Conspiração

Não sabe-se bem o porquê, mas não era nada convencional Jairo Rocha pedalar em sua bicicleta àquela hora da noite, na ciclovia. Passava das 23h. Pedalava em um ritmo frenético, apesar de demonstrar cansaço. O jovem senhor de 45 anos já havia pedalado mais de 20km às margens do Lago das Garças, com a gélida brisa suave nas suas narinas, ocasionalmente, e as ruas da pequena Florentina completamente vazias. O lago tinha uma extensão de 50km e circundava toda a cidade de 100 mil habitantes.

A lua, parecendo um lampião azulado no céu sem estrelas, clareava mais que qualquer poste. Jairo não via a hora de chegar em casa, tomar um banho e dormir, mas não havia se atentado a distância da mesma. Ficava umas três léguas de onde estava. Era um homem sedentário, acima do peso, e pedalar fazia parte da prescrição do médico para uma vida saudável, ou então corria sério risco de sofrer um infarto. A caótica rotina de trabalho o deixou numa situação tensa. Era um empresário bem sucedido de Florentina, dono de uma enorme fábrica de sorvestes que exportava a sobremesa para o resto país.

Jairo suava frio, contemplando as águas escuras se misturando com o reflexo lunar. Seu Iphone X tocava The one, de Jorja Smith, no volume máximo. Era de praxe ouvir músicas enquanto pedalava. Em uma olhada aleatória ao lago, do outro lado, na margem esquerda, Jairo percebeu que algo estanho acontecia... dois homens, dentro da água, atiravam um saco preto no lago, não demoraram nada e sumiram num jet ski.

– Vi algo estranho há pouco... – comentou Jairo com a esposa, Berta. – quando eu voltava da pedalada.

– O que você viu, querido? – perguntou ela, curiosa.

– Dois homens encapuzados, de preto, jogaram alguma coisa grande e pesada no lago e saíram rapidamente num jet ski.

– Meu Deus! – admirou a mulher.

– E o pior, se for um crime, sou testemunha. Vi tudo e acho que eles me viram também.

– Relaxe, amor, vai ver só estavam despejando lixo no lago. Sabe que, apesar de proibido, as pessoas adoram poluir o velho lago. – confortou Berta.

Na manhã seguinte, enquanto tomava café à mesa, antes de ir para o trabalho, Jairo ouvia atentamente o telejornal local comunicando um fato surpreendente...

– Um corpo esquartejado foi encontrado hoje pela manhã no lago das Graças. – dizia o apresentador – Estava coberto por um saco de lixo preto, nas margens do lago, a uma profundidade de dois metros de fundura. Trata-se de uma menina de treze anos que havia sumido ontem à noite. A identidade da jovem não foi revelada pela polícia.

O empresário ficou tão chocado que deixou a xícara de café cair no chão e espatifar-se em mil pedaços. Olhou com desprezo para sua esposa, temendo retaliações por parte dos assassinos.

– Vá a polícia imediatamente. – disse Berta, nervosamente. – Você precisa contar o que viu e pedir uma medida protetiva. Corremos perigo.

– Agora você concorda, né? – debochou Jairo. – Claro que corremos perigo, sou testemunha da desova de um corpo no lago.

Após o breve diálogo com a esposa, Jairo foi diretamente para a delegacia. Entrou nervoso naquele ambiente hostil, onde as pessoas não paravam quietas, perambulando de um lado para o outro com documentos. Haviam uns policiais a um canto e o delegado, despachando numa saleta ao fundo. Jairo bateu na porta, pediu licença e entrou no pequeno recinto.

– Bom dia, senhor delegado. – cumprimentou ele. – Sou Jairo Rocha, dono de uma fábrica de sorvetes...

– Sim, sei quem você é. – interrompeu o delegado, um homem de cerca de 35 anos, careca, branco e porte avantajado como um segurança de boate. – Vi você no jornal um dia dando entrevista.

– É sobre uma notícia de jornal que estou aqui. – continuou Jairo. – Então, sabe o caso do corpo encontrado hoje no lago? Ontem à noite, enquanto pedalava às margens, vi dois homens encapuzados jogando um grande saco preto na água.

– O que é que você está me dizendo, rapaz? – o delegado arqueou as sobrancelhas, incrédulo com o relato.

– Isso mesmo. Eu vi, com esses olhos que a terra comerá, dois homens desovando o cadáver. Só pode ser o corpo da menina que encontraram.

– Sim. O IML recolheu amostras do DNA e o corpo é da filha do prefeito de uma cidade vizinha. A menina desapareceu ontem, por volta das 21h. foi encontrada marcas de estupro e estrangulamento. – relatou Brandão, o delegado.

– Olha, senhor, é complicado e lamento por tudo isso, mas eu e minha esposa corremos perigo e precisamos de proteção policial. – a voz de Jairo quase se alterou.

– Infelizmente, não podemos ofertar escolta policial. Nosso efetivo já é pouco para a ronda da cidade e não posso sabotar a segurança dos florentinos. – respondeu o delegado com a voz firme e levemente alterada. O alerta estava ligado para ambos.

