O Receptáculo Borco

Imagine o leitor que está em 2004, umas oito léguas e meia da ponte do Rio Coruja, sentado num banco rústico junto à entrada do jardim da casa do velho Ferreira. Podem imaginar a paisagem banhada pelo clarão da lua; ao longe o Rio da Rainha da noite e mais além uma colina suave, no alto da qual era aparatosa as árvores. Não quero ser um cantador para lhe chamar a atenção para mostrar a bela paisagem daquela noite. Quero mostrar-lhes a pequena associação de pessoas reunidas para um fim comum; muito antes do serão a casa do velho estava abrigando um certo número de gente.

Chamavam-se Francisco Ferreira, Juca, Arlinda e Joana, vizinhos há duas décadas. Gente boa; tinha costume de consultar o além-mundo. Cousa espírita expressamente condenada por Deus. Mas criam e não viam maldade no ato de consultar a parte imaterial do ser humano. Não que fosse mais relevante que Deus; afinal, diziam ser cristãos, apesar do desvio de conduta contido na vontade de experimentar o insólito. Dizer insólito é relativo ao assunto de discurso.

Sentados à mesa com extrema ansiedade esperavam o experimentado Ferreira pôr o receptáculo sobre o móvel. Ei-lo que traz o copo e uma sacola; põe na mesa e senta-se junto dos outros. Dentro do pequeno saco estão letras, todas as letras do alfabeto escritas em papel, uma e uma, separadamente para dispor sobre a mesa. Sempre com o seu ar circunspecto, Ferreira pediu que Joana organizasse em forma circular todas as letras. Juca e Arlinda apenas observavam.

— Pronto, disse a mulher.

— Muito bem organizado, disse o veterano ao colocar no centro o receptáculo borco, agora vamos pedir permissão a Deus.

— Ó Deus, permita que o saudoso Afonso venha ter conosco uma breve conversa.

— Todos colocaram o dedo indicador na parte superior do receptáculo borco; aguardaram alguma resposta. Caso alguma entidade sobrenatural viesse impigiria o copo em direção às letras com a finalidade de formar uma palavra, frase com sentido. Não obtiveram resposta. De mãos dadas, novamente, proferiram:

— Ó Deus, permita que o saudoso Afonso venha ter conosco uma breve conversa.

Mais uma vez colocaram o dedo sobre o copo emborcado; de novo aguardaram qualquer resposta. Ferreira sabia o que fazer, há muito tempo fazia aquilo por prazer. Admirava a reação do corpo humano quando instigado, pois sabia também que a substância física de cada ser humano realiza movimentos independentes e até inconsciente. O copo foi impigido até a letra "O", em seguida foi em direção ao "I". Ferreira pediu que Joana escrevesse cada letra em um papel.

— Quem está entre nós?

Imediatamente o copo foi impigido até as seguintes letras: A, F, O, N, S, O.

— Podem perguntar o que quiserem, eis o pai de vós.

— Papai, disse Arlinda, como está?

Mais uma vez uma força tênue, que às vezes era mais vigorosa, empurrou o copo para formar a consecutiva expressão:

— Sim, estou bem.

O experimentado Francisco Ferreira era testemunha de batismo de Joana. Conhecia muito bem o primo Afonso.

— Pai, disse Juca, penso em vender algumas cabeças de gado para o tio Pascoal.

— Não; venda para o primo Ferreira, venda pela metade do valor real, foi a resposta escrita por Joana que copiava as letras indicadas pelo copo.

Joana não quis perguntar nada ao suposto espírito do pai. Acabou a consulta espírita. Ah! Se Francisco Ferreira pudesse seria um ator. Iludir era o que mais sabia fazer. Enquanto pudesse tirar proveito, mormente dos filhos do seu primo, continuaria com o enleio que turvava a realidade diante da mesa. Os filhos do primo falecido, muito acreditavam na conversa com espíritos. O responsável por fazer a consulta não. Era um embusteiro, apesar da idade beirando a casa dos sessenta anos. Não acreditava mui veemente pelo simples fato de nunca ter vindo, durante as falsas consultas, nenhuma entidade do além-túmulo.

Despediu-se dos jovens, esquentou o seu jantar, com o mesmo ar de costume. Era solteirão. Sentia a sensação de obrigação terminada. Ligou o rádio, soava a Marcha Fúnebre de Frédéric Chopin. Pôs-se à mesa para saborear a sopa de legumes, cada colherada degustada em vez de causar-lhe uma elevação na temperatura corporal diminuía. Pensou tratar-se de algo anormal, algum problema de saúde, levantou e foi em direção das janelas, ventava forte, quase era possível ouvir o vento uludar.

Estranho! Que frio. Tentou fugir do pensamento que conduzia-o a cisma de que era uma possível associação com o mundo espiritual. Começou a sentir uma sensação de peso que atenuou-se quando chegou no cômodo em que a pouco tempo fizera a falsa consulta; o copo e os papéis ainda estavam sobre a mesa. Deitou os olhos pela armação do óculos em direção ao móvel. Fechou os olhos com força e até fez movimentos circulares com o dedo sobre as pálpebras porque não quis ter por verdadeiro o receptáculo borco mover-se na direção das letras "O", "L", "A".

Ousou perguntar quem estava presente no mesmo ambiente que ele. Rapidamente o copo indicou a seguinte resposta:

— Não sou Afonso. Sou Satã.

Logo em seguida o copo foi atirado impetuosamente contra o homem velho que por instinto desviou-se, mas caiu ao chão tomado por tanta excitação que não mais retornou a este nosso mundo desencantado.

Leandro Ferreira Braga
Enviado por Leandro Ferreira Braga em 02/12/2018
Reeditado em 31/08/2023
Código do texto: T6517154
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