Gaivota

Havia algo estranho naquele ambiente. Fazia calor. Eduardo ligou para o serviço de apoio para reclamar do ar condicionado, mas ninguém atendeu. Deviam estar todos ocupados resolvendo o problema com os elevadores, todos parados. Não bastasse a lassidão diária proporcionada por aquilo que chamavam de trabalho, ainda fora preciso subir onze andares de escada, sem contar a sobreloja.

Com as pernas ainda cansadas, girou a cadeira em sentido horário, levantou-se e abriu a janela. O cenário urbano visto do alto, em sua incipiente ebulição matinal, fez lembrar o tempo em que trabalhava no último andar do edifício mais moderno da cidade. Eram quarenta e cinco pavimentos. Mal dava para ver as pessoas caminhando na rua. Prédio novo, projetado segundo as mais avançadas normas de segurança. Lá as janelas não se abriam, tampouco os elevadores e o ar condicionado falhavam. Mas aqui também não era ruim, ele pensou. Talvez fosse até melhor, pois oferecia a alternativa do ar natural da rua. O inconveniente era a fumaça dos carros e caminhões, que ainda insistiam em circular pelo pouco espaço entre as calçadas, poluindo o imenso oceano invisível no qual todos nós estamos mergulhados sem perceber.

Havia chegado cedo, como de costume. Único a habitar o andar àquela hora da manhã, aproveitou a privacidade e a abertura para o mundo exterior para acender um cigarro. Enquanto preenchia os pulmões com a primeira tragada, observava o movimento de lava vulcânica que o tabaco incandescente descrevia ao arder lentamente em direção ao seu rosto. Num sopro leve e duradouro, expeliu sem pressa sua contribuição de monóxido de carbono ao ambiente, enquanto imaginava estar vivendo na década de 1980 - fumando durante o expediente, em um ambiente fechado, sem ar condicionado. Uma época em que, segundo as lembranças que tinha de seu pai, não era preciso passar tanto tempo confinado no escritório. Eram tempos mais fáceis, ele pensou.

Repousou o cigarro no parapeito da janela e voltou até a mesa. Seus olhos fixaram-se inadvertidamente no porta-retratos que ganhara de presente da esposa no ano anterior, em seu aniversário de quarenta anos. Eram duas fotos, lado a lado. Do lado direito, a esposa e o filho. Do lado esquerdo, Eduardo ainda criança, abraçado aos pais e suas duas irmãs. Com um suspiro carregado de nostalgia e angústia, lembrou de uma cena recorrente da infância. Brincava com as irmãs na sala do apartamento de dois quartos no bairro das Laranjeiras, com as roupas amarrotadas, enquanto a mãe preparava o jantar, na cozinha. Ainda não havia escurecido quando o tilintar das chaves do lado de fora, seguido como sinfonia pelo barulho da porta do elevador se fechando, anunciava a chegada do pai, que voltava do trabalho. Dois compassos à frente e a fechadura, num som suave, permitia que a porta se abrisse como cortinas de um teatro. O maestro, então, depois de ter passado todo o tempo a reger a orquestra de costas para o público, cumprimentava a platéia, que se colocava de pé para aplaudi-lo.

Trinta anos mais tarde, com mais tempo de estudo e trabalhando mais do que seu pai, sustentar uma família daquele tamanho, pagando todas as contas de um apartamento alugado em bairro nobre, além de escola particular para três crianças, somente com o salário que recebia, como seu pai fizera, era impossível. Enfrentava um grande sacrifício para dar condições razoáveis de vida para seu único filho, mesmo compartilhando as despesas com a esposa. Ainda assim, tinha vontade de ter mais um, ou até dois. Que bom seria se seu filho pudesse ter dois irmãos, assim como ele, pensou com um ar melancólico.

