Vítimas de Si - 3ª parte

Continuação da 1ª e 2ª parte, já publicadas neste site.

Tanta coisa, tantas lugares, e ela estava procurando logo ali?

Maldita, e Selina não podia nem suspirar, nem xingá-la de tudo que estava vindo a sua cabeça. Engoliu os insultos, esperou, até que ouviu seus passos desaparecerem. Lavou todos os utensílios, colocou as chaves na mão do cadáver, e em euforia com seu espírito alpinista escalou as janelas, do terceiro andar até o térreo, tomou fôlego, adentrou novamente na festa, ajeitou os cabelos nas costas de uma colher de prata, pediu um cigarro a um velho desconhecido:- A senhora só precisa de um cigarro? Se quiser eu posso lhe dar algo mais, eu posso lhe dar tudo que quiser. – sussurrou em seus ouvidos.

Selina sedutora respondeu em seu ouvido: - sim, eu quero, quero mais... Dê-me o fogo também. – O velho lhe entregou esperançoso uma caixinha de fósforos nova.

Selina mudou completamente a expressão:- Ok, agora dá o fora! E afastou-se pondo em brasa o objeto de fumo, baforando no vácuo, tentando descrever desenhos na fumaça. Val chegou, dançando entre os convidados, fingindo curtir o som da ótima banda. Encarou a tia:- Você sabe onde está meu marido? - Quase num sussurro ela repetiu:- Você sabe onde está meu marido? Eu tenho quase certeza de que sabe sim. An?

- Ele morreu. eu acabei de matá-lo, a sala trancada, seu corpo está lá.

os olhos de val foram até a alma de Selina: - Ok, repita as últimas palavras daquela forma que só você sabe fazer, para que eu acredite.

- Seu corpo está lá. - repetiu as últimas palavras como a outra pedira, tomando um gole de uma taça ali por perto.

Então Val acreditou, sim era verdade, seu noivo estava morto. Ela roubou o cigarro das alheias mãos, e tragou com todas as forças, despejando a fumaça na face a sua frente, amassou a brasa deste no braço da tia.

- Sua vagabunda! - sussurrou a vítima, esfregando o local queimado.

- Cala essa boca, não me importa que você é mais velha, esta merda social chamada respeito não existe entre nós duas, porque se existisse você não teria matado meu marido. - estas palavras foram gritadas, e meio mundo parou naquele momento para ouvi-las. Até mesmo a banda parou, o palco era elas, o show estava nelas!

- Satisfeita? - Você conseguiu o que queria? Chamar a atenção, já não basta este cabelo vermelho berrante, estar vestida de noiva e ainda precisa berrar?

A governanta foi de encontro ao sinistro par, totalmente indesejável por parte dos estranhos, queriam era ver um bom barraco e esta impediria, entretanto Val ignorou a aproximação da criada e subiu ao palco tomando o microfone do vocalista: - Senhoras, e senhores, meus amados convidados, eu sinto muito, mas a festa acabou, todos tem que ir embora agora, porque eu preciso velar e enterrar o corpo do homem com que eu acabo de casar... - E antes que alguém manifestasse qualquer reação ela prosseguiu. - Sim, porque acreditem ou não, ele morreu, neste momento em que eu estava esperando ele para cortar o bolo, ele está morto, isso não é ótimo? - Algumas senhoras desmaiaram, deviam ser parentes, outros sentaram, uma empregada deiou escapar um gritinho, enfim o burburinho foi geral. - Então gostaria que todos comparecessem ao enterro, porque pensando bem haverá apenas enterro, sem velório, haverá salgadinhos e distribuição dos presentes que ganhei de casamento... É só, obrigado e até logo.

Sem entenderem muito bem, evacuaram a zona de guerra, Selina sentou a ver os serviçais limparem o local, a noiva subiu já abrindo o vestido e tirando a grinalda, a banda se desmontando, roubando alguns salgados... Num último gesto a jovem informou:- daqui a meia hora, sobe no escritório onde ele está, vamos conversar.

