Vítimas de Si - 4ªparte

*Continuação das partes 1,2, e 3 já publicadas neste site.

Ficaram ambas a se encarar, como se aquilo fosse uma coisa muito normal (não era!) Selina deu um passo a frente e Jucélia expandiu os olhos num gesto de repreensão, e para completar este disse ‘não’ com um dedo indicador, acompanhado de um sorriso suave... Ela quase não tinha rugas, estava tão bem! Uma gorda fatia de torta atingiu-lhe a nuca e Selina saiu do transe, num piscar olhou novamente e lá mais nada estava. Mesmo atordoada continuou a brincadeira.

Pareciam que os dias iriam passar-se arrastando lerdamente, como uma lesma preguiçosa sem girar o globo contra o astro rei, mas estava enganada: de bem com a outra dona da casa, tudo ia de vento em popa. Selina visitou todos os cômodos da residência, mandou as criadas fazerem uma boa faxina por aqueles ambientes que há séculos já não viam limpeza. Dançou sozinhas sucessos dos Lp’s de uma antiga coleção da família fez muitas compras, visitou o local de trabalho de Valquíria: Era dona de uma fábrica de materiais para artesanato. Não precisava , mas trabalhava e gostava disso. Nesta visita, discutiram:

- Val, porque isso? Fica aqui esquentando cabeça, se estressando. Uma coisa que você não precisa.

- E então vou ficar fazendo compras o dia todo como você? – Ela estava realmente estressada. – Tenho que ocupar a cabeça com coisas melhores do que ficar mandando nas empregadas.

- Ok, eu comprei algumas coisas pra você, prove quando chegar, lhe espero para jantar?

- É claro, qual o prato?

- Pato assado como principal, e acompanhamentos, aquelas coisas de rico sabe, estou com saudades.

- Odeio pato assado, você sabe, mande fazer outra coisa para mim.

- Oh Val, temos que aprender a conviver com coisas que não gostamos, há quantos anos eu faço isso, bem antes de você nascer eu já fazia.

- Sim, temos, mas as que podemos evitar, evitamos, não é mesmo?

- Não é mesmo! Você vai adorar este pato, vai comer comigo, isto vai dar um sabor especial.

- Para, por favor, vai me dar no mínimo é uma indigestão! Mande fritar o pato!

- Tudo bem sua chata, pato assado pra mim, e frango frito pra você. Algo a mais ‘Dna Valquíria Castelão?’ – O deboche gritava neste tratamento.

- Não, agora venha e vamos visitar esta fábrica que você tanto quer.

Visitaram e Selina aproveitou para escolher algumas coisas para iniciar um pequeno ateliê de alguma coisa. Val tinha razão: precisava distrair a cabeça com outra coisa que não fosse comprar e mandar em empregados.

Amigas a visitaram, a maioria falsas amigas, queriam apenas ver se era ela mesma. A que vinha para especial fato ela punha armadilhas pelo caminho, as criadas a mando da dona da casa viravam xícaras de café nos luxuosos tecidos das vestes visitantes, colocavam nas salas, bacias com água de peixes podres, e coco de cachorro. Toda forma que as fizesse sofrer era bem vinda. Selina continha risadas, divertia-se só após a partida interessante.

Mais dias passaram lentamente... Passou a fazer um caminho diário, algumas voltas pelas ruas das redondezas, onde então era alvo das fofoqueiras de plantão que arranhavam seus cotovelos nos muros e janelas pra saberem das noticias quentes, ela passava, elas comentavam, mesmo que não houvesse motivo, era preciso comentar, tinham de alimentar a sede de fofoca, então bastava inventar alguma coisa, e resolvido. Após pegava o carro e ia para a fábrica de Val, escolhiam juntas o cardápio para almoçarem juntas. Nos primeiros os gritos da discussão no escritório da diretora geral eram audíveis a quilômetros devido as discussões pelo absurdo da tia, mas precisavam ser mais tolerantes uma com a outra, aquilo já era uma certa prática. Na volta passava os pratos desejados a governanta, e assistia um pouco de televisão. Os pratos que estavam escolhendo, eram por demais gordurosos, ganhara alguns quilinhos depois que chegara ali. O almoço era realmente a melhor parte do dia, onde elas conversavam e saboreavam as delícias... Ora, ora, quem diria, logo ela contente em ter companhia para almoçar, era quase deprimente como estava aprendendo a conviver com coisas simples.

