Um drama na oficina

Um drama na oficina

Domingo, o relógio marcava uma hora da madrugada quando as portas se abriram abruptamente. Era mais um automóvel acidentado naquele fim de semana. Com o barulho causado pelo correr da porta de aço, todos os componentes da oficina acordaram ao mesmo tempo.

- Olha lá gente. Parece mentira, mas está entrando um importado, e bem amarrotado na frente. – Gritou alegremente o maçarico.

- Oba! Amanhã será um grande dia. Vou bater muito naquela lata e internacionalizar minhas marteladas. Rejubilou-se o velho martelo.

- Mas o que é isso meu amigo barulhento? Não acha que você está sendo muito pretensioso? – Perguntou um capô novo que estava pendurado lá no alto.

- Não sei porque, o enferrujado? – Riso geral na oficina. – Afinal quem é o martelo aqui? Não sou eu? – Gritou perdendo a calma.

- Que é você o barulhento nós sabemos, mas acha que o dono vai deixar você bater naquela preciosidade? – Debochou a lixa d’água.

- Além do mais, você chamar uma chapa daquela, de lata é muita sacanagem. A única certeza aqui, é que serei eu que vou desparafusar e soltar todas as peças amassadas. – Garantiu a usada chave de boca.

- E vão trocar essas peças por quem? – Perguntou rapidamente o capô cheio de vaidade.

- Você sim está sendo pretensioso seu enferrujado de uma figa. Não vê logo, que você jamais fará parte daquela estrutura de primeiro mundo. – Atacou a tinta importada.

- E por que não? Não vejo nada que me impeça.

- Eu também estou certo de que logo, logo estarei lá, fazendo parte daquela beleza. – Garantiu o cromado para-choque.

- E nós também! – Em coro, gritaram vários parafusos lá no fundo da gaveta que estava aberta.

- Gente? Vocês enlouqueceram? Aquilo é um importado! Não é para o bico de vocês.

Essa discussão se estendeu por toda madrugada e só deram conta da hora quando amanheceu e a oficina foi reaberta. Estavam todos cansados e resolveram parar com aquela conversa, mesmo porque os empregados estavam chegando e os trabalhos começariam sob a orientação firme do novo proprietário.

Nilton o encarregado pela lanternagem assim que chegou foi logo designando dois funcionários para desmontarem a frente da Mercedes que dera entrada na madrugada. Segundo ele era preciso terminar aquele serviço rapidamente. Também determinou que o lanterneiro Cezar acabasse de desamassar primeiro a velha Rural, pois tinha acertado de entregá-la na quinta feira. Chamou Aniceto o responsável por toda a pintura da oficina e pediu para que ele já fosse preparando o capô, o para-lama e o para-choque da Mercedes, pois queria que no dia seguinte tudo estivesse no lugar pronto para ser pintado.

Nos primeiros quinze minutos do dia, Nilton determinou todas as tarefas de cada empregado. Ao terminar, entrou no escritório improvisado que funcionava no meio do grande galpão. O novo dono determinou que fosse instalado ali, pois assim poderia controlar todos os setores sem precisar andar muito. Mal chegou no local, Adalberto o novo dono da oficina perguntou com sua voz de trombone.

- Então Nilton o que está achando da mudança?

- Qual delas seu Adalberto? Deste local ou dos novos carros que passaremos a consertar.

- Das duas, claro!

- Bem, daqui deste local realmente ficou muito melhor para administrar a oficina, mas o senhor está pretendendo mesmo só trabalhar com carros importados?

- É o que pretendo, mas não deixarei de atender os carros velhos que ainda possam aparecer.

Nesse clima de mudanças e novas metas o dia continuou normal como todos os outros, só que com a determinação de acabarem o mais rápido possível com todos os serviços. Adalberto queria que aquela fosse a última semana de trabalho com carros velhos.

Final de expediente. Tudo voltou à tranquilidade na oficina e quando o silêncio parecia ter tomado conta do local ouviu-se uma estrondosa gargalhada seguida de um alerta.

- Aí martelo! Parece que seus dias estão contados aqui na oficina. – Sacaneava o macaco hidráulico.

- Pega leve macaco hidráulico. Afinal, muita gente aqui dentro está correndo o mesmo risco. Inclusive você. Lembre-se que você já está bem usado. Não se esqueça disso. – Alertou o antigo maçarico.