Num gesto de cabeça e nenhuma tensão Selina afirmou, dado os trinta minutos subiu ao escritório, quase quebrou o salto ao pisar no primeiro degrau da escada. Valquíria já estava lá, trajada de ser humano simples, embora com o brilho especial que sempre mantivera, nenhuma lágrima de vestido rosa tomara que caia esperava a tia ao lado do corpo com um molho de chaves em mãos, impaciente, como se estivesse sozinha, não dando a mínima para o marido morto. Uma música clássica, o ‘bolero de ravel’ fazia a trilha do momento.

- Viu o seu porta-canetas que ganhou do papai?

- É claro que vi, foi a primeira coisa que vi quando entrei... A minha agenda também!

- E por acaso, existe alguma explicação pra isso, ou foi apenas prazer? – Valquíria foi direto ao ponto insinuando o esquife com os olhos.

- Claro que teve, tenho prazeres loucos, mas com certeza este não é um deles...

- Foi com o estilete rosa choque?

- Foi, você sabe que foi, agora deixa te contar uma história, o motivo, o acúmulo de motivos por qual tudo aconteceu...

O bolero de ravel, seguido da quinta sinfonia de Bethoven, Franz Haydn, Luchesi, Weber, clássicos, violinos stradivarius. As consoantes rebatendo nos pilares, as vogais percorrendo os corredores.

Val não fez uma pausa, nenhuma interrupção, não alterou-se sequer um segundo.

- Agora você entende?

- Vindo de você entendo, mas também não tinha importância, eu não o amava. Fazia um mês que tínhamos nos conhecido, tudo foi armado ás pressas, porque desconfiei que você vinha...

- Ah então o problema é comigo?

- Você está cansada de saber que sempre é o problema, nós sempre somos o problema nesta família. – Valquiria sentiu uma profunda vontade de abraçá-la ao proclamar o dito. Conteve-se – Mas você está aqui por causa daquele tesouro. E meus planos não deram certo. Eu achei mesmo que você vinha e resolvi casar pra depois sair em lua-de-mel e nunca mais voltar, daria um jeito nele no meio do caminho, eu viajava amanhã, levando o tesouro, mas você tinha que chegar. – Valquíria fez carinho nos cabelos do defunto.

- Para com isso, ele está morto. Mas foi bem pensado, e o que é o tesouro, está escondido onde?

- Está guardado, é pequeno, e sabe do que mais? Acho que talvez nem seja dinheiro. É possível que seja uma jóia, algo pessoal do tipo, e nada do que a gente imagina.

- Você nunca viu? Ah Valquíria deixa de ser retardada!

- Não, não, esqueceu que ela disse que deveríamos abrir juntas? Então, já que foi palavra da minha mãe, eu cumpri, e esperei como ela pediu...

- Então vamos lá. – Selina levantou-se animada e puxou a sobrinha pelo braço.

- Não, não é assim, ela disse que tem que ser num caso de estarmos precisando!

- Eu estou precisando... Não sou mais rica como antigamente querida, meus maridos milionários morreram todos e vai demorar até conseguir outro.

- Esta casa também é sua, o meu dinheiro também é seu... E a caixa onde está trancada, e não tenho idéia de onde está a chave, desconfio que mamãe a enterrou com ela. E não estou afim de quebrar a caixa.

Selina Castelão não acreditava nas palavras dela, a olhou atarantada.

- Eu sei que parece absurdo, parece não, é um completo absurdo, mas não posso fugir da verdade. E no mais a curiosidade não me persegue, até o momento que precisar deixarei lá. Eu vejo como algo simbólico, de respeito pela minha mãe.