Sua divagação foi interrompida pelo cheiro de algo queimando. Imediatamente virou-se para a janela e notou que o cigarro havia tombado para o lado de dentro e já começava a queimar o carpete. Sacou-o rapidamente do chão e com três pisadas fortes interrompeu o que poderia ter sido o princípio de um incêndio. Culpa daqueles carpetes inúteis que só serviam para justificar o contrato superfaturado com a empresa responsável por aspirar o pó diariamente, ele pensou. Aproveitou para jogar o cigarro, já apagado, pela janela. Em uma situação normal já não seria conveniente uma guimba de cigarro em sua lata do lixo. E o carpete, agora chamuscado, tornaria a situação ainda mais embaraçosa.

Do alto do décimo primeiro andar, enquanto contemplava a bagana defenestrada traçar uma meia parábola em direção ao asfalto, observou o caminhar frenético e ritmado das pessoas para o trabalho. Daquela distância, lembravam gaivotas a planar, idênticas umas às outras, sempre numa mesma direção. Livres, porém presas à corrente que às governa. Esticou o pescoço para fora na tentativa de avistar a janela logo abaixo à sua. Queria verificar se seu colega Caio já havia chegado, mas seu movimento foi atravessado por uma ave que, num vôo veloz, tangenciou a janela resvalando em sua cabeça. Esquivou-se para trás e notou que a trajetória do animal parecia desenhar um oito no ar, indo e voltando por lados alternados. Não era um pássaro, era um morcego.

Afastou-se da janela rapidamente num reflexo instintivo. Perguntou a si mesmo por que tinha tanto medo de morcegos. Talvez por ter, o animal, sido massivamente representado em filmes de terror. Coadjuvante importante das histórias de vampiros e bruxas, morador de cavernas sombrias, acabou ganhando status de vilão e a pecha de bicho maligno. Geralmente inofensivo, esse excêntrico mamífero costuma vagar pelos ares à noite, o que deixou Eduardo intrigado, já que ainda não passavam das nove horas de uma manhã tórrida e ensolarada.

Dentro do escritório o calor aumentava ainda mais, mesmo com a janela aberta. Sentou-se na velha cadeira, o estofado já marcado com a silhueta de suas nádegas e pernas depois de quase dez anos de uso, e tentou mais uma vez contato com a equipe de apoio, novamente sem êxito. O incômodo extinguia qualquer predisposição ao trabalho, embora a tendência à procrastinação fosse um hábito antigo. Resolveu descer e verificar o que estava acontecendo. No caminho até o hall dos elevadores, achou estranho não cruzar com ninguém nos corredores entre as estações de trabalho. Sabia que o pessoal naquele andar tinha o hábito de chegar um pouco mais tarde, mas àquela hora ao menos a secretária do chefe deveria ter chegado. Chamou o elevador, mas permaneciam todos indisponíveis. Resistiu por alguns segundos à ideia de descer as escadas. Ainda sentia o latejar nas pernas pela subida extenuante de pouco mais de meia hora atrás. Mas não havia outro jeito.

Abriu a primeira das portas da saída de emergência e sentiu o calor aumentar abruptamente. Imaginou que o ar condicionado pudesse estar funcionando, ainda que mais fraco, o que explicaria aquela diferença súbita de temperatura. Mas ao tentar empurrar a segunda porta, notou uma resistência incomum. Com medo, sentiu sua pulsação acelerar sufocantemente. Forçando um pouco mais, abriu uma pequena fresta, suficiente para que parte das chamas do lado de fora lambessem seu rosto. Assustado, jogou-se para trás e acabou se chocando violentamente contra a primeira porta, que dava acesso novamente ao pavimento. Entrou correndo de volta ao hall dos elevadores. Sua pele expelia o suor provocado pelo calor do fogo e pela adrenalina que jorrava em sua corrente sanguínea. Estava sozinho no décimo primeiro andar de um edifício em chamas, sem acesso às escadas e elevadores e sem contato com a equipe de apoio.

Voltou depressa para sua mesa na esperança de conseguir telefonar para sua esposa ou para qualquer outra pessoa que pudesse ajudar, mas o mesmo sinal de ocupado respondia à todas as chamada que tentava completar. Buscou o celular no bolso da camisa mas não o encontrou. Procurou a sua volta, na mesa, nas gavetas, nos bolsos da calça, mas o aparelho não estava em lugar nenhum. Concluiu que devia tê-lo derrubado no momento em que se chocou contra a porta da escada de emergência. Decidiu voltar correndo em direção ao hall dos elevadores com a intenção de recuperar o celular, mas notou que as chamas já haviam atingido o pavimento em que se encontrava. Tinha pouco tempo, ele pensou apavorado.

