Autodestruição

A bandeira vermelha e negra da Kriegsmarine ainda tremulava orgulhosamente na popa do "Admiral Graf Spee" quando ele adentrou as águas barrentas do estuário do Rio da Prata, noite alta de 13 de dezembro de 1939, rumo ao porto de Montevidéu. Mas, mesmo um passante eventual das "ramblas" que contornavam a costa da capital uruguaia, ora desertas, não poderia deixar de notar as marcas no casco da embarcação, decorrentes do impacto de fogo de artilharia: o "couraçado de bolso" nazista havia escapado por pouco da perseguição de três navios de guerra da Marinha Real Britânica em águas internacionais; com sérias avarias no sistema de combustível, sua única opção viável fora pedir abrigo ao neutro Uruguai. Após ancorar e entrar em contato com as autoridades locais, o capitão Hans Langsdorff retornou à ponte de comando para repassar as opções junto com seus oficiais mais graduados, os tenentes Klengel e Augenstein.

- Poderíamos tentar seguir para Buenos Aires... - sugeriu o tenente Andreas Klengel. - A Argentina também é um país neutro, mas muito mais simpática à causa do Reich do que o Uruguai, que têm uma forte presença britânica...

- Sim, estou ciente disso - retrucou o capitão Langsdorff com ar cansado. - Mas pelas cartas que temos do Rio da Prata, a profundidade do canal de navegação não permitirá que uma embarcação do calado do "Admiral Graf Spee" atinja o porto. Ficaríamos encalhados em algum ponto do rio, com o risco adicional de sermos capturados pelos uruguaios, caso decidam apoiar os Aliados.

- E se tentássemos voltar para mar aberto? - Indagou cautelosamente o tenente Erhardt Augenstein.

Os outros dois oficiais o encararam de testa franzida.

- Pode ser que os britânicos estejam blefando, e que não haja nenhuma força-tarefa com porta-aviões rumando para cá neste momento, conforme afirma nossa inteligência - insistiu Augenstein.

Langsdorff deu de ombros.

- Sabemos que os dois cruzadores da Marinha Real estão nos esperando no limite das águas internacionais... estão queimando óleo no mar justamente para nos lembrar que não pretendem sair dali.

Olhando pelas janelas da ponte de comando do couraçado, era fácil constatar o que o capitão dizia: uma linha de fogo no horizonte escuro marcava a posição dos navios britânicos.

- É apenas pressão psicológica - reiterou Augenstein. - Deveríamos sair e enfrentá-los!

- Certo - acedeu calmamente Langsdorff. - Saímos, os enfrentamos, e supondo que consigamos escapar, para onde iríamos com o sistema de combustível destruído? Quanto restou nos tanques?

- Menos de 12 h em velocidade máxima - reconheceu Augenstein, baixando a cabeça.

- E isso nos deixaria à deriva, no meio do oceano, um alvo fácil para a Marinha Real - atalhou Langsdorff gelidamente. - Não vou sacrificar minha tripulação por nada.

- Tampouco poderemos continuar em Montevidéu - ponderou o tenente Klengel. - Pela Convenção de Haia, só nos é permitido permanecer ancorados nas águas territoriais de um país neutro por 24 h...

- Exceto em caso de avaria, que é precisamente o nosso - atalhou Langsdorff. - Eu pedi duas semanas aos uruguaios...

- E qual foi a resposta, capitão? - Indagou Klengel.

- Eles se recusaram a conceder - informou Langsdorff com resignação. - Mas nos deram 72 h para partir.

Os dois subalternos entreolharam-se. Finalmente, Augenstein perguntou, timidamente:

- O que vamos fazer, senhor?

Langsdorff ergueu a cabeça e ficou em silêncio por alguns instantes, antes de declarar:

- Eu vou falar com Berlim.

* * *

Na noite de 17 de dezembro de 1939, o "Admiral Graf Spee" deixou o porto de Montevidéu e entrou no canal navegável do Rio da Prata rumo à Buenos Aires, 170 milhas náuticas ao sul da capital uruguaia. Aquele, contudo, não seria seu destino final. Ao chegar ao limite das águas territoriais do Uruguai, o capitão Langsdorff mandou parar as máquinas e evacuar o navio. Barcaças argentinas aguardavam mais além, para trasladar a tripulação alemã para o porto de Mar del Plata. Quando haviam se afastado a uma distância segura, cargas explosivas detonaram no casco do navio, afundando parcialmente o couraçado nas águas rasas e barrentas do Rio da Prata. Enquanto faziam a travessia rumo ao lado argentino, os alemães contemplaram em silêncio o seu navio que queimava no meio da correnteza, deitando rolos de fumaça negra e chamas alaranjadas para o céu escuro.

Em Buenos AIres, Langsdorff e seus oficiais foram abrigados no Hotel Naval, enquanto mais de 1.000 tripulantes do couraçado foram distribuídos por vários locais de confinamento, aguardando serem repatriados para a Alemanha. Apesar do desfecho da história não ter sido exatamente otimista, Klengel e Augenstein tentaram animar o seu capitão, que andava ensimesmado e pensativo desde o momento em que haviam abandonado o "Admiral Graf Spee".

- A guerra mal começou - ponderou Klengel. - Em breve, voltaremos à Alemanha e entraremos em ação novamente!

- Não foi sua culpa, senhor - aduziu Augenstein. - Conseguiu salvar as vidas da maior parte da tripulação... as baixas que infligimos aos britânicos foram seguramente maiores.

Langsdorff apenas ouvia, calado. Em dado momento, balançou a cabeça em concordância.

- Agradeço sinceramente a vocês pela lealdade e pelo empenho... mas no momento em que vi o nosso navio em chamas no meio do rio, foi como se minha vida houvesse terminado ali. Eu não deveria tê-lo abandonado. Um capitão deve afundar com o seu navio.

Naquela noite, 19 de dezembro de 1939, Langsdorff avisou aos seus oficiais que não jantaria com eles. Fechado em seu quarto no hotel, escreveu uma série de cartas, para sua família e superiores. Releu cuidadosamente em voz alta parte da última delas:

- Agora, apenas a minha morte pode provar que as forças combatentes do Terceiro Reich estão prontas para morrer pela honra da nossa bandeira. Eu, unicamente, assumo a responsabilidade pelo afundamento do encouraçado "Admiral Graf Spee". Estou feliz por poder pagar com a minha vida por qualquer possível repercussão sobre a honra da bandeira. Irei encarar meu destino com firmeza de fé na causa, no futuro da nação, e do meu Führer.

Satisfeito, fechou a carta em seu envelope e abriu o estandarte de batalha, que havia salvo do encouraçado, sobre a mesa do quarto. Acariciou o objeto com tristeza e depois sentou-se à sua frente, a pistola Luger de serviço na mão direita.

Instantes depois, do lado de fora do quarto trancado, ouviu-se um estampido.

- [02-10-2018]