Assunto de família

A diretora entrou .Os passinhos rápidos lembrando saltitos.. Esfregava as mãos. Puxava a boca para um lado. Um fio de suor escorria de sua testa tomada por linhas de expressão. Entre as rugas, um vinco mais profundo se destacava.

Puxou sua cadeira. Antes de se sentar alisou o jaleco marrom que ela tinha escolhido como uniforme de trabalho. Já diante de meus pais, guardou alguma coisa na gaveta.Ajeitou os óculos de armação ultrapassada e só então, olhou para eles.

-Seu Vicente, dona Maria Antonia. Que bom que vieram.

Encolhido no meio dos dois, senti o fogo do medo, da vergonha e do ressentimento queimar meu rosto. Era capaz de enxergar a vermelhidão subindo e descendo, de um lado para outro. Mãos geladas. A barriga se contorcendo. Eu quase pedindo licença para vomitar. A certeza de meu segredo prestes a ser revelado acelerando minha respiração.

Sem me enxergar à sua frente, a diretora continuou falando com meus pais. Quando era possível, ela evitava encarar os dois. Então, se voltava para as paredes, como se quisesse detectar manchas, uma pintura descascada, um quadro fora do lugar.

-Pois bem, seu Vicente. O motivo desta reunião é bastante sério.

Quando ela se dirigiu ao meu pai, tive a certeza de que o motivo daquela reunião era me punir e não resolver um problema.Quem se atreveria a falar com um homem de semblante fechado, econômico no riso, nas palavras, nas demonstrações de afeto?

Tudo o que ela queria era me ver castigado por submetê-la àquela situação. Logo ela, sempre tão preocupada com o bem estar dos alunos e o bom andamento da escola.

Os dois colaboravam com tudo. As mensalidades sempre em dia. Presente de agradecimento no final do ano.Vai ver, por isso mesmo ela se sentia mais forçada a fazer a revelação. Um sentimento de lealdade, cumplicidade,sei lá.

Minha mãe, mais sociável, questionou:

-Luíz André nunca nos deu trabalho na escola. O que aconteceu?

Pela primeira vez,dona Marta olhou para mim. Entretanto, como a capacidade de ver não é a mesma de enxergar acho que ela não notou minha vontade de desaparecer num buraco sem fundo, levando comigo a vergonha de ver meus pais passando por aquele constrangimento..

Ainda assim,pensei em Otaviano. Será que a diretora já tinha chamado os pais dele?

Conhecendo um pouco daquela mulher sempre muito preocupada com disciplina e boletos atrasados, imaginei que não.

Otaviano era bolsista e ela odiava os bolsistas. Decerto ela aproveitaria a deixa para mandar ele embora. Os pais nem iam questionar. Acreditariam que Otaviano tinha aprontado outra traquinagem e aceitariam de cabeça baixa, sem contestar a expulsão.

Acho que dona Marta me odiava. Primeiro pelo problema que decerto não entrava em sua cabeça que embranquecia por fora e ficava cada vez menor por dentro. “E se meus pais jogassem a culpa nela, dissessem que além de evitar mensalidades atrasadas, ela deveria resguardar a integridade física e moral dos alunos? E se a chamassem de negligente, mentirosa… “Isso explicava o suor que escorria com mais intensidade, obrigando dona Marta enxugar o rosto com uma toalhinha bordada com seu nome.

-Pois bem, dona Maria Antonia. O caso é tão sério que nem sei como começar.

-O Luiz André agrediu outro aluno? Distratou os professores? Maltratou algum funcionário da escola?-minha mãe insistiu entre aflita e irritada.

A diretora puxou a cadeira para trás, deu duas tossidinhas para limpar a garganta, folheou depressa o regimento da escola.

-É muito mais grave do que isso.

Meus pais me olharam. Minha mãe com a costumeira ternura. Meu pai impassível.

Será que perceberam o pedido de desculpa em cada centímetro do meu corpo?

-Vamos lá, dona Marta sentenciou, entrelaçando os dedos diante de nós.

Antes que eu pedisse a morte pela milésima vez, uma funcionária entrou correndo.

-Dona Marta, um dos meninos está tendo uma convulsão lá no pátio.

Ela deu um pulo da cadeira.Pediu licença , deixando a reunião aberta para o outro dia.

Eles pediram para me levar embora ,ela autorizou.

No caminho, minha mãe falava de amenidades, relembrava os modos da diretora rindo dos excessos e de sua postura sempre tão severa com ela mesma. Ás vezes penso que aquilo tudo era pra me acalmar. Meu pai sem expressar uma palavra.

Onde Otaviano estaria? Coitado, não bastasse ferrar com minha vida, tinha ferrado com a vida dele também. A diferença é que eu sou rico, se bobear compro respeito, busco novas oportunidades, e ele que era pobre? Ficaria para sempre marcado como o “viadinho” que foi surpreendido beijando outro menino no banheiro.

Chegamos. Fui direto para o quarto e só na porta vi que meu pai me seguia. Abri a porta, sentei na cama e esperei as perguntas, o sermão, o castigo antecipado.

-Desculpa, pai.-Sussurrei quando ele se sentou ao meu lado.

Ele me abraçou e disse que no outro dia a gente procuraria outra escola.

Lucia Rodrigues
Enviado por Lucia Rodrigues em 01/05/2019
Código do texto: T6636616
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