A fumaça começava a incomodar demais. Respirar já não era uma tarefa tão fácil quanto antes, seja pelo excesso de poluentes que saturava o ar daquele edifício incandescente, seja pela quantidade de oxigênio que seu coração acelerado exigia cada vez mais. De volta à janela, debruçou-se o máximo que pode na esperança de conseguir um pouco mais de fôlego. Sentia-se sufocado, como se estivesse se afogando fora d’água. As chamas já varriam o carpete entre as estações de trabalho e aproximavam-se apressadamente, tal como percorressem um rastro de pólvora.

O calor era insuportável. A única saída seria saltar pela janela. Sua mente consciente dava sinais de ter perdido a batalha para os instintos animais. A distância para o solo, que minutos antes parecia uma fantasia, tamanha sua dimensão, tornava-se cada vez mais real e menos assustadora. O impulso de se jogar estava cada vez mais próximo. Olhou em direção à mesa buscando avistar o porta-retratos, mas ele já havia sido engolido pelas chamas. Decidido, sentou-se no parapeito da janela, fechou os olhos, respirou fundo e num movimento rápido com os braços atirou-se.

A queda durou muito mais do que imaginava. Lembrou da época da escola, quando pulava o muro na hora do recreio para fumar. O destemor, típico da juventude, resistia à altura e aos efeitos nocivos da fumaça do cigarro, muito parecida com aquela da qual estava agora fugindo, ao planar pelos ares do centro da cidade, num vôo majestoso como o das gaivotas que o acompanhavam. Dezenas delas, por todos os lados. Sentia como se nadasse no fundo de um oceano, os braços se movendo contra a massa não de água, mas de ar, submergindo cada vez mais alto. Num rompante, colava os braços ao corpo deixando-se levar pela força da gravidade, emergindo em direção ao solo. Com um giro e duas braçadas, tornava a subir às profundezas daquele imenso mar celestial em que alegremente flutuava. Contemplando a paisagem abaixo dele, avistou a esposa e o filho, sorrindo e acenando da janela de um apartamento, em um prédio que não reconhecia. Tentou se aproximar, mas sua visão foi perdendo foco e o prédio foi dando lugar a lindas montanhas, cheias de verde. Viu-se novamente voando ao lado das gaivotas, assim como elas, levado pela corrente.

Aos poucos a sensação de voar, tão leve e sublime, foi dando lugar ao movimento das pálpebras, que se abriam lentamente, permitindo que Eduardo acordasse daquele sono profundo. Havia dormido muito mais do que o habitual. Efeito do calmante que tomara no dia anterior. O comprimido o prostrara tão rapidamente que nem se lembrou de ligar o ar condicionado. A janela, fechada, deixara no quarto um ar pesado e tóxico.

Como de costume, levantou-se, cumpriu o rito matinal de todos os dias e seguiu para o trabalho. Antes de subir, parou em frente ao prédio, contou as janelas de baixo para cima até identificar o seu andar. Estava lá. O décimo primeiro andar. Já eram mais de nove anos no mesmo local, na mesma função. Era dali que ele tirava o seu sustento e de sua família. Ainda que não gostasse do seu trabalho, ganhava um salário razoável e tinha conforto. Tentou imaginar o suplício a que se submetiam milhões de pessoas pelo mundo, trabalhando em condições muitas vezes desumanas, para ter o que comer e onde morar. Embora agnóstico, agradecia religiosamente por ter aquele emprego. Não podia reclamar. Só podia ser grato. Um mantra que ele repetia em silêncio, todos os dias.

No elevador, encontrou Caio, seu vizinho de andar de baixo.

- Bom dia, Edu! - cumprimentou Caio, com um sorriso sincero.

- Bom dia. - devolveu Eduardo, com ar cansado.

- Mais uma semana começando, hein?

- Graças a Deus.