O PADRE

O apartamento era daqueles que tinham mais de 20 anos de construção. Mas Josué via seu pai animado. Sim, Félix observava a sala três ambientes, peito estufado. Certamente orgulhoso e aliviado. Estavam em Santos, pai. Sim, na cidade de Pelé! E perto do Gonzaga, o grande coração da cidade. Não, não era o centro, tinham lhe dito os colegas da escola; “o Gonzaga! O Gonzaga!!!”

Sim, pai, você merece! Depois daquele baque de ter sido transferido de São Gonçalo, Rio de Janeiro. Sim é um alívio.

-Ufa, uma alívio, queridas filhas, para eu ser um pai melhor. Sim, vou ser sim. Um alívio querida esposa. Sim, serei um marido melhor pra você. Estarei mais calmo. Sim.

-É, pai. Isso mesmo. (Agora é só a gente, pai, nossa família, sem aqueles caras do governo federal, finalmente, só nós!)

-Você foi muito radical, Félix! – Disse Dindinha na frente de todos, enquanto Josué colocava sua caixa de vinis do Bee Gees no sofá (Meu Deus, minha mãe não se controla. Tinha que ser sempre assim. Não dava um tempo. Tinha falado a viagem toda na Kombi)

-Tá bom, Dinda. Realmente cumpri meu dever, mas deveria ter relevado. Fui radical mesmo.

-Mãe - Disse Josué. (Pára, mãe, pára!)

-Pai, lavei e montei o filtro –disse minha irmã Paulina (Ela sabia como ninguém defender o pai. Mas por quê só ela tinha que fazer aquilo?

Que raiva, que raiva. Muita raiva. Droga, droga, droga! Quando lembrava do que motivou a transferência do pai, não o podia culpar. Ninguém podia. Mas, droga, não conseguia se expressar direito. Iria dar confusão de novo! A raiva, a raiva. Esse monstro, esse dragão que queima tudo, coração, pulmão. Tô sem ar! Droga, droga!

Josué pegou a caixa de um jeito estranho e ela caiu no chão.

-Droga! Droga!

-Filho, calma. – Disse Félix. – Eu te ajudo! Ta tudo bem. Estamos em família agora. Juntos. Agora tenho uma novidade. Agora não terei aquele pessoal querendo me obrigando a passar gente sem vacina, no navio! Agora mexerei só com papelada!

-Sim, pai. (Sim era mesmo. Agora seria diferente, O pai teria mais tempo de jogar tranca comigo. É isso!)

-O Botelho me prejudicou, mas me ajudou também. Posso ver.

-Ah, vai, Félix! – Disse dona Dinda, partindo para o quarto, carregando a trouxa de roupas. Minha irmã Mara a acompanhou, sempre calada, subserviente. (Droga, droga, droga!!!).

-Não interessa, filho. O pai não deixava passar ninguém. Podia ser mesmo o presidente. Mas o que eu faria. E se ele tivesse com doença? Febre amarela . De quem seria a culpa se eu o liberasse? Claro que ria minha! Entende? Seu pai segue o correto. Sempre fui assim. E ele me transferiu, mas tudo bem!

-Sim pai.

Depois de arrumarem tudo, Josué pensou em chamar o pai para jogar trança, mas ficou com pena. Ele estava cansado demais. Tanto que desmaiou rapidamente no sofá, minutos depois do jantar. Dinda veio pegá-lo.

Josué também se recolheu, depois que as irmãs terminaram de arrumar a sala com ele.

Na cama, olhava o teto, quando, de súbito, captou pelo lado esquerdo do olho, um movimento. Era a irmã mais nova passando pelo corredor. Estava escuro. Josué percebeu que a irmã estava dormindo, indo na direção da cozinha. Ela iria tomar água. Fazia isso duas vezes por semana. Ele passou pelo banheiro e acendeu a luz para reduzir a escuridão.

Droga, droga, droga! A luz não chegava até a cozinha. Já não podia ver Mara. O trauma do escuro. Droga. Droga, pare com isso. Droga. Esmurrou a parede. Como uma onda de frio o ameaçou, gelando-lhe o peito, retomou as energias. (Não há nada no escuro, só minha irmã. Isso é normal! Sonambulismo é assim mesmo. Aquele imbecil do Carlinho falou aquela coisa de demônio do sonho; Droga, droga, imbecil!) .

Então, partiu atrás da irmã.

Na cozinha, um silêncio mortal. Tinha uma luz na torneira e ela iluminou sua irmã, que daquela vez não tomou água. Ela voltou ao quarto.

Josué a acompanhou e voltou à cozinha.

Aquela luz, aquela luz. O que era? Droga! Droga!

Quando chegou à cozinha, a luz estava lá. Era um “flash” de luz vindo de um prédio vizinho. Bobão, bobão. Quem é esse mané?

Ele se abaixou, ficando apenas com os olhos acima da janela da cozinha tentando localizar de onde vinha aquele bobão que queria arranjar encrenca.

Imbecil, imbecil!

Para sua surpresa não havia mais nada. Tudo estava apagado a frente.

Josué voltou para a cama, depois de ficar alguns minutos olhando, olhando, procurando aquele ridículo.

De seu quarto, era possível avistar a porta da cozinha. Decidiu ficar um pouco acordado. Algo em seu inconsciente parecia lhe dizer que aquela luz podia reacender e então partiria para pegar aquele bobão!

Nada.

Aquilo o perturbou muito. Bobão, bobão. Droga. Quem era aquele cara? Por quê estava fazendo aquilo?

Mas Josué, conseguiu dormir, meia hora depois de desencanar.

De manhã comentou com seus pais que apenas disseram que deveria ser alguém com uma daquelas luzes lasers, o que não soou muito convincente. Ele conhecia laser (Não era, droga. Não era laser!).