- Eu não corro esse risco. Terá sempre uma massa corrida para eu assentar e alisar. – Vangloriou-se a espátula.

- Parece que nossa amiga espátula não escutou quando o homem disse só vai trabalhar com os carros novos. – Lembrou o macaco hidráulico continuando a rir.

- A mim não importa o que aconteça. Serei sempre de alguma utilidade, pois haverá sempre um amassadinho em alguma chapa a ser reparado. Mesmo que ela seja nova. E ai queira ou não eu entrarei em ação. – Garantiu o martelo.

- Calma gente, na verdade não há tanto perigo assim de ficarmos parado. A meu ver os únicos que estão seriamente ameaçados são o martelo e o maçarico. – A ensebada bancada das ferramentas tentava acalmar os ânimos.

- Engano seu bancada. Eu não existo só para esticar as chapas com meu calor, eu também soldo qualquer peça, esqueceu? – Lembrou o maçarico.

- Nós estamos tranquilas. Eles vão sempre precisar da gente para apertar ou afrouxar alguma porca. – Quem fazia esse comentário alegremente era a mais velha das chaves de boca.

- Se eu fosse você não teria tanta certeza assim. Afinal nosso novo dono é meio estranho. – Lembrou o compressor, que até então não havia dito nada.

- Vocês estão muito pessimistas. Eu aconselho aguardarmos e ver como tudo vai se comportar daqui pra frente. – Recomendou o maçarico.

Dito isso, encerraram a discussão e o silêncio voltou a reinar no local.

Na manhã seguinte Adalberto chamou o encarregado Nilton para dar-lhe algumas instruções.

- Nilton eu vou precisar dar uma saída e só voltarei após o almoço. Fica atento que virão entregar daqui a pouco umas encomendas que fiz.

- Pode adiantar o que o senhor comprou?

- Claro, comprei um ferramental e um quadro novo para a oficina. Assim que chegar, reúna o pessoal, confere e coloque tudo aqui neste local. Em seguida manda colocar todo o ferramental antigo lá na bancada, que os próprios entregadores irão retirar tudo daqui e levar para o ferro velho do Amílcar. Não me vá esquecer de nada. – Recomendou o patrão.

- Pode sair tranquilo, que eu já entendi perfeitamente o que temos de fazer. Só mais uma pergunta?

- Diga logo Nilton, que já estou atrasado.

- Posso adiantar a novidade para os funcionários?

- Claro, de qualquer forma eles vão saber mesmo.

Assim que Adalberto saiu, o encarregado reuniu os empregados e falou sobre a novidade. Tal notícia os deixou mais contentes, pois as ferramentas já estavam muito precárias.

A noite, depois da oficina fechada o ambiente não era mais o mesmo. A tranquilidade reinava no local, mas no ferro velho? O chororó era geral.

- Que ingratidão. Depois de tantos anos trabalhando de sol a sol olha aonde viemos parar. – Resmungava o velho compressor.

- Nunca pensei que eu fosse terminar num ferro velho. – Reclamou o martelo.

- E pelo jeito não vão ter nenhuma consideração conosco. Largaram a gente aqui ao relento. – Frisou o maçarico.

- Agora mesmo é que iremos ficar iguais ao capô. Todos enferrujados. – Alertou a chave de boca.

- Eu estou com a esperança deles me protegerem. Afinal ainda estou forte e posso muito bem levantar essas quinquilharias velhas. – Torcia o macaco hidráulico.

- Estou com você macaco. A esperança é a última que morre. – Dava força o capô.

- Pois nesse momento sou eu que não tenho mais tanta certeza e nem tão pouco, esperança. Olhem bem para mim! Nunca fui usado e estou aqui nesse cemitério. – Lamentava-se o para-choque cromado.

- Já não fazem mais peças como antigamente, é tudo de plástico. Que tristeza. – Lembrou o capô.

- Tenho certeza de que não é aqui que iremos acabar. – Garantiu o macaco hidráulico cheio de esperança.

Amanhecera e todos ouviram o dono de ferro velho gritando para um dos funcionários.

- Pega todo esse material que chegou ontem e coloca no caminhão. Vai tudo para a siderúrgica.

Fernando Antonio Pereira
Enviado por Fernando Antonio Pereira em 22/08/2019
Código do texto: T6726461
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