Pela tarde mexia com seu projeto de ateliê, este ficava nos fundos do terreno, após a piscina e a estufa, um pouco antes da casa de máquinas e da casa do caseiro. Ali naquela construção ampla com teto de vidro e luz forte, pintava telas abstratas, fez uma gravura que lembrou Jucélia... “Não podia ver se a chave estava enterrada com ela”. “Não o farei”. E porque não? Uma louca tentação a invadiu, fechou tudo e foi ao cemitério. Já tinha desenterrado um marido uma vez, e também o corpo de Evita Perón, ambos já putrefatos, e não se assustara, mas era sua irmão, seria milhões de vezes mais emotivo, milhões de vezes mais chocante... Admirou mais uma vez a lápide e não o fez... Ainda não o fez, porque tomaria coragem.

O ateliê era o melhor e o pior lugar para ficar, pois ao redor era lindo pelas matas e plantas, relaxava ao utilizar de sua concentração e mãos em busca da arte. Contudo, a fazia lembrar do que já tinha vivido, e achava por demais incrível, o cúmulo do surpreendente o quanto sua vida, sua ‘VIDINHA’ estava sendo “fraca”, pequena, logo ela que era tão grande, sabia de tanto, enfornada numa casa grande, a rabiscar em telas, comer bem, dar voltas para velhas fofoqueiras e esperar uma mulher linda de cabelos para almoçar e jantar... Oh, claro, na sorte também tomar o café da manhã! Que formidável, quase riu, quase chorou sozinha em frente a uma tinta resultado de misturas loucas que ela nem sabia como definir. Aquilo sim era loucura. Porque desistira do seu objetivo de estar ali? Ela queria aquele tesouro, viera obstinada a corrompê-lo e voltar ao mundo de gozo da perversidade e boemia, mas por palavras da sobrinha, de alguém, de outra pessoa ela desistira, algo que só fazia em situações extremas: desistir não fazia parte de seu vocabulário. Mas envolvia a irmã, e este era um forte motivo... Envolvia uma palavra que dera há anos atrás, e uma palavra que dera a irmã, era isto! Enfim compreendeu, embora não estivesse conformada.

Mais um ponto que a fazia bem naquele recinto, era o fato de estar esquecendo da vida de boemia, e ter melhorado a saúde (sentia que tinha melhorado visivelmente). Estava mais bonita e via as coisas a luz do dia. Era tão lindas as coisas naturais iluminadas pelo sol. Era uma lição de vida, pois o quanto, apesar de amar, ela estragara e perturbara a vida da irmã. Noites em claro por causa de Selina, por suas confusões, choros, desesperos, e apesar disso eles a perdoaram, entendia o rancor e antipatia de Val, e eles a haviam perdoado. Era fascinante, porque em caso contrário, de vice-versa, ela não perdoaria! Destruíra a vida deles inúmeras vezes, os fizera começar do zero em incontáveis situações. Fazendo dívidas em seu nome, crimes sob seu olhar envolvendo amigos... Todas as formas, todas as formas. Eram realmente muito bons, via um brilho de rancor em algumas palavras de Valquíria, mas era o ínfimo que tinha de aturar. Por que ela não perdoaria, não perdoaria. Deixou tinta pingar no vestido e sentiu uma respiração lenta em sua nuca, um lívido arrepio correu o corpo, havia só ela o ateliê mal trajado. Um vulto passou numa janela ao fundo, desconfiada vidrou olhares na dita janela, fechou tudo e se foi, rápido, receosa.