– Ué, vão deixar nos matar e nada farão para evitar? – Jairo explodiu num misto de raiva e preocupação.

– Baixe o tom, viu, ou te prendo por desacato.

–Desacato? Corro risco de vida e agora sou visto como barraqueiro?

– Barraqueiro não, mas é estranho você “pedalar” – disse fazendo o sinal das aspas. – tão tarde da noite, sem falar que só você viu esses supostos homens. Vai que foi você mesmo quem cometeu o crime?

– Como é? – as têmporas de Jairo saltaram um metro da face. Se controlou para não voar no pescoço e esganar, de verdade, o delegado. – Ok, senhor delegado. Se eu e minha esposa formos mortos, a cidade de Florentina inteira vai saber da negligência da droga dessa delegacia e dos incompetentes que nela trabalham. – e se retirou irritadíssimo, batendo a porta com violência.

Todos o olharam com censura. Jairo não acreditava que a polícia se omitira a integridade de um cidadão de bem, pagador de altos impostos. Estava revoltado. Tão diferente dos países da Europa que já visitou. Tirando o celular rapidamente do bolso da calça jeans, discou um número.

– Alô? – atendeu Berta.

– Oi, amor, estou voltando da delegacia. Acredita que o delegado Brandão se recusou a fornecer escolta para nós? – esbravejou Jairo indignado.

– Calma, a gente vai ficar bem. – disse a mulher do outro lado da linha. – Só confiar em Deus... – Jairo ouviu o barulho de um tiro do outro lado da linha. Aparentemente na sua casa.

Correu rapidamente até a residência. Ao chegar, abriu a porta silenciosamente, e entrou na sala. Berta estava caída no chão. Gélida e pálida, havia marca de um tiro no meio da testa, o sangue escorrendo pelo chão feito um rio. O celular dela foi quebrado e os pedaços jogados em cima do sofá de veludo. A grande janela de vidro da sala estava quebrada, o que levou Jairo a acreditar que o tiro saiu de lá. Não havia sinais de arrombamento, reforçando a hipótese do assassino ou assassina ter entrado pela janela.

“Será que ninguém viu isso?”, pensou. “Em plena 10h da manhã?”. Estava desesperado ao ver o corpo de sua esposa jazido no chão. Pegou seu Land Rover e voltou a delegacia.

Ao chegar, comunicou a cena que viu em sua casa. O delegado Brandão enviou duas viaturas para o local, que não demoraram para retornar.

– De fato, chefe, encontramos a mulher morta, estirada no chão. O IML levou-a para perícia. – informou um dos policiais que foi averiguar a operação.

– Humm... então você parece que estava falando a verdade. – disse Brandão exultante, quase sem ter coragem de olhar no olho de Jairo.

– Isso é culpa sua, você poderia ter evitado, seu desgraçado! – Jairo fez menção de agredir Brandão.

– Ora, ora. Você está preso por desacato a autoridade. – esbravejou o delegado.

– Pelo menos na cadeia estarei a salvo.

– Será? – um olhar faiscante e maligno trinfou de Brandão. – Levem-no para uma cela aqui da delegacia. Vai ficar preso até o juiz decidir por um habeas corpus ou fiança.

Dois policiais musculosos e mal encarados o levaram para uma cela na delegacia. Um deles abriu a grade da entrada e o outro empurrou Jairo com violência para seu interior. O empresário tropeçou e caiu. O chão, sujo e úmido, revelava um ambiente insalubre e imundo. Não havia janelas, apenas um feixe de luz no teto, e um beliche a um canto. Um homem bronzeado e sarado, só de cueca boxer preta, com o corpo todo tatuado, dormia na parte de cima. Seu ronco lembrava um motor. Ao perceber a presença de um novo colega de cela, o homem acordou, espreguiçou-se e apresentou-se:

– Prazer, seja bem-vindo. – cumprimentou. – O que você fez para estar aqui?

– Nada. – respondeu Jairo sarcasticamente. – Apenas desacatei o idiota do delegado.

– Ah. – a voz de Mauro refletia puro tédio. – Releve, cara. Brandão é uma maricona que adora foder com os presos... rebola gostoso no pau dos detentos que ele considera do tipo dele.

– Eca, quer dizer que aquele otário ainda é viado? – indagou Jairo enojado.

– Sim. Já comi ele um monte de vezes em troca de regalias aqui. – respondeu Mauro. – Eu faço o tipo dele. – passou a mão no abdômen trincado. – Não se preocupe, você não faz. – disse com um sorriso enviesado, encarando Jairo e desdenhando do corpo gordo dele.

– O que vai me tirar daqui não é essa nojeira, é meu dinheiro.

– Será? – Mauro sorriu. – Acho que seu dinheiro não compra o poder de Brandão. A não ser que ele vá com sua cara, mas pelo que você acabou de me contar, duvido muito. Já era.

