AS PALAVRAS MATAM !

AS PALAVRAS MATAM !

Na Inglaterra medieval o senhor de um castelo milenar acordou preocupado. Durante toda a semana um sonho perturbador insistiu em se repetir: palavras gigantes, com pernas e longos braços, o perseguiam pelo vale fronteiriço até uma cachoeira próxima onde êle, desesperado, se jogava na fuga desenfreada. E caía... e caía, gritando feito possesso ! Acordava molhado de suor, totalmente apavorado. Mandou chamar o capelão da família, octogenário, que não mediu palavras nem poupou reprimendas:

-- "Vossa Senhoria, milorde, foi um proprietário cruel na juventude, insultava os empregados, cometia injustiças, muita gente o odeia no vilarejo. Faça caridade, dê-lhes algum dinheiro, talvez isso resolva seus dramas interiores. Tendes a consciência pesada" !

Fuzilou o sacerdote com um olhar de desprezo e dispensou-o rispidamente, por conta da audácia. Mandou chamar cartomante, mexia com magia e era muito temida. Êle não era homem de acreditar em crendices mas aquela tortura precisava findar. "Cortou", a mando dela, o baralho 2 ou 3 vezes.

-- "Ande logo com isso, não tenho todo o tempo do mundo, sua bruxa miserável" !

Não tinha mesmo... entre as cartas tiradas estava a da FOICE, que representava a Morte. Alertou ela o barão:

-- "Milorde, cuidado com as palavras... elas podem matá-lo. Nada mais me foi dito pelas cartas do Tarô" !

-- "Só isso, megera... e os meus pesadelos, não vais dizer nada ?! E eu tenho que pagar por isso, sua ladra" ?!

Quase a poz fora do castelo a pontapés... era hora da ceia, jantava-se cedo naqueles tempos antigos. A velha babá, que dele cuidara quando menino, fazia suas refeições, cozinheira de mão cheia.

-- "Trouxe-lhe a janta, meu senhor... temos novidade, "sopa de letrinhas" em caldo de ervilhas" !

Mal soaram as palavras e um ódio insano surgiu dentro dele... a bocarra da cozinheira cresceu, tomou a sala inteira, na penumbra à luz de velas e gargalhou:

-- "Sopa de letrinhas, ahahah, sopa de letrinhas" !

Furibundo, jogou-lhe a sopa quente no rosto e despediu-a aos berros, espalhando castiçais e louça pelo chão. Sozinho no salão colossal, decidiu não dormir... assim evitava o pesadelo ! Para manter-se acordado foi para a biblioteca da família, livrões centenários de vários palmos, lombadas em couro gravadas a ouro. Na cadeira encostada às estantes leu, cochilou, acordou, leu de novo, tornou a cochilar, o sonho aterrorizante voltando ainda mais real. Apesar da resistência, dormiu ! Acima dele, ratazana prenhe que procurava cantinho para ter seus filhotes empurrou grosso livro mais e mais... até que o calhamaço despencou. Junto com êle o Barão, no pesadelo, despencava da cachoeira para a morte.

Na manhã seguinte os criados da limpeza -- que dormiam no castelo -- acharam o corpo do detestado nobre, fenda enorme na cabeça encanecida. A notícia correu pela vila inteira, a fama da "bruxa" aumentou ainda mais, "era coisa dela" aquele trágico fim, tão incomum. Ao lado do corpo pesada Bíblia em primeira edição -- da lavra de Gutemberg -- capa de metal dourado em relevo, 5 ou 6 libras de peso, (*1) mais de MEIO MILHÃO de palavras santas. Segundo um ditado popular milenar "a língua é tão perigosa que, vivendo entre tantos dentes, jamais foi mordida". Por isso, cuidado com as palavras... elas podem matar" !

"NATO" AZEVEDO (em 21-22/mar. 2019)

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OBS: para surpresa até do Autor, surgiu uma "CONTINUAÇÃO" pouco depois, postada aqui com o título de... "A MORTE DA BRUXA" !

(*1) - LIBRA, moeda e PESO na Inglaterra, equivalendo a uns 532 gramas, com uns "quebrados" a mais !