Eu sou eu, nicuri é o Diabo.

Tá lá um corpo estendido no chão. Em vez de um rosto, a foto estampada de um político sorrindo debochado para a sorte do eleitor. Antegoza o mórbido prazer de sacanear o povo. Mas o defunto não parece se importar com a foto nem se importunar com os homens de branco pisando seu corpo em pose para a posteridade. A multidão reunida, ora olha o corpo, ora olha o assassino, revólver fumegante na mão, em pose de valentão. Em outros tempos alguém gritaria:

- Corre que é Lampião! – e a galera debandava.

Mas não era o caso em questão. O morto, em vida, nunca tivera importância, por que teria agora que já não pode mais comer feijão? Morreu porque todos nós haveremos de morrer um dia e ele só fez se antecipar aos fatos. Pelo seu sorriso de morto estampado na cara, parece que morreu feliz. Mas, espere... não é o morto que sorri. É o seu assassino na fotografia que cobre o seu rosto.

Do meio da multidão surgiu serelepe o rapazinho do Site local. Finalmente uma crônica policial para ensanguentar o seu palavreado confuso. Antevia a manchete: “Dez tiros acidentais e à queima-roupa leva cidadão a conhecer o Paraíso antes da hora. O prefeito, autor dos disparos, pede desculpas à população por perturbar a ordem pública”. Não, assim não está bom. Está muito confuso. É melhor assim: “Prefeito atira no que não viu e mata quem queria matar. A família do morto pede perdão ao assassino pelo incômodo e promete pagar as balas que ele gastou”. Assim está melhor. Quem sabe se com essa manchete não ganhará o Prêmio Esso de Jornalismo?

O delegado, que ninguém nunca viu nem mais gordo nem mais fino, finalmente deu o ar de sua graça. Cumprimentou os homens de branco e puxou conversa com o assassino. Pareciam velhos amigos confabulando à mesa de um bar. Riram desenxabidos de uma piada sem graça. Os homens de branco também riram, e a multidão de puxa-sacos, que não ouviu a piada, aplaudiu. O delegado pediu aos homens de branco para se afastar, pois era necessário fotografar o morto para o laudo cadavérico. Era praxe. O caso já estava esclarecido: legítima defesa do prefeito.

Enquanto o delegado fotografava o corpo, o prefeito dava entrevista a uma rádio local. Estava no ar, ao vivo, pena que não fosse a cores. Falou e falou e falou bonito, disse um bajulador, mais tarde, à sua mulher. Ela não disse nem que sim, nem que não, só fez, “hum, hum”, e o bajulador interpretou como aprovação.

Alguns vereadores apareceram distribuindo aparelho de rádio ao povo para que pudessem ouvir a entrevista. A torre de celular, que nunca funcionou, nessa hora liberou sinal para que se pudesse ligar para a Rádio e se solidarizar com o assassino, mas logo deixou de funcionar devido ao congestionamento da linha. Todo mundo queria dizer “Alô, prefeito, eu te amo!”, segundo o noticiado no Site local, horas depois.

O prefeito alegou legítima defesa da honra. O cidadão, logo cedo, estava no hospital esperando uma brecha na consulta, mas como só foi atendido três horas depois, reclamou das pessoas que furaram a fila. Ele, como prefeito e médico, podia atender de acordo com o grau de interesses políticos, vez que não precisava do financeiro para clinicar. Era rico. Podre de rico e podia tudo. E quem era aquele Zé Mané para contestar suas preferências? Dias antes deixara bem claro naquela rádio quem era que mandava no pedaço: uma paciente reclamou das longas horas de espera no consultório e ele a mandou tomar naquele lugar. Ela, e quem mais se atrevesse a reclamar do seu procedimento. Fazia um favor ao povo sendo prefeito daquela cidade e ai daquele que ousasse lhe contrariar.

Nesse dia a Oposição o intitulou de Dr. Arrogância. Ah! Não. Não foi a Oposição. Esta se vendeu no segundo dia de mandato do Zeca Diabo do Sertão. Mas quem foi afinal?

O delegado deu os trabalhos por concluído, o repórter desligou o microfone, o rapaz do Site pediu a alguém para fotografá-lo beijando o prefeito, e este, antes de ser carregado nos braços do povo até o bar ao lado, receitou remédio para lombriga a um rapaz que se queixou de surdez temporária por causa dos estampidos.

Enquanto o carro do lixo não levava o corpo para o monturo, um cachorro se deliciou com o sangue espalhado na calçada.