Jairo deitou-se na parte de baixo do beliche. Não tardou muito e adormeceu. Sonhou com dois homens encapuzados atirando na direção dele. Ou seria um pesadelo? Acordou, abruptamente, muito assustado. Levantou do beliche e, ao olhar para o piso na escuridão, percebeu algo líquido e gosmento.

Passou o dedo no chão e notou que se tratava de sangue. Quando virou-se para trás, ficou pasmo com o que viu: Mauro, seu colega de cela, estava morto na cama. Tinha levado mais de trinta facadas.

Jairo gritou feito louco. Não tardou muito e dois policiais chegaram, mirando os revólveres para ele.

– O que aconteceu? – perguntou um dos policiais, encarando Jairo.

– Alguém deve ter entrado aqui e matou o meu colega de cela. – disse Jairo, gaguejando. – O cara está todo esfaqueado.

O outro policial abriu a cela e ambos entraram. Revistaram o pequeno cubículo e nada encontraram, até o agente Fábio se abaixar e pegar, debaixo do beliche, uma faca toda ensanguentada.

– Entraram aqui, né? – disse Fábio, sério, segurando a faca – Você está se complicando cada vez mais, hein, rapaz?!

– Impossível alguém ter invadido a cela e matado o cara. – falou Teixeira, o outro policial. – Nós teríamos visto, sem falar que esse suposto assassino também teria te matado.

– É verdade. – Jairo disse baixinho mais para si do que para os policiais. – Mas vocês precisam acreditar em mim, eu não teria motivos para assassinar esse cara. Sequer o conhecia!

– Vou chamar Brandão. Ele vai te interrogar. – disse Fábio, deixando a cela.

Em cinco minutos o delegado estava na cela. Levaram Jairo para a sala principal da delegacia e Brandão se trancou com ele por horas.

– Eu não fiz aquilo, senhor delegado, eu juro! Eu não matei aquele cara, eu não matei ninguém! – as lágrimas escorriam dos olhos de Jairo.

– Sabe, meu caro, eu sei que você não matou ninguém. Foi eu quem matou. Eu e o Mauro, meu ex. – disse Brandão, de forma jocosa, segurando uma risada. – Mas, por via das dúvidas, você é nosso assassino e pagará por seus crimes aqui, preso por anos.

Jairo não acreditava no que ouvia, parecia estar num filme de terror.

– Pois é... – continuou Brandão – Eu matei essas pessoas. Primeiro a garota, depois sua esposa e agora Mauro. Investiguei sua vida por muitos anos, na verdade, você foi meu professor no ensino médio. Sempre tive inveja de você.

– Porque? O que eu conquistei foi às custas de muito suor. – pontuou Jairo sem tirar o olhar de Brandão. – Nada justifica, Brandão. Você matou inocentes em nome da sua inveja!

– Matar a filha do prefeito da cidade vizinha, sabendo das suas futuras pretensões políticas lá, e jogá-la no lago que você pedala na ciclovia quase todas as noites era o plano perfeito...deu certo.

– Era apenas uma adolescente.

– Não importa, Jairo. Fazia parte. – um olhar sombrio pairava entre os dois. – Sua esposa, obviamente, também teria que morrer, mas, infelizmente, Mauro se meteu onde não devia e acabou indo também. Fodia gostoso para caralho!

– Não tenho nada a ver com sua orientação sexual, eu respeito, inclusive.

– Você era o homem mais atraente que conheci aos quinze anos. – confessou Brandão, aproximando-se dele. Tocou levemente suas faces. – Você era tão lindo!

– Está dizendo que você foi apaixonado por mim? Eu jamais corresponderia. Eu sou hétero, não curto homem por dinheiro nenhum.

– Você se acabou, está gordo, feio e velho. Não me interesso mais. – disse Brandão sorrindo. – Olhe para meus agentes ali. – apontou para os dois policiais na janelinha de vidro da porta, do lado de fora. – Lindos, gostosos e em forma.

Jairo o aplaudiu, sorrindo sarcasticamente.

– Faça bom proveito deles, estou indo embora. – quando fez menção de sair, Brandão correu e tomou a porta, impedindo ele de sair. – Me deixe sair.

Brandão deu um beijo roubado na boca de Jairo, porém foi surpreendido com uma punhalada nas costas. Jairo tirou rapidamente o objeto perfurante do bolso traseiro da calça e cravou-o com toda força, fazendo o delegado cair no chão, sem vida.

O empresário contou todos os fatos para os policiais remanescentes no local, o que comprovaram no sistema de monitoramento de vídeo. A confissão de Brandão era clara e provava que Jairo era inocente.

Jairo, apesar de ainda estar chocado e inconformado com as injustiças, foi a júri popular e absorvido por falta de provas. Sua vida, aos poucos, voltava ao normal. Florentina não era mais agradável, aos seus olhos, e resolveu se mudar para Los Santos, consumando sua grande ambição: virou prefeito da cidade.

FIM

Patrick Sousa
Enviado por Patrick Sousa em 19/05/2019
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