Felicidade

Ana diz que a felicidade é um lugar dentro de cada um de nós. “Inútil procurar lá fora o que está dentro de você.”

É um péssimo momento para lembrar a filosofia simplista de minha irmã. O homem que está sobre mim, me beija com urgência. Sua língua quente desliza por meu pescoço. Desce até seios intumescidos. Estou feliz agora, tenho vontade de gritar, quando o desconhecido mordisca meus mamilos rosados e vai além.

Na semana passada, paguei por um garoto de programa e me arrependi. Quase disse para ele que não estávamos numa sessão de psicoterapia. Eu não queria falar, nem ouvir coisa nenhuma.Minha única pretensão era salvar meu casamento.

Hoje tive sorte.Depois de duas ou três voltas, dirigindo no entorno do distrito industrial, avistei este operário seguindo para o ponto de ônibus. Ele não faz perguntas, não fala de sua família ,não reclama do trabalho pesado. Sem cuidado ou maldade entra e sai de mim com a força de quem opera uma máquina. Sou apenas o mar onde desaguam ondas bravias. “Estou feliz agora”, queria dizer para Ana. Não posso. De alguma maneira, acho que ela tem razão.

Na despedida ofereço dinheiro para o táxi ou uma bebida. Ele recusa. O cheiro de suor em suas roupas, o azedume que escapa da marmita, enfiada na mochila, denunciam as horas longe de casa. Acho que tudo o que ele quer é um banho, um prato de comida fresca e quente, deitar, dormir. Não cogitou um novo encontro. Agradeço em silêncio. Minha voz estrangulada pelo ressentimento. Tinha de ser assim?

Ligo o celular. Carlos já deixou o trabalho. Uma mensagem avisa que ele se atrasará. E se meu marido estiver com outra pessoa, buscando também salvar o que estamos construindo? Não, não ele. O homem mais doce que eu conheço.

Deve estar percorrendo casas sofisticadas à procura de um bom vinho. No jantar,teremos peixe, seu prato preferido. Preparei com os temperos que ele mais gosta e saí. Não duvido que me traga um anel, entradas para o cinema. Talvez, roteiros de viagens para as próximas férias.

Um dia desses,Ana me repreendeu. “Onde já se viu se referir ao marido como um doce.Uma ofensa. Diga que ele é um filho da puta, jamais um doce.”

Arrumo a mesa. O peixe parece saboroso. Escolho um vestido bonito. Espero Carlos com um sorriso no rosto bem maquiado.A angústia aumentando conforme os minutos avançam. E se um dia ele não chegar? A paz restabelecida no movimento do portão automático que se abre.

Não me enganei. Depois do jantar iremos ao cinema. O filme não importa. Ficaremos juntinhos, como prometemos todos os dias.A gratidão em cada um de nossos gestos.

Na madrugada, vamos nos amar sobre lençóis de algodão. Ele começará cheirando meus cabelos, elogiando minha pele macia. Beijos que lembrarão o encontro de duas folhas de papel. Eu, água represada ,sem ondas, fúria, nada.

Tenho inveja de Ana e sua vida atribulada repleta de teorias sem graça a respeito da existência. Não vejo nela mágoa ou grandes questionamentos. Divide a casa minúscula com o marido e filhos barulhentos. Totalmente preenchida de si mesma.

Carlos dorme o sono dos homens bons.Prometo, mais uma vez, dar um basta em tudo isso. Romper com esta farsa. Felicidade, outra mentira inventada por homens e mulheres medíocres. Na realidade, beijos com sabor de nada, doçura intoxicante, uma completude incompleta. Só amor...

A esta hora também Ana deve dormir profundamente. Exausta da labuta diária com os filhos, esgotada de tanto refazer as contas do mês. Sou capaz de ver sua imagem adormecida, sorrindo nos braços do marido.

Sempre ela, meu modelo de vida plena.Eu e Carlos feridos até a alma por todos os amores do passado. Solidão, traição, abandono.

Recebo o novo dia abraçada às almofadas do sofá. O sono não me encontrou, muito menos a felicidade.

Quando Carlos sair para o trabalho, vou procurar mais um pouco. Um bar, uma feira, o portão de uma faculdade. Se julgar mais seguro, pago por um desses rapazotes que se oferecem nos jornais.

Não desvendo o que enxergo nos olhos generosos de meu marido durante o café da manhã, mas sussurro “eu te amo”, dominada por vergonha e gratidão. Ele aperta minhas mãos entre as suas, “obrigado, obrigado”, repete verdadeiro.

Quando se despede, avisa que depositou mais dinheiro em minha conta.

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Lucia Rodrigues
Enviado por Lucia Rodrigues em 31/05/2019
Reeditado em 31/05/2019
Código do texto: T6661810
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