é isto que vocês pensam de mim?

– Você é detestável – respondeu Clara depois de alguma hesitação, colocando o braço sobre o ombro de Pâmela em um gesto protetor. – Fez bullying com Pâmela por meses sem dó nem piedade.

– Minha filha está deprimida por sua causa! – Mariana fez menção de avançar sobre Rafaela, porém foi contida a tempo pelo esposo.

– Vocês todos são uns idiotas – Rafaela bufava. – Praticar bullying é feio. Percebo isto só agora. Eu não sei o que se passava na minha cabeça, só queria me divertir à custa dos outros. Fui infantil e má. Mas por que vocês não defenderam a Pâmela? Por que assistiram eu tripudiar sobre ela se tomar nenhuma atitude? Lembro que vocês riam das brincadeirinhas bestas que eu fazia com ela. Agora estão indignados?

Pâmela olhou para os colegas esperando alguma resposta. O silêncio foi predominante enquanto, constrangidos, eles olhavam para o chão ou disfarçavam mexendo nos cabelos.

– Onde estavam os pais o tempo todo? A senhora disse agora mesmo que sua filha estava bastante deprimida? Por acaso a senhora se interessou em saber o motivo? Ou estava mais preocupada com sua carreira ou ir ao salão de beleza?

De tanto falar alto, Rafaela sentiu a garganta seca. De repente a exaustão caiu sobre seu corpo e nunca ansiou tanto por deitar na sua cama e dormir.

– Desculpe, Pâmela. Na minha mente pequena nunca imaginei o mal que estava lhe causando – Rafaela sentou no sofá. Sentia–se aliviada. A história teria consequências, mas pelo menos se encaminhava para o final.

– Não sei se conseguirei perdoar você – sibilou ela.

– Bem, o problema é seu – retrucou Rafaela sem ânimo para discutir mais. – O assunto esgotou? Acho que está tudo esclarecido, não?

Gerson se pronunciou:

– Rafaela já pediu desculpas. Acredito que depois disto tudo ela não irá mais praticar bullying sobre ninguém. Vamos encerrar o caso.

– Proponho em irmos até a delegacia – Rafaela tentou firmar a voz cansada, – pois a delegada está desconfiada de mim e eu... bem, eu quero contar o que fiz e ser responsabilizada, se for o caso. Marcelo também deve confessar que Pâmela estava na casa dele este tempo todo.

– Sim, vamos proceder assim – concordou Gerson – e esperar as consequências.

Rafaela pegou a mochila e olhou para Pâmela outra vez.

– Vou pedir para meus pais me trocarem de escola. Assim você fica livre de mim de uma vez por todas.

Ela se virou para sair de casa, mas Pâmela a segurou pelo braço.

– Sempre morri de inveja de você – confessou ela. – Eu queria ser como você.

– Tudo bem – sorriu Rafaela mais surpresa ainda com aquela revelação de última hora. – Mas eu acho que não sou um bom exemplo a ser seguido.

A garota seguiu para o carro e sentou ao lado de Pâmela na caminhonete. Suspirando, pegou o celular e ligou para a mãe. Era melhor contar de uma vez.

– Mãe? Oi, mãe. Você não vai adivinhar na encrenca que me meti...

Maria Caterinna
Enviado por Maria Caterinna em 17/06/2018
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