RELATO DE SESSÃO

A mulher parecia um furação ou tsunami na forma como tudo aconteceu. Em cinco minutos aquele mar de tristeza e culpa desaguou ali na minha frente, na cadeira de meu consultório.

Alguns pacientes demoram dias ou talvez meses até terem a coragem de dizer para o terapeuta em voz alta o que escondem dentro de suas mentes. Esses momentos são sempre libertadores. Traz a luz o monstro que guardam para si e dessa forma começam a perceber que às vezes ele não é tão grande ou feroz assim. Outros não conseguem traduzir em palavras os sentimentos e pensamentos. Somos quase todos, educados para reprimir as emoções de forma que podemos até não ter vocabulário pra expressa-los. Por exemplo: alguém que diz não ser correspondido no amor pode se sentar na minha cadeira e dizer simplesmente “estou triste” quando na verdade o que sente é rejeição, frustração, desamparo, etc. Acho que temos que ter uma reeducação emocional nesse sentido. Mas como eu ia dizendo, para nós terapeutas esses momentos preciosos em que o paciente revela a sua verdade são um sinal claro de que o vinculo de confiança se estabeleceu. A terapia só funciona assim: um confiando no outro e juntos caminhando em direção a melhor solução possível.

Têm pacientes que não entendem esse processo e não querem um terapeuta, mas um santo milagreiro. Colocam sobre o terapeuta ou as pessoas de seu convívio a responsabilidade para encontrar soluções sem terem qualquer participação direta nisso. São dependentes emocionais e se privam do direito de serem protagonistas da própria vida.

Continuando, com aquela mulher não aconteceu nada disso. Como eu disse em 5 minutos ela chegou, se sentou, contou da sua dor e que a motivou a vir me procurar e depois disso começou a chorar descontroladamente por vinte minutos.

_Doutora, eu não tive culpa. Foi tudo tão rápido. Foi em frente o parquinho. Ele tava com uma bola. Eu fui responder uma mensagem no celular...Eu não vi.... Em seguida ele estava debaixo do carro. Eu não sabia o que fazer – e começou o choro represado.

Eu também não tinha o que fazer, exceto aguardar ela se recompor. Chorar diante de alguém pode ser muito embaraçoso para algumas pessoas e também para quem presencia. Eu no exercício de minha profissão já me acostumei. Estendi minha caixinha de lenços de papel. Levantei-me e busquei um copo de água para mim e para ela. Ás vezes o choro é tão revelador quanto o silencio.

Eu entendo aquela dor de perder um filho. Eu mesma passei por isso recentemente. Meu filho foi atropelado na porta da escola. Um motorista bêbado, mas não foi preso. Fugiu. Meu menino só tinha 9 anos e meu prédio fica a dois quarteirões do colégio. Nem sei como reagiria se visse esse motorista na minha frente. Tirou de forma brutal o meu maior tesouro. Daria qualquer coisa pra ter mais tempo com meu pequeno Max.

Voltei de minhas divagações. Embora entendesse a dor dessa mãe não podia me deixar levar por minha dor. Estou aqui para ajuda-la e não para resolver meu próprio luto. Por isso faço supervisão e terapia. Em alguns casos pode ser difícil separar a vida do paciente de minhas vivências pessoais. Quando essa mistura ocorre nunca é benéfico para o paciente e claro a terapia não progride.

Eu tinha perguntas a fazer, mas ainda esperava pelo fim de seu choro. Sabe Deus a quanto tempo ela precisava disso?! Apenas um lugar para chorar livremente e poder expiar sua tristeza e culpa. Sei pouco sobre ela, apenas o suficiente que a secretaria questionou por telefone para criação de um cadastro. Jovem, 26 anos, classe média, reside na cidade, casada, dois filhos e é secretaria numa agência de viagens.

Não me cabe fazer condenações morais, mas é inevitável pensar que essa mulher jovem e inteligente também não terá mais tempo com o próprio filho, mas embora trabalhasse fora e nos fins de semana levasse o filho no parquinho pra jogar bola (assim presumo, pois que mulher tem tempo no dia a dia pra passear com os filhos?) ela fazia exatamente como tantas outras mães fazem nesse mundo moderno, relegam a atenção materna dos filhos enquanto se distraem com o celular. Respondeu uma mensagem e aconteceu uma tragédia. “Daria qualquer coisa pra ter mais tempo com meu pequeno Max”.

_Doutora, desculpe. Não sei o que me deu. Não conseguia parar de chorar – disse a jovem fungando no lenço amassado em suas mãos.

_Não se preocupe. Isso é normal. Podemos começar a conversar quando se sentir mais a vontade. Ainda temos algum tempo.

A mulher bebeu um longo gole da água, ficou algum tempo em silencio contemplando um aquário estrategicamente posicionado às minhas costas. Aqueles peixinhos tinham a função de desacelerar os pensamentos.

Iniciei de forma branda, encorajando-a a falar:

_ Há quanto tempo esse acidente aconteceu?

_Foi na semana passada. Eu não consigo pensar noutra coisa. Já nem consigo dormir e quando durmo tenho pesadelos. Não consigo comer, me concentrar no trabalho. Ninguém sabe o que aconteceu...

_Você quer dizer ninguém sabe como aconteceu? Veja bem, é comum tudo isso. Tudo é muito recente. Você está sobre o efeito de um grande estresse emocional, sofreu um trauma e está em luto por seu filho.

_Não doutora. Você não está entendendo. Realmente ninguém sabe o que aconteceu. Não tive coragem de contar pra ninguém...

Esperei que continuasse

_ Meus filhos, graças a Deus estão bem. Não fui eu que perdi um filho.

_Perdão. Eu imaginei que o menino que estava com você no parquinho fosse seu filho.

A paciente me olhou nos olhos. Era a primeira vez que fazia isso desde que chegou. Respirou fundo. Antecipei o momento. Tudo estava claro. Era um desafio.

_Era eu a motorista. Atropelei o menino e fugi. Não perdi nenhuma criança. Eu matei.

Dessa vez eu que respirei fundo e olhei o relógio.

Fim da sessão. (FIM)