- Sim, de respeito por Jucélia. – Repetiu a mais velha calculadamente, acalmando-se, conformando-se... (teria de esperar e talvez nem fosse dinheiro, mas o dinheiro da sobrinha também era o dela)

Em instantes toda cidade sabia do falecimento do pobre noivo, jornais locais e regionais noticiavam, toda imprensa de alguma forma estava lá... nem que fosse pelas fofoqueiras de plantão. Por falar nisso, várias delas estavam lá, conhecidas, desconhecidas, O caixão fechado, ele não tinha parentes por perto, não se daria o trabalho de avisar aos distantes. Se casara com ela por aqueles cruciais motivos, não merecia nenhum funeral digno de gente, estavam fazendo mais do que deviam, e ele continuava promovendo despesas, já que os serviços não foram de graça, e um novo terno foram indispensáveis (embora o caixão tenha sido fechado para o velório, alguém poderia ver o ferimentos no pescoço). Os empregados estavam todos condicionados a contar um causo absurdo e barato de que o moço tivera um ataque cardíaco naquele escritório, Selina, e Valquíria interprtevam suas personagens sofredoras, insistentemente choronas, que a qualquer pergunta (principalmente polícia e órgãos afim) dramatizavam “a dor da perda pelo ente querido”. Todo o teatro não durou mais que duas horas,m era já madrugada, as protagonistas estavam exaustas, e de preto, óculos de sol, as 4 da manhã de um domingo enterraram o corpo, Selina torceu o pé no degrau antes de sair, apoiou-se em Val para não cair, acabou que caíram as duas, rolando, descendo de bunda escada a baixo, ambas seguraram o riso e como que ensaiado olharam-se e soltaram um guincho de choro, continuando o cortejo. O cemitério parecia não chegar mais, e não era anexo a igreja como sempre esperado em cidades não muito grandes. Selina aproveitou para reconhecer a área já habitada, os lugares por onde namorara, escondera-se, divertira-se, fora feliz, e estava voltando a ser! Selina e Val perceberam que era possível serem amigas, viverem num conto de fadas onde os parentes almoçam juntos aos domingos e se presenteiam em respectivos aniversários, era possível serem pessoas comuns numa sociedade anormal. Riram um pouco sozinhas num dos carros da família em direção ao enterro.

- Eu não te falei, mas existe uma pessoa que sabe do tesouro. – A voz de Val era muito, muito calma e empastada pelo choro forçado. – Dna. Julinha,aquela senhora que cuidava de mim quando criança, mamãe contou a ela, ela sabe o que é, se quiser perguntar.

- Sua desgraçada! Eu já estava conformada de não saber, de levar uma vida comum de ‘barbie’ doméstica, e ‘socialite’ com pudores, e você abre a boca pra falar isso!... Eu vou procura-la sim, e quando eu souber, quer que eu lhe conte?

- Lógico! Se você sabe, eu também tenho que saber.

- Ok, estacione ali. – Haviam chegado. – Ela provavelmente mora na mesma casa ainda, vou procurá-la e te digo o que é, custe o que custar, ela vai dizer.

A Ânsia por encontrar a tal Dna Julinha, a velhinha de cabelos brancos, semelhante a uma bruxa, enrugada sábia, medindo não mais que um e cinqüenta, a tomara por completo, era seu corpo e mente únicos no objetivo de encontrar a velha. Antes de enterrarem o esquife, Val continuou com o exacerbo, e jogou-se duas vezes em cima do caixão, rachando-o a tampa. Selina quase morrendo de rir viu uma senhora caminhando no cemitério por entre as sepulturas, corcunda, de muletas, calculava as pisada dentre as lápides, Selina reconheceu, era Dna Julinha,a mulher da sua vida, quem precisava para continuar sua existência. Foi devagar, discreta (embora fosse isso quase impossível) atrás da mulher, esta parou em frente a uma cova, acariciou o cimento frio como se fosse um filho, a espiã de salto alto aproximou-se e a cumprimentou receosa, teve recíproca, fizeram-se perguntas de praxe “tudo bem?” “Tudo e você?” “ótima, obrigado. O que anda fazendo da vida?”... E coisas do tipo, até num esguio olhar sorrateiro e involuntário leu o nome da lápide: JUCÉLIA CASTELÃO SCHÜTZ, ‘Saudades da Família’. Olhou as fotos e reconheceu os olhos brilhantes, o rosto de maçã, poucas rugas, emoldurado pelos cabelos loiros cacheados. Era o túmulo de sua irmã, mal iluminado por um poste luxuoso. As lágrimas foram inevitáveis, sentia um aperto, vontade de tê-la ao lado, escutar sua voz e admirar suas roupas bem cuidadas e suas unhas bem feitas. Era a primeira vez que via, que visitava, e sem querer. Era tão estranho o nome dos Castelão em um túmulo, acostumara-se a ver os de seus, tios, de seus pais, de parentes distantes, mas o de sua irmã era tão dolorido, tão inacreditável, porque era uma outra versão dela mesma, a mulher que sempre quisera ser e não conseguira, era seu sonho realizado de ter um marido (fixo), raízes em uma cidade, filhos, tudo realizado no outro ser, por isso tanto a admirava.

