Asmodeus - parte 3

O inverno no vale fazia com que uma fina garoa caísse sobre Matias, Joana e Nat. Os três faziam o impossível para se manterem aquecidos. As coisas ficaram fáceis depois que o rapaz se juntou a Joana e Nat. Mãe e filho podiam contar com um reforço que os deixara seguros algumas vezes. Durante a vigília naquela madrugada de setembro, poucos dias antes do inverno se despedir, os sobreviventes do fim do mundo tentavam se esconder depois de fugir de uma perseguição. Após tantas, o trio conseguiu definir estratégias para escapar de maneira eficiente dos carniceiros.

Aparentemente simples, o plano era tornar o cheiro humano misturado com outros do ambiente, o que desagradava Joana que não suportava esfregar urina animal em suas roupas e pele. Eles perceberam que a tática funcionava quando entocados em uma sala durante uma fuga, o cheiro de fezes de gato impregnava o lugar, e os carniceiros que os perseguiam passaram desapercebidos. Pensar em revestir o corpo com excremento animal pareceria loucura quando o mundo ainda era normal, mas nas atuais condições aquilo foi uma graça diante de tantas perdas que o trio sofrera.

Mãe e filho ainda ofegavam quando chegaram ao supermercado abandonado, as mãos de Joana tremiam por causa da adrenalina que percorria seu corpo. Com fome e sede, eles tateavam pelas prateleiras em busca de comida. Depois de alguns minutos de procura, os dois conseguiram reunir frutas e enlatados.

Lá fora, Matias seguia a mulher e a criança que vira na ponte. O jovem rapaz não sabia, mas os dois conseguiram sobreviver ao bando de carniceiros que os cercaram durante a travessia da ponte. Atraído pelo som dos tiros, Matias se escondeu enquanto observava um homem fardado sendo atacado por quatro caçadores que se lançavam ferozmente. "Tolo", pensara Matias. O homem jamais sobreviveria ao dano que o quinto carniceiro estava prestes a causar.

A tática de ataque das hordas era simples. Quando definida a presa, os carniceiros cercam-na, geralmente quatro deles, enquanto um quinto avalia uma abertura na defesa da vitima. Os tiros de Napoleão eram desordenados, sem precisão. Sem abater um sequer, o desertor se levou pelo pânico. O quinto carniceiro espreitava-o do chão enquanto os quatros o empurravam. Era como uma brincadeira de criança, o corpo do caçador no chão seria o tropeço para Napoleão. Cada vez mais recuado, o ex-soldado sem perceber deu passos mortais e caiu quando bateu com os pés em seu algoz. Caído sobre o quinto carniceiro, os quatro agarraram-no com as bocas, cada um mordendo braços e pernas.

O quinto monstro mordeu o pescoço daquele pobre homem, que sentindo o ardor da pele sendo arrancada com força bruta, gritava desesperadamente por socorro. Matias sentia a perda de mais um humano, mas sentia muito mais que era tarde demais e pôr em risco a própria segurança era loucura.

Como uma nuvem de gafanhotos, outros carniceiros apareceram para comer da carne de Napoleão. Dali as criaturas partiriam em busca de outros sobreviventes e, infelizmente, Joana e Nat estavam no meio do caminho daquela caçada mortal. Passadas algumas horas, Matias, interessado pela arma deixada por Napoleão viu que duas pessoas saíram de um veículo. Desconfiado feito bicho selvagem, o rapaz decidiu permanecer escondido antes de realizar algum contato, se o realizasse de fato. Espreitando mãe e filho das sombras, ele avaliou que ambos não ofereceriam perigo. Eram apenas dois coitados que não morreram nas primeiras horas do fim do mundo, quando a nuvem branca e brilhante derramou uma toxina mortal sobre alguns estados do Brasil.

Ele se lembra do enfadonho dia em que o pesadelo da raça humana começou. Primeiro o ataque viral. Centenas de milhares mortos em dias. Os governos estaduais declararam estado de calamidade e as forças de defesa foram acionadas para enterrar os corpos que se aglomeravam nas ruas. O gás de Hitler, como se popularizou o nome da fumaça, causava entupimento das vias nasais com fragmentos de algum tipo de micropoeira que entupia os alvéolos pulmonares, o corpo humano sem realizar a troca gasosa começava a entrar em colapso devido ao excesso de CO2 no sangue. Um tipo de acidose extrema causava a falência múltipla dos órgãos excretores, do processo de contágio até a morte, era um processo doloroso. Médicos correram contra o tempo, mas sem resultado positivo para achar uma cura. A única possibilidade foi oferecer uma morte sem dor antes que a doença se tornasse severa. Os que não foram contaminados pelo gás de Hitler tiveram que conviver com os cadáveres nas ruas que se multiplicavam. Matias lembra que lera uma matéria de jornal que o grupo afetado pelo gás era de gente com alergia e processos derivados mais acentuados, como rinite, sinusite e asma.

No supermercado, a sombra do rapaz assustou mãe e filho. Matias os chamou da entrada e ali se identificou. Desconfiados, uma sensação misteriosa os envolviam, empurrando-os para se tornarem um grupo em meio aquele mundo caótico.

Lá fora, uma criatura pequena rastreara o cheiro infantil de Nat, o pequeno corria perigo.