Um lugar ela adorava naquela cidadezinha: sua antiga casa, a casa onde nascera, e vivera até os 8 anos, quando seu pai enriqueceu de um prêmio na loto, prêmio imenso, cujo ajudou toda família e estabeleceu comércios e negócios que os mantinham no alto nível até hoje. Não era muito longe dali a casa. Mas por que se lembrou disto mesmo? Algumas falsas amigas estavam tomando chá naquela tarde, ela os convidara, então tudo estava normal, sem truques e armadilhas para visitas, por causa da solidão as desejava ali. Sentiu vontade de ir na velha casa, uma construção simples, de terreno grande, e lago nos fundos, a moradia em ruínas, não vendiam porque não queriam, era lembrança boa de um passado bom. Convenceu as peruas da vez, a irem até a casa. A estrada pareceu ter centímetros de tão rápido que foi a chegada.

O portão de grades enferrujadas, a casa em ruínas e tijolos caídos, vidros pelo chão, grama mal aparada, árvores despejando folhas ao chão, uma barata atravessou sob um caco de vidro, “que bom, ao menos alguém morava ali”. As amigas dispersaram-se, algumas entraram devagar e temerosas na casa, outra admirou a rua velha num todo. Selina foi ao lago, de folhas boiando, água azul, viu seu reflexo maquiado. Quando ali vivia, era tão diferente, conseguiu se lembrar do antigo reflexo, uma orquídea rosa e branco pousou no seu reflexo, tremendo a imagem. Era a Orquídea de sua infância, a que dava a todos que gostava, amava aquelas flores, elas ficavam presas num monte robusto ao caule de uma figueira... Eram vivas e pareciam sentir sua felicidade. Brincava com elas, fazia arranjos e conversava... Continuavam lindas. A casa poderia ser reformada, poderia viver ali sozinha, mas não, tiraria as boas lembranças, porque ficavam na memória e no lugar. Aquilo não era eterno, algumas coisas tinham que acabar naturalmente, sua antiga residência, a primeira delas, era uma destas coisas.

Quantas cores podia fazer com tão poucas tintas, estava pintando no meio do salão de festas na entrada, os cabelos banhados de gordura sabe-se lá do que, a roupa que já não se sabia mais a cor de quando comprara, e pingos no nariz e sob os olhos. Ria sozinha, Val a observava da sala de estar, dava dicas de como fazer isso e aquilo, abusadas, abusavam das graças contidas naquelas personalidades.

- Eu vou sair! – Havia gravidade, preocupação na voz da ruiva, que quando Selina olhou viu somente a porta aberta.

Não era a primeira vez que fazia isso, desde que chegara, todas as noites em algum momento, saía ligeira sem satisfações. O que acontecia? Porque não se abria? Mais mistério? Partiu feito um nojo humano logo atrás sem muito pensar. A segui de longe e luzes apagadas. Nem desconfiava Valquíria da perseguição, devia estar bem nervosa e aflita. As ruas conhecidas, caminhos e calçadas bem manjados. Alguém viu Selina e lhe abanou a mão, ela nem respondeu, passou o carro sobre uma pedra, xingou o mais que pode. O carro foi diminuindo velocidade, ela repetiu o ato, Val estacionou em frente a casa de Dna. Julinha, entrou sem ver nada, num assalto entrou pela porta da frente. Estava esquentando o clima, Selina estacionou noutra quadra, sorrateira, revivendo velhos tempos de criminosa, entrou no pátio e tentou ouvir do lado de fora. Nada. Até que passos cresceram, correu rápido para um esconderijo, Val iria sair. Mas um grito foi a seqüência, dois tiros terminaram o ato. Dna Julinha! Selina entrou tropeçando nos saltos e degraus, empurrou a porta velha de madeira maciça com a mão espalmada. Na pequena sala de Dna Julinha, estava ela sentada num sofá, morta, o sangue fluindo dos buracos abertos na cabeça, Val, a ‘doce’ e assassina Val em sua frente de dentes cerrados e pernas bambas, e revólver fumegando entre os dedos, olhando quem entrava naquela calorosa atmosfera.

* Penúltima parte do conto, aguarde o surpreendente final!

CONTINUA...

Douglas Tedesco
Enviado por Douglas Tedesco em 13/09/2007
Reeditado em 13/09/2007
Código do texto: T650618