- É sobre ela que eu queria falar Dna Julinha. – Agora era Selina quem fazia carinho na lápide, arriscou uma oração, mas ao invés disso preferiu conversar. – Eu queria saber o que é o tesouro que ela me prometeu? – Ela referiu-se a sobrinha com leve menção expressiva.

- Está numa caixinha no quarto que ela ocupava. – Como Dna Julinha era seca nas palavras! – Eu não sei o que tem lá dentro, ela nunca se abriu muito comigo, mas o que disse foi isso. E que a chave da caixa seria enterrado com ela, e foi enterrada, mas Valquíria não sabe.

- Então quer dizer que tem uma chave com os restos de minha irmã nesse lugar aqui?

- Sim, mas não mexa, se precisar, quando precisar quebre a caixa. Não desrespeite o descanso de Jucélia.

- Não farei Dna Julinha. – Realmente não tinha intenção. – Não o farei.

Todo o cortejo do enterro em que estava, já havia se desfeito, apenas Val a esperava sentada em um banquinho ao lado de uma capela, os coveiros lacravam a tumba.

- Eu vi o túmulo de sua mãe.

- Eu vi que você viu.

Relatou os relato relatado por Dna Julinha, Val nem se espantou, parecia ineficaz a tudo aquilo, após o primeiro instante em que pisaram na mansão exalaram ótimas gargalhadas. Sentaram-se numa poltrona da sala de estar, empregadas temerosas espiavam alegres.

- Val, estou morta de cansaço, nem parei depois que cheguei de viagem. Acho que vou subir e dormir.

- Eu também estou morta, mas vou ficar por aqui, sabe porque?.. Olhe em volta!

Selina espichou os olhos até o salão central. Estava limpo, impecável, a mesa ainda com salgadinhos da festa, bebidas finas, a banda com todo equipamento montado. Sim, Valquíria era louca e pretendia uma festa com tudo aquilo.

- Tudo bem, o que eu tenho a perder não é mesmo? – Selina também era louca.

- E convidei alguns parentes sabe, uns poucos, são menos chegados, mas estavam no casamento e no enterro também. Devem estar chegando.

Mal acabou a frase e campanha soou forte. Entrou um pouco de gente bem vestida e animada. A banda tocou e puseram-se a dançar e conversar. Rir e comer, as anfitriãs imundas, cheias de dores. Tocavam ‘hits’ de todas as épocas, era extremamente empolgante, e para melhorar começaram uma guerra de comida. Tortas, doces, cremes (o melhor eram os cremes! Sujavam mais!) Invadiram toda sala de estar e os salões de entrada, tradicional de festas. Sujos, alguns irreconhecíveis. Bailavam tentando ataque, rindo, lamentando em falso, escaparam somente a banda e os criados. De mais, era uma grande confusão, e eis então, que por ventura da brincadeira, equilibrando-se nos restos ao chão, Selina viu uma pessoa distante, familiar sentada tranqüilamente, divertia-se em ver a festa. Era Jucélia, sua irmã morta observando a saborosa comemoração, fitava a irmã com deveras harmonia.

... CONTINUA...

Douglas Tedesco
Enviado por Douglas Tedesco em 06/09/2007
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