Enquanto tomavam café da manhã, Josué olhava o prédio da frente. Era muito próximo. Como seus pais podiam ter mudado para um apartamento que tinha a cozinha tão próxima daquele jeito da sala de outras pessoas? Droga. Por isso. Por isso foi tão barato. No Gonzaga, grande porcaria! Aqui também tem esses maloqueiros! Safados, pilantras!

Enquanto descia o elevador, iria à escola, mas resolveu que tiraria a dúvida com o porteiro do prédio da frente, ante de ir para o ponto de ônibus. Pensou em como perguntaria para não soar estranho. Como? Como? Droga! Esse babaca vai me achar estranho! Sim, sim, já sei! E plantou-se defronte ao prédio e esperou alguém entrar. Mas logo percebeu que não havia porteiro no prédio da frente. Entrou com facilidade junto com um senhor apressado. Ele era de uma silhueta estranha. Lívido, fantasmagórico. Droga!

De repente se lembrou das missas que freqüentava com a mãe. Lembrou da Santa Ceia. Era um padre, sim. Era isso! Então Josué seguiu o estranhão. Havia algo que o fascinava naquele senhor. De algum modo ele lhe parecia a chave do mistério da luz. Sim. Era ele! Seguir o padre. Seguir

-O que ele está fazendo (Aquilo era surreal. Aquilo que vi, meu caro. Só eu vi! Pode me chamar de doido, não vai acreditar em mim, mas eu vi. Droga, eu vi!).

Quando Josué se preparava para subir as escadas que ficavam na lateral direita do prédio avistou o padre pulando da janela do quinto andar. Ele correu, voltou, assustado.

-Meu Deus ele morreu. É certeza. Droga, droga, droga!

Então, desceu, rápido, rápido!

Lá embaixo, nada de corpo. Não, não. Está errado. Eu vi!

Ele se aproximou, debaixo da janela do padre. Ficou olhando pra cima. (A janela, a janela dele. Ela é a de frente à minha. Foi ele! A luz, a luz!).

Depois das aulas, voltou para casa, pensando que naquela noite tiraria tudo a limpo. Sim, ele vai iluminar a cozinha. Vai sim.

De noite, sem cartas, madrugada rolando, mesmo horário de ontem. Isso, 3:15 horas. É agora!

Mas nada. Não havia luz nenhuma. Passou-se meia hora e Josué já estava quase fechando os dois olhos, um dele ainda se mantinha entreaberto. Até que se fechou completamente.

Foi naquele momento que ouviu as batidas fortíssimas e desesperadas na porta.

Ninguém pareceu despertar. Droga,. Vou lá. Sou eu mesmo. Que isso? Meu, que isso? Josué podia sentir algo lhe chamando à porta. “Venha, venha aqui meu rapaz” . Era uma voz fantasmagórica que lhe penetrava a consciência, o espírito, o gelando mas o cativando ao mesmo tempo. “Venha, meu rapaz”.

E Josué foi. Olhou no olho mágico. Não podia acreditar no que via. Um homem de dois metros de altura, lívido, vestindo uma batina marrom, sandálias e segurando uma lanterna estava parado imóvel em frente a sua porta.

Em um gesto automático, não sabendo se estava com sono ou se mesmo estava tomado pelo sonambulismo da irmã que lhe parecia um doença de família, agora, estranho, estranho, mas foi.

Num átimo, automático, subserviente, ele virou a chave e, em seguida, a maçaneta. Não havia mais ninguém do outro lado da porta. Josué checou o corredor, andou de um lado a outro. Nada. Não havia mais nada. (Mas o padre estava ali. Eu sei, eu sei).

Josué ainda tentou contar a história para sua irmã mais velha que não acreditava muito no que ouvia. (Como que alguém pula de uma janela do quinto andar e não morre, era o que ela pensava, sim, era isso. Eu sei, eu sei. Droga, mas eu vi, eu vi, eu vi. Eu, eu, eu!).

Depois de algum tempo, Josué resolveu contar para a mãe, que gostava dessas histórias de terror, fantasmas e etc. Sim, dona Dindinha prontamente foi obter informações na vizinhança sobre moradores do apartamento do quinto andar do prédio vizinho.

Resolveu nem contar para o filho a história que tomara conhecimento de um padre que acabou caindo do quinto andar quando tentou pegar uma rara lanterna de sua coleção particular de antiguidades que caíra da janela. O interessante é que a lanterna tinha sido jogada por um gato que invadiu o apartamento dele.

Hoje, encontrei essas duas histórias. Uma narrada na fita cassete de meu irmão, a qual achei por engano achando que era alguma gravação antiga minha. A outra, umas notas de minha mãe falando sobre o episódio, no diário dela.

Contando a você, misturo os pensamentos dos dois, eu sei. É proposital. Tento dar um sentido a tudo isso.

Afinal minha mãe faleceu. E eu não sei mais no que acreditar. Sei que minha irmã Mara também não pode dizer nada sobre a luz. Não quero atrapalhar a vida dela também sobre um assunto assim.

É, meu irmão, hoje sequer nos vemos mais. Você sempre tão nervozinho, falou muita besteira pra gente. Mas por quê tinha que me deixar essa carta? Por quê?

Mãe, e essa história, do outro lado, será que é verdade? Será que existe uma luz mesmo que transpassa as dimensões? Será que os céus passam algo?

Talvez eu simplesmente possa pensar uma coisa: há perigo nas pequenas coisas. Um simples gato pegando algo é um perigo que pode custar uma vida.

Alexandre Scarpa
Enviado por Alexandre Scarpa em 28/09/2018
Reeditado em 30/09/2018
Código do texto: T6462486
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