Ano Zero

Eu não havia caído no truque de dar um passo à frente, quando os alto-falantes da estação de Sisophon exortaram os recém-chegados a se identificarem como "especialistas". O Angkar estava procurando especialistas - médicos, engenheiros, professores, arquitetos, estudantes de nível superior e todo tipo de técnico especializado - mas não exatamente para colocá-los a serviço da nação, haviam me advertido, antes que eu entrasse no trem que me conduzira de Phnom Penh até ali. Quem havia se declarado como "especialista", foi retirado do grupo principal e embarcado em vários caminhões do exército, sob vigilância armada; eventualmente, voltei a ver alguns deles nos meses subsequentes. De outros, jamais tive notícias.

Mas o serviço de alto-falantes era apenas a primeira peneira que o Angkar usava para filtrar os elementos que considerava potencialmente perigosos no desenvolvimento de sua nova sociedade, "a grama que precisava ser queimada para que a nova grama crescesse". Como descobri logo em seguida, usar óculos também era considerado suspeito pelo Angkar, particularmente se você não fosse uma pessoa idosa. Foi precisamente isso o que me disse um representante do Angkar, durante o interrogatório a que fui submetido. O homem parecia um militar, ou talvez ex-militar, mas vestia o característico uniforme de camisa e calças pretos, com o cachecol de xadrez branco e vermelho à volta do pescoço. Isso, por si só, não queria dizer nada, pois este era o uniforme-padrão de todos os cidadãos no Ano Zero, diferenciando-se as mulheres apenas por usarem uma saia longa, mas ele apresentou-se como um quadro do partido.

- Sou Neak Roth, do Angkar - apresentou-se, quando me sentei à sua frente. E, com meu documento de identidade em mãos, indagou:

- Você é Moul Vannak?

- Sim, sou Moul Vannak - acedi.

- Mostre-me suas mãos, Vannak. Palmas para cima.

Eu sabia precisamente o que ele queria ver e já tinha uma resposta preparada.

- Sem calos, Vannak? O que você fazia em Phnom Penh?

Não tive tempo de responder, pois ele engatou outra pergunta:

- Por que usa óculos, Vannak? Você tem algum problema para... ler?

O rosto do homem era impenetrável, mas a ênfase na última palavra me deu uma pista do que seria uma resposta aceitável no Ano Zero:

- Problemas para dirigir. Eu era taxista.

Isso também justificava a ausência de calos, imaginei.

- Taxista dos grandes hotéis que recebiam turistas estrangeiros? - Neak Roth semicerrou os olhos.

- Eu fazia ponto na estação de trens de Phnom Penh - retruquei. - Muito poucos turistas estrangeiros.

Neak Roth entrelaçou os dedos sobre a mesa, enquanto avaliava minha resposta. Em seguida, sem desviar os olhos do meu rosto, abriu uma gaveta à direita da escrivaninha. Temi pela minha vida, pois ele poderia ter uma arma guardada ali, mas após um momento que me pareceu uma eternidade, exibiu o que apanhara: uma folha de papel, datilografada. Segurou-a com as duas mãos, franziu a testa como se o conteúdo fosse difícil de entender, e pronunciou, lentamente:

- I will kill you in the morning.

Ficou esperando pela minha reação, mas eu sabia que qualquer lampejo de compreensão provavelmente iria acelerar meu presumido fim.

- Você entendeu o que eu acabei de dizer? - Indagou finalmente.

- Era um idioma estrangeiro, creio - retruquei. - Mas não sei o que significa.

Neak Roth balançou a cabeça, parecendo satisfeito.

- No Ano Zero não precisamos mais de motoristas de táxi, você sabe, não é, Vannak?

- Estou ciente disso - afirmei, sem subterfúgios.

- Amanhã você irá começar sua reeducação - declarou Neak Roth. - Vou colocá-lo numa equipe de corte de bambu... você será um elemento útil para a sociedade que estamos criando.

- Agradeço pela oportunidade que estão me dando - foi minha resposta, e era sincera.

No Ano Zero, se lhe permitem optar entre levar uma bala na cabeça ou cortar bambu dez horas por dia, agradeça por ainda haver direito de escolha.

- [